Eternamente moderno - A resistência do samba

 

          Não é de hoje que o samba vem discutindo sua relação com o carnaval. A reportagem de Cesar Tartaglia e Marcia Cezimbra publicada na última revista do GLOBO expõe a mais recente rusga: a puxada de tapete que a Unidos de Vila Isabel aplicou logo em Martinho da Vila e Luiz Carlos da Vila. Convidada pela diretoria a concorrer ao samba-enredo da escola, a dupla de bambas serviu apenas para valorizar a vitória de outrem.
          Talvez seja oportuno, também, discutir algo que, a meu ver, tem feito tanto mal ao gênero musical quanto a clonagem anual de sambas-enredos indigentes, o pagode-mauricinho ou o aluguel das escolas a políticos, celebridades e turistas: o clichê “a resistência do samba”. Fora do carnaval, época em que bem ou mal os tamborins soam ainda mais alto, a expressão surge quase sempre que se fala ou escreve sobre o assunto.
          No entanto, é bem difícil entender contra quem o samba resiste. Parece o discurso paranóico do Lula. O sambista Zeca Pagodinho talvez seja, hoje, o cantor mais popular do Brasil. A dúvida fica por conta, claro, do longevo reinado de Roberto Carlos. Pagodinho talvez seja, também, o maior cantor de samba vivo. Aqui, a minha dúvida fica por conta de outro grande Roberto, o Silva, de 85 anos, intérprete, entre outros, dos quatro formidáveis álbuns intitulados “Descendo o morro”, do fim da década de 50 e do começo da de 60.
          A popularidade e a excelência de Pagodinho fazem com que ele receba, o ano inteiro, o tipo de cobertura jornalística dedicada apenas eventualmente a um Mick Jagger: o que disse, onde esteve, o que fez, o que comeu (ou bebeu). O canal por assinatura Sportv, por exemplo, estava na casa do alvinegro Pagodinho quando ele recebeu os amigos americanos Monarco e Mauro Diniz para assistirem à decisão da Taça Guanabara. E o anfitrião — a quem assisti pela primeira vez em 1986, no velho campo do América, num showmício do PDT com a falecida Jovelina Pérola Negra e Almir Guineto — já foi até garoto-propaganda disputado por duas das principais marcas de cervejas do país.
          Cabe, então, perguntar: a que resiste o samba, se a sua face mais visível goza deste merecido prestígio na grande mídia? A que resiste o samba, se ele é, há décadas, o ramo mais robusto da nossa música, transmutando-se na bossa nova, influenciando o pessoal dos festivais e da Tropicália, fundindo-se ao pop-rock nativo? (Isso num dos três países do mundo que mais escutam a própria música; os outros, a propósito, são EUA e Japão.) A que resiste o samba, se o culto a ele movimenta as casas noturnas da Lapa?
          E, no entanto, ouvimos e lemos que o bairro sedia “a resistência do samba”...
          Todo clichê, ao imobilizar a fala, imobiliza também o pensamento. O que se quer dizer quando se diz que uma coisa resiste a outra? Que ela está na defensiva, sob ataque, está em posição inferior, de vítima. A intenção dos retransmissores de clichê pode até ser boa, calcada na lembrança da antiga perseguição referida em “Agoniza mas não morre”, de Nelson Sargento. Contudo, na prática, eles diminuem o gênero que pretendem engrandecer.
          O samba não é escravo, o samba é senhor. Dizer menos que isso de um gênero musical que vive em, além dos já mencionados, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nei Lopes, Jamelão, D. Ivone Lara, Aldir Blanc, Moacyr Luz, Beth Carvalho, Walter Alfaiate, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, soa-me até ofensivo. Invocados pela “resistência do samba”, estes nomes acabam é servindo de álibi para a abolição de todo espírito crítico.
          Como tal retórica tem caráter patriótico, um mero senão equivale a alta traição. Os bambas são usados, dentro desta lógica, exatamente como Martinho e Luiz Carlos foram usados no concurso da Vila: para referendar gente sem o seu talento. Porque é uma impossibilidade estatística-estética que não haja disco ruim de samba, que toda jovem cantora seja maravilhosa ou que todo velho sambista obscuro seja uma preciosidade.
          Admitir isso, todavia, seria crime de lesa-pátria. Então, tome elogio à “resistência do samba”. Este discurso paternalista e mediocrizante já teve conseqüências nefastas na cultura brasileira. Enquanto considerou-se (e foi) merecedor de “uma força” do Estado e da crítica, por exemplo, o nosso cinema patinou. Hoje, mesmo ao largo da retórica nacionalista, a falta de senso crítico alimenta a nostalgia esterilizante do rock dos anos 80.
          O conservadorismo é, por sinal, outra faceta da “resistência do samba”. Dois anos atrás, no site “NoMínimo”, o jornalista Paulo Roberto Pires, ao defender Marcelo D2 numa discussão com os xiitas do gênero, criou um termo feliz: talibambas . Foram eles que pediram para Mart'nália tocar mais baixo seu pandeiro numa roda de samba na Lapa, como ela se queixou aqui no Segundo Caderno, também há dois anos, ao repórter João Pimentel.
          Recentemente, outro renovador do samba, Leandro Sapucahy, teve até dificuldades de se apresentar no bairro. Só conseguiu graças ao aval de Zeca Pagodinho, que participa de seu ainda inédito CD, bem como Marcelo D2. Aos ouvidos do pessoal entrincheirado no passado, Sapucahy comete a heresia de lançar uma ponte do samba ao rap, falando de tráfico, mineira, bala perdida, Nextel. De tanto proteger o gênero, os talibambas perigam sufocá-lo. Afinal, como diz o samba de Aluizio Machado, “água demais mata a planta”.

*Texto publicado no jornal O Globo (Segundo Carderno), em 24 de fevereiro de 2006.

Artur Dapieve
Artur Dapieve é colunista do jornal O Globo
(Publicado originalmente no jornal O Globo em 17 de janeiro de 2007)

 

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