A última do Jornal Nacional

 

          Na última semana, o Jornal Nacional pregou no público brasileiro mais uma das suas peças. Nas edições após o carnaval, enquanto o mundo inteiro havia noticiado:

  • “A samba group backed by Venezuelan oil money was declared carnival champion Wednesday” (Washington Post, 1.3),

  • “The annual parade competition at Brazil's famous Rio de Janeiro carnival has been won by a samba group largely funded by the Venezuelan government (BBC News, 1.3),

  • “A samba club backed by Venezuelan President Hugo Chavez took first place in Rio de Janeiro's Carnival on Wednesday with a performance that promoted Latin American unity but steered clear of his outspoken opposition to U.S. influence” (ABC News, 1.3),

  • “Escuela Unidos de Vila Isabel gana carnaval de Rio de Janeiro 2006” (Xinhuanet, China, 2.3)

          O jornal, melhor dizendo, O jornal da TV Globo, cuja sede é no mesmo Rio de Janeiro onde se deu o espetacular primeiro lugar da escola de samba de Vila Isabel, fez um não menos espetacular silêncio. Se nos fazemos entender, a coisa não é bem que o JN tenha deixado de dar a notícia da vitória da Vila Isabel. Isto, sob evidente constrangimento, foi realizado. O estranho é o silêncio sobre a repercussão mundial de um título para uma escola de samba do Rio, estranho silêncio de um telejornal que adota um tom ufanista, brasileiro-sangue-bom de Brasil Grande salve, salve. Se a repercussão em todo o planeta do carnaval do Rio de Janeiro deixou de ser notícia, a sua ausência no JN é digna de dois ou três comentários.

A notícia sob constrangimento

          Antes do resultado, na edição de 27.2.2006, tudo que o JN viu da escola campeã foi “A Unidos de Vila Isabel cantou as belezas da América Latina. Lhamas, sombreros mexicanos”. Um pouquinho pouco, deveria ser dito, principalmente quando se agigantava, no desfile da campeã, um  boneco de Simón Bolívar de 13 metros de altura. E mais as figuras de Che Guevara, Abreu e Lima, Tiradentes, un poquito más que llamas que maman y sombreros, por supuesto. Pero na edição de 1.3.2006, o JN se redime, e descobre a impossível de não ser mirada figura de Simón Bolívar: “Na passarela, lhamas, sombreiros, deuses, símbolos astecas e a homenagem ao herói Simón Bolívar. O revolucionário que sonhou com uma única nação para os povos latino-americanos”.
          Pero, pero: diferente de anos anteriores, a notícia do primeiro lugar dessa escola de samba veio como um apêndice, ao fim de um bom enche-lingüiça. Se não, mirem: somente depois de se saber dos malotes com 560 notas, anotem, de se ir a arquibancadas, a envelopes que serão abertos, a perdas de pontos na contagem, etc. etc, aí por volta do décimo rato momento aparece a escola Vila Isabel. No décimo primeiro instante o mestre-sala da Vila chora, até o raro momento em que os belíssimos lhamas voltam, e bandeiras da Venezuela aparecem, com a informação, dita de passagem, que a escola recebera um milhão de dólares da petrolífera da Venezuela. Se olvidamos esta cifra que é de Jefferson, o anão Roberto, pero não de Bolívar, o gigante Simón,  pois se divulgara antes em toda a imprensa um patrocínio de 500.000 dólares, é de se notar que numa reportagem de 3 minutos e 41 segundos,  a Vila Isabel recebeu míseros 30 segundos para a razão do campeonato, o seu desfile. A própria notícia do prêmio de campeã veio em sétimo lugar na edição de 1.3.2006.
          Diferente da notícia do campeonato da Beija-Flor, no carnaval do ano passado. Em 9.2.2005, o anúncio de “Beija-Flor é tricampeã” foi o destaque do jornal. Como um samba-enredo no ar, de salve, salve a gente bronzeada do Brasil, ela abriu o JN em tom de apoteose. Na primeira ala, “os foliões lotaram uma das arquibancadas da passarela do samba”. Na segunda, “se divertiram, cantaram, dançaram até a chegada dos malotes”. Na terceira, a Beija-Flor começa a crescer. Na quarta, tensão e transporte para...Na quinta explodir “A festa do tricampeonato incendiou as arquibancadas”. E partiu pro abraço, como completaria o narrador-mor das inenarráveis partidas de futebol. Tudo era alegria. Imagens de riso e emoção para a vitória da “escola que mostrou a história do cristianismo e dos sete povos das missões no Rio Grande do Sul”.

A razão, as razões

          Como se vê, a notícia, até mesmo na sua ausência, vem construída muitas edições antes. A reportagem, queremos dizer, a fórmula de reportagem do Jornal Nacional construída como um thriller, com antes, durante e depois na burra ordem que um dia foi rejeitada por Godard (“Todo filme tem começo, meio e fim”, disse-lhe uma vez um crítico. E Godard, “sim, mas não nessa ordem”), a fórmula que se repete ano após ano, com os closes nas lágrimas para expressar o sentimento, com a voz que narra a imagem dos negros na beleza e no luxo, uma exceção de todos os anos da imagem negra, essa fórmula pronta vem de vários carnavais.
          Mas a terra gira, a roleta e a história com ela. Improvável era até então, no mundo dos desfiles das escolas e dos sambas-enredo, um sentimento à esquerda, com o devido perdão de Mano Décio, ou mesmo da afirmação de algo antiimperialista. O enredo teatral, de megaespetáculo, com todos os equívocos das sínteses apressadas, com os costumeiros assassinatos dos fatos históricos, jamais poderia prever o destaque para o herói Simón Bolívar, erguido com mais de 13 metros de altura sob o patrocínio de um governo anti-Bush. Quis o gênio de Hugo Chávez, esse nome que não se pronuncia no JN, e se o for jamais com um tom simpático, quis a imprevisibilidade do presidente venezuelano e com ele a roda histórica que assim fosse. Pois Chávez é o homem que até mesmo na cena da coroação de reis e de rainhas sempre roubará a cena. Quem sabe, em tom de broma, arrancando a coroa real e assentando-a na própria cabeça, para depois, com mil perdões devolvê-la ao dono.
          Pois foi esse homem que vindo da Venezuela para o Brasil, e do Rio de Janeiro para todo o mundo, no carnaval entrou nos periódicos da Inglaterra à China como financiador de escola de samba, e, pior para a mídia brasileira, como o sócio da campeã dos desfiles em 2006. É mesmo um gênio do mal, como o pinta Bush. Daí que a “sua” escola apareça no JN como um cortejo de lhamas e sombreiros, antes do resultado da apuração. Depois, na vitória, com os mesmos lhamas acompanhados pelo gigante Bolívar, pero destituído de qualquer conteúdo político, sem menção a Guevara e ao general Abreu e Lima, esse bravo de Pernambuco que foi lutar em toda a América. A repercussão mundial dessa vitória, de novos personagens que entram na passarela do samba, dessa “politização” à esquerda na alegria, não entra nem pode nem deve entrar na pauta do Jornal Nacional. Daí o silêncio, o vago ar de absurdo silêncio, gerado pela notícia que pulou fora da pauta de todos os anos.  Uma ausência assim, em um jornal ufanista que adora notícias do Brasil no mundo, chega à fronteira da ficção-maravilha. Como diria Zeca Pagodinho, só no cinema.

Urariano Mota

 

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