Passarela de sonho

 

          A Mangueira entrou quente na Marquês de Sapucaí, disposta a fazer história. Mais do que isso, estava fervendo, determinada a conquistar um título que não ganhava há onze anos. O último fora o de 1987. Desde a definição do enredo, da escolha do samba e dos primeiros ensaios, essa determinação estava evidente na cabeça de cada membro da escola. E todos trabalharam muito, duro, cada um na sua função, nos meses que antecederam o Carnaval, para que nada desse errado na hora agá, no momento do desfile, como havia ocorrido em tantos anos anteriores. Certamente, não daria.
          Desde a comissão de frente, passando pelas diversas alas, como a das baianas, por exemplo, pelos mestres-salas e porta-bandeiras, pela bateria, passistas, ritmistas etc. tudo estava perfeito. As fantasias eram de tirar o fôlego. A combinação do verde e do rosa, que aparentemente parecem não combinar, era deslumbrante, para artista ou crítico nenhum botar defeito. Era de estontear.
          Ainda na concentração, minutos antes do início do desfile, o presidente da escola, Elmo José dos Santos, havia sido muito feliz nas suas palavras aos componentes da Mangueira. Mostrara irrestrita confiança na vitória e ressaltara que este era um ano muito especial, o do 70º aniversário de fundação da verde e rosa. Suas palavras parece que eletrizaram os componentes. Havia eletricidade no ar. Uma corrente de milhares de volts agitava todos os mangueirenses.
          Rufina desfilaria pelo 48º ano consecutivo. Sua mãe, Juleusa, fora uma das fundadoras da escola e desfilara até o ano passado. Neste, por motivo de doença, estaria ausente pela primeira vez. Havia sido levada às pressas para o Hospital Souza Aguiar, três dias antes do desfile...
          Rufina havia estreado em 1940, aos doze anos de idade, e logo com vitória. Naquele ano, a verde e rosa fez um desfile memorável, defendendo o inesquecível enredo de Carlos Cachaça, “Prantos, pretos e poetas”. Na ocasião, a escola era presidida por Arlindo Rodrigues, que fora o seu padrinho e bancara, do seu bolso, sua fantasia.
          Desde então, Rufina nunca deixou de desfilar. Em duas ocasiões, desfilara grávida e, no seu entender, essas haviam sido, até então, suas duas melhores performances. Mas estava determinada a superá-las, neste Carnaval de 1998, por uma razão bastante especial, que não havia revelado para ninguém qual era. Suas quatro filhas e dez netos também faziam parte da escola e estavam desfilando. Seu companheiro, Juvenal, que um dia integrou a bateria, mas que já era falecido, certamente olhava do céu o esplendor da verde e rosa, torcendo, claro, por sua vitória.
          Ao entrar na avenida, Rufina persignou-se. Sentia-se leve, ágil como menina, transfigurada. Era como se pisasse numa passarela de nuvens, irreal, de sonhos. Sempre se sentia assim durante os desfiles. Esquecia-se da vida dura para sustentar suas quatro filhas, sozinha há mais de vinte anos, quando enviuvara, com o miserável salário de doméstica. Não se lembrava das preocupações do dia a dia, das dívidas, das humilhações pelas quais passava, das incontáveis dificuldades. Sentia-se uma deusa, uma musa, uma rainha. E hoje, mais do que nunca...
          Aos poucos a escola ganhava toda a avenida, colorindo a passarela do samba de verde e rosa, cantando e sambando com alegria e desenvoltura, ao ritmo da voz rouca de Jamelão, seu tradicional puxador. Ao contrário de anos anteriores, todos cantavam o samba-enredo, “Chico Buarque da Mangueira”, composto por Nelson Dalla Rosa, Vilas Boas, Nelson Csipai e Carlinhos das Camisas.
          A bateria era um espetáculo a parte. Como sempre, distinguia-se das demais pelo uso diferenciado do surdo de marcação. Essa era a sua característica peculiar e inimitável, defendida por uns e criticada por tantos. Mas dava gosto ouvi-la. A bateria havia manobrado com perfeição e entrado, milimetricamente, no recuo, sem que as alas que vinham atrás se afunilassem e comprometessem a harmonia do desfile. Era um ótimo sinal.
          E Rufina estava demais! Há dez anos que desfilava na ala das baianas. Fora, até então, passista e tinha o samba no pé, herança dos seus ancestrais africanos. Sua fantasia deste ano quebrava a tradição, pois não era toda branca, como a da maioria das escolas, mas verde e rosa, o que dava um colorido especial ao conjunto e um visual magnífico visto das arquibancadas.
          Ao passar em frente do camarote dos jurados, Rufina se transfigurou. Fez várias evoluções, com absoluta perfeição, cantando, afinada, o samba-enredo e se distinguiu em todos os aspectos das suas companheiras de ala. Flashes e mais flashes de fotógrafos cegaram-na, mas ela nem se abalou. Sentiu sobre si o olho da câmera da TV que transmitia o desfile e isso a estimulou a dançar mais e mais e ainda melhor.
          O homenageado do ano, Chico Buarque, parecia um lorde. Sorria sem parar e acenava para a multidão, do alto de um carro-alegórico. E o povão retribuía com gritos de “já ganhou”, destinados, logicamente, à escola.
          E a Mangueira, nesse ano, apresentava uma inovação a mais, entre tantas outras surpresas que havia reservado para o público. Era o compositor Carlos Vinhas, tocando um piano, colocado num carro-alegórico, fazendo uma espécie de recital em plena Marquês de Sapucaí, executando algumas das canções mais conhecidas e consagradas de Chico.
          Rufina via aproximar-se, mais e mais, o grande arco da Praça da Apoteose, o que representava o fim do desfile e a tão sonhada vitória. Sim, pois se a escola continuasse como estava, não havia como perder. E o público reconhecia isso. Aplaudia, freneticamente, agitando bandeirinhas verdes e rosas, aos gritos de “já ganhou! Já ganhou!”. Mais do que isso, acompanhava Jamelão no refrão do samba-enredo:

