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É hoje. E parece encontro marcado. É sexta feira e nada, nem esta gripe chatinha que me atravanca as noites numa chiadeira insuportável, me impede de correr para o meu desabrigo nuclear. Refiro-me ao meu núcleo de reflexão, a Ponta do Leme, ao lado de Copacabana. Hoje vim aqui para refletir sobre erros e acertos, sina e desejo. Vou falar de carnaval, desfile, fotos, registro e magia.
Trabalhei muito este ano na avenida. Rodei pelo sambódromo noite inteiras. Sem pauta fixa olhando em volta e registrando sons e imagens. Me exauri fisicamente durante os desfiles, comecei a me recuperar quando colocava os áudios que gravei na Internet no http://valeria-delcueto.podomatic.com e esperava as fotos que fiz com minha Nikon tradicional serem reveladas. Depois, me acabei de novo em muitas madrugadas analisando e editando o material que garimpei nos dias de folia. Ele foi aos poucos apresentado no http://delcueto.multiply.com.
Agora, aproveito o barulho do mar e esta paisagem tão especial da Ponta Leme para refletir sobre o carnaval e minha produção momesca, onde aconteceu de tudo: da frustração total àquele momento único, onde você sabe que os Deuses querem que algo seja registrado e te escolhem para ser meio e fim deste registro.
Vamos direto ao primeiro caso. Desfile da última escola na manhã de terça feira. O melhor samba do ano havia acabado de sacudir a Sapucaí. O Império Serrano, sob as bênçãos de São Jorge Guerreiro suspendera com seu canto a chuva que ameaçara cair, para mostrar sua folia na avenida.
Ia começar o último desfile, a Portela fechava o Grupo Especial. Estava cansada, mas ansiosa depois de conversar com Marçalzinho que meses antes deixara a direção de bateria da escola. Ele havia me apresentado seu sucessor, Nilo Sérgio, me falado do seu trabalho e eu queria registrar sua performance.
Quando a bateria foi se aproximando do primeiro recuo, uma coisa me chamou a atenção: gente da harmonia da escola rolava pela passarela, em frente ao Setor Um, um queijo, um cilindro de mais ou menos uns 60 centímetros de altura.
Começaram a cair os primeiros pingos de chuva. Graúdos, insistentes e em velocidade progressiva. O tal tablado de madeira foi colocado na frente dos instrumentistas e, nele, subiu Nilo Sérgio.
Eu tirava algumas fotos na entrada da escola quando a chuva desabou. A máquina, bolsa, tudo ficou encharcado antes que houvesse tempo de proteger o equipamento. Coloquei a capa de chuva em cima da roupa toda molhada, corri para uma marquise procurando algo com que pudesse secar a máquina. A única coisa um pouco menos encharcada que encontrei foi uma bandana que Márcio Wollman havia me dado no show dos Stones, na semana anterior. Providencial. Sequei o equipamento da melhor maneira que pude dando por encerrado o trabalho. Resolvi apenas assistir ao desfile aquático que se desenrolava na minha frente. A escola evoluía.
Empurrada... pelo som de sua bateria, conduzida por Nilo Sérgio, do alto do tal tablado que eu vira rolando pela pista. E ali estava a inspiração. Forte o suficiente para levar a escola embaixo d'água avenida afora. Extraordinária, a ponto de me fazer não pensar no prejuízo. Peguei a câmera. Tirei a capa de chuva. Nela, nos enrolamos eu e a câmera e parti para o recuo da bateria. Fotografei muito. A postura do mestre (ali, naquela momento, mesmo novato na direção de bateria, Nilo Sérgio fez jus ao título) Seus gestos, a expressão dos ritmistas, o medo da chuva afrouxar os instrumentos e desafinar as peças, a garra dos anônimos portelenses, que se enchiam de novas energias para cantar o samba e evoluir na pista em baixo das chuvas que caíam torrenciais.
Foi mágico. Fiquei exaurida. Peguei uma gripe, voltei para a casa como um pinto molhado. Na quarta feira de cinzas abri a loja onde revelo meus filmes. Esperei pela Portela torcendo para ter conseguido fotografar e registrar aquele encantamento. É mágico, eu disse. E inexplicável, acrescento. O material dos desfiles estava todo lá. Menos o filme da Portela. Fotos sobrepostas, impossíveis de serem aproveitadas. Parte do filme velado. Nada, nada, do que vi e fotografei estava lá.
Nilo Sérgio ganhou o Estandarte de Ouro como revelação do Carnaval 2006. A Portela, apesar das condições adversas do desfile, não caiu do grupo Especial.
E eu, por ser tarde de sexta feira e poder estar aqui na praia, no Leme, na Ponta, contando esta história (com h), já não me sinto tão frustrada com a perda deste registro fotográfico que, para mim, teria um grande valor. Afinal, estas palavras formam imagens, que se transformam em sons, que têm o poder de fazer o meu coração pulsar ao ritmo da bateria conduzida por Nilo Sérgio. E isto não é nada mal para quem, até este momento, tinha a impressão errônea de que havia perdido tudo.
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