“Nunca Fomos Catequizados, Fizemos Foi Carnaval”

 

          O estudo dos povos, etnias e suas relações com a formação da cultura nacional são fundamentais para entendermos os meandros que nos levaram à formação do nosso carnaval.Sob a óptica de um pensamento naturalista, observamos que os alienígenas, os bárbaros europeus, historicamente falando, foram responsáveis pelo processo de aculturação e de imposição de uma cultura alheira a toda e qualquer tradição inerente à forma de expressão coletiva de um povo. Observa-se este fato principalmente através da colonização do então chamado “Novo Mundo”, tanto na América espanhola, com a exterminação de Maias Incas e Astecas; quanto da América portuguesa, cenário que em particular nos interessa mais, justamente por tratar de nosso processo de aculturação.
          Há muitos aspectos que carecem serem revistos no que diz respeito às particularidades existentes entre a Casa Grande e a Senzala, fazendo assim alusão à obra de Gilberto Freyre nos anos 30.Certamente, a comida dos escravos hoje está na mesa da elite brasileira, mas esta mesma elite mantém os idealizadores da iguaria nas cozinhas. Há muito de verdade naquela velha frase que diz que os escravos são as mãos e pés do Brasil.
          Na construção de nosso carnaval, os negros são fundamentais, pois são, essencialmente, responsáveis pelas raízes do samba. Fazendo uma separação entre carnaval e samba, que hoje pode parecer estranha, mas que é válida; podemos observar que os negros deram a cara do nosso carnaval através do samba, mas ele, o carnaval que aqui chegou, tem fundamentos essencialmente europeus.Não é por acaso que constantemente nos remetemos ao carnaval como a “Folia de Momo” e não de Tia Ciata. A expressão vem da Roma antiga em que era escolhido o mais belo soldado para representar o Deus Momo no carnaval e que depois era coroado rei e passava a ser a maior autoridade durante os três dias de festa. A cultura negra tem enormes participações na construção do carnaval brasileiro principalmente através do samba, que é a nossa vitrine mundo afora; mas não esquecendo também que a folia momesca tem traços do "Velho Mundo".Em suma,nosso carnaval é uma resultante multicultural de diversos povos.
          
E esta cosmovisão quanto a questão cultural é bastante complicada, pois o país foi inventado e moldado através de um modelo pré-existente, que não se adequou de forma sólida as condições culturais que aqui se formaram, dando uma idéia de falsa sociedade civil.Sendo assim, todo o aparato organizacional lusitano que aqui fincou raízes fazia com que a formação de uma identidade nacional fosse espelhada tendo como modelo a vitrine européia, que sempre era vista como o que há de melhor.E o negro sustentou a colônia e durante muito tempo foi o sustentáculo do Império.Mas, como de praxe, o povo acaba ficando em uma situação marginalizada, alienado a tudo que lhe compete de fato e de direito.Fato que pode ser observado quando houve a mudança na forma de governo, em que o povo não sabia nem que “troço” era aquele chamado “República”.Entretanto, o pano de fundo desta história de heróis de fachada é construído com as mãos e os pés dos que ficavam longe dos holofotes, mas que eram primordiais para porem em prática as idéias mirabolantes dos senhores do açúcar, do café e da borracha.E hoje no carnaval a mesma história se repete.

“O rei mandou me chamar
pra casar com sua fia
o dote que ele me dava
Oropa França e Bahia”

          A visão de modelo ideal sempre foi a do europeu, principalmente o da Inglaterra (o famoso chá das cinco das baronesas) e o da França da “Belle Époque”. Floresciam por todo o país os ideais franceses através da efervescência dos cabarés, do Cancan, do cinema,da boemia...A arte tomava novas formas com o Impressionismo e a “Art Nouveau”. A Arquitetura também foi bastante copiada desta época – Teatro Amazonas.
          O Rio de Janeiro também sofre estas mudanças em nome da “modernização”, através do alargamento de ruas, novas avenidas, bondes, demolições dos cortiços do centro da cidade.Tudo o que vinha de fora era visto como moderno.Esta tal demolição de cortiços em nome da “urbanização” foi feita por Pereira Passos, que ficou conhecido como “O bota abaixo” por conta das demolições e desalojamentos de pessoas carentes do centro do Rio. Bastante interessante este fato porque ilustra bem esta lógica de esconder o que é feio, ou seja, marginalizar o que incomoda, deixando o “cartão de visitas” aos moldes ditos aceitáveis. Valendo-se desta lógica, o carnaval carioca torna-se peça fundamental, trazendo retorno e visibilidade à Cidade Maravilhosa. É o carnaval à serviço da economia e não mais apenas como canal de expressão popular.
          Ano passado a Viradouro mostrou com a “favela dos meus amores” e a “favela dos meus horrores” esta questão da desapropriação das pessoas residentes nos cortiços e o conseqüente aumento do número de favelas no Rio. E são nestas favelas, nestes morros; que residem as pessoas responsáveis por toda a transformação da cidade do Rio, seja desde os tempos do espelho da “Belle Époque” francesa até a formação de nossos maiores cartões de visitas, que são o carnaval, o samba e os desfiles.São pessoas de suma relevância, que moldaram a nossa identidade a tornando singulares. Todavia, da mesma forma que os direitos de expressão cultural foram usurpados outrora, hoje se observa fato bastante similar com a exclusão do negro, tão importante para a resistência de um carnaval genuinamente brasileiro.
          No carnaval contemporâneo, em particular nos desfiles das escolas de samba, não é o preconceito quem vem falando mais alto com relação à participação do negro, mas a ganância. É o mesmo processo de desapropriação sofrido lá nos tempos da colonização, só que este em menor escala, porém não menos desastroso. O canto da sereia capitalista atrai e acaba desvirtuando o real propósito do carnaval, que passou a ser um negócio da China.As novas diretrizes do carnaval não inserem o povo de forma consististe, de modo a deixá-lo da mesma forma que no passado, ou seja, sendo apenas a mão-de-obra que coloca o espetáculo para apreciação mundial, mas que fica de fora.
          Este ano, três escolas que levaram temas africanos para a Sapucaí e, pode-se mais uma vez observar que a cultura africana quando levada à avenida, é responsável por grandes momentos da história do carnaval, gerando sempre excelentes sambas e enredos. Será que isso é por acaso? Tenham certeza de que não, pois quando se traz uma África para a avenida é como se o samba estivesse exaltando o samba, é como se todo o ideal de denúncia, de clamor por liberdade de vida e pensamento que fora fundamentado lá nos tempos de Ciata viessem novamente reafirmar o seu espaço de fato e de direito.

Philip Nascimento
(Publicado originalmente no site Tradição do Samba em 22/05/07)

 

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