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Vamos partir do seguinte juízo: compor um samba-enredo é tarefa difícil, e não estou sendo irônica. O samba-enredo pode ser definido como uma obra de arte nascida de um briefing. Para quem não está familiarizado com o termo, briefing é daquelas palavrinhas que publicitários adoram: o anunciante quer vender tal produto – margarina, por exemplo – e diz à agência o que a propaganda deve reforçar – tem menos gordura e espalha mais fácil no pão. Pronto, esse é o briefing. O samba-enredo segue a mesma dinâmica. Não que esse tipo de samba seja meramente um jingle crescido, mas reza na mesma cartilha. A música deve contemplar todos os itens do enredo, seja ele dedicado a algum vulto da história ou à preservação do meio-ambiente. E deve fazer isso: 1) rimando; 2) criando um refrão empolgante; 3) possibilitando formas intercambiáveis de se cantar (pode trocar a primeira estrofe com a última e tudo ainda fará sentido).
Apesar da variação praticamente inesgotável de temas e motes, ano após ano, as alas de compositores das escolas enredam-se em fórmulas multi-uso que servem com a mesma eficiência, não importa o homenageado em questão. Pode ser o desmatamento de Tiradentes ou o esquartejamento dos botos da Amazônia. Foi diante dessa constatação que um belo dia, nove ou dez anos atrás, uma reunião familiar terminou com um samba-enredo inteirinho composto.
Lembro que a ala de compositores reunia meu irmão, meu falecido pai, meu marido e pelo menos dois primos, além de mim mesma. Só pelo número de artistas envolvidos, logo saquei que a coisa seria boa. Samba-enredo que empolga a arquibancada tem que ter pelo menos quatro ou cinco autores, fora os dezessete puxadores, isso desde o antológico Bumbum-praticumbum-prucurundum, que tinha uma relação de compositores mais longa que o nome de D. Pedro I e terminava com um emblemático Beto Sem Braço (lembra?).
Acordamos, desde o prólogo, que deveríamos trabalhar em cima de algumas palavras-chave. Na língua portuguesa, algumas palavras parecem cumprir uma existência cármica. Não vieram a esse mundo à toa. Por exemplo, “murmurar”. Ninguém murmura fora de bolero, murmurar é uma palavra que só faz sentido em bolero, por isso Aldir Blanc merece um 10, com distinção e louvor, por tê-la usado em “Dois pra lá, dois pra cá”. Da mesma forma, há termos que só cumprem sua missão na Terra se estiverem dentro de um samba-enredo, como a palavra “açoite”, para citar apenas uma. Mas são várias. Só de listá-las, fizemos o refrão.
Surgiu, então, a idéia de compor um samba só de refrães. Que abandonamos porque nos pareceu aquém de nossa capacidade de efetivamente contar uma história. Fomos evoluindo, acrescentando personagens que povoam o imaginário do samba-enredo desde sempre, não importa se ele verse sobre folclore ou a evolução dos transportes (ou das comunicações, ou das telenovelas da Globo). E chegamos a um samba-enredo consistente, com um refrão poderoso e todos os ingredientes para fazer sacudir a Sapucaí (ou o Anhembi, e aqui está outro valor agregado de qualquer bom samba-enredo da atualidade, que deve servir indistintamente para o Rio ou para São Paulo, já que a rima é a mesma).
A questão é que nenhum dos compositores de nossa ala jamais participou da ala de compositores de escola nenhuma. E ficamos com essa jóia rara nas mãos. Na qualidade de empresária, ou curadora da obra, sei que está meio em cima da hora, mas coloco nosso samba-enredo à disposição ainda para o Carnaval 2006. Reforço que a letra é passível de “customização”, encaixando-se sem maiores percalços em praticamente qualquer enredo. A melodia é fácil, pena não poder mostrá-la porque, infelizmente, nunca chegamos a gravá-la, mas mantém-se viva a chama da esperança. A quem interessar possa, a letra do samba é a seguinte:
Os escravos de Iemanjá
De noite entravam no açoite
E cantavam o seu refrão Pedindo pela sua salvação
Ô-a-la-la-ô, a-la-la-ô
A Mãe D´Água da Nega Fulô
E o saci-pererê cantava tenha fé
Que um dia cê vai ver
(Quero beijar você!)
Quero beijar você Ô, balancê, balancê
Balança, balança minha gente
Que a galera vai treme
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