“Ôiaiá...vem pra avenida
Ver meu guri desfilar.
Ôiaiá...vem pra avenida
Ver meu guri desfilar
Oiaiá... é a Mangueira
Fazendo o povo sambar”.

          Toda a Marquês de Sapucaí era um coro só. Até torcedores de outras escolas foram contagiados pelo refrão da verde e rosa. Os milhares de turistas estrangeiros, mesmo sem entender bulhufas do que diziam, repetiam, com a multidão, o refrão do samba-enredo. Era até pitoresco de se ver.
          Finalmente, a última ala passou. A Mangueira havia desfilado no tempo certo e não perderia pontos, portanto, nesse quesito. E, certamente, em nenhum outro. Fizera um desfile impecável, memorável, perfeito.
          Na dispersão, pura euforia! Sambistas confraternizavam-se com personalidades do mundo artístico e esportivo que desfilavam na Mangueira. Repórteres se acotovelavam em busca das melhores entrevistas. Havia, entre os mangueirenses, absoluta certeza de vitória. Chico era o mais feliz de todos. Parecia um menino grande que houvesse ganhado um brinquedo que há anos cobiçasse.
          Foi quando Rufina desmanchou-se em prantos. Era um choro misto de alegria e tristeza, de desabafo de tensão e de manifestação de dor. Na véspera do desfile, visitara a mãe no hospital. E esta, em tom premonitório, lhe pedira que, houvesse o que houvesse, não deixasse de desfilar. E, sobretudo, que trouxesse esse título para a Mangueira, “por ela”.
          Na hora, Rufina não entendeu a razão do pedido. Só veio a entender o real significado das palavras da mãe quinze minutos antes de entrar na passarela do samba. Um telefonema do Hospital Souza Aguiar dera-lhe conta que Juleusa acabara de falecer...

Pedro J. Bondaczuk
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com
(Publicado originalmente no site Comunique-se em 31 de janeiro de 2008)

 

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