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Voz
suprema da Avenida e dos morros, síntese do samba-enredo, nome que o traduz
e esgota numa única palavra, Jamelão chega aos 92 anos amanhã, 12 de maio.
Já vai à passarela mais como homenageado, a receber com altivez distanciada,
inabalável traço de sua personalidade, a reverência do público: a precisão
do moderno som tecnológico atenuou o esforço da inconfundível voz guia,
eco do desfile dos tempos românticos. Nessa quadra, quando toda a escola,
passista a passista, pastora a pastora, do início ao fim da pista, e toda
a assistência cantavam o samba, só uma matriz vocal poderosa e infalível
era capaz de conduzir o imenso coral a harmonizar-se sem tropeços com
o ritmo e a cadência da bateria. Jamelão fez isso durante décadas, para
alegria geral e, em particular, comovidos agradecimentos de sucessivos
diretores de harmonia da Estação Primeira de Mangueira, a sua escola,
da qual é um dos mais fortes símbolos.
O canto áspero e portentoso gritou primeiro, a construir-se pelas ruas,
as manchetes de cada dia: Jamelão, carioca de São Cristóvão, nascido em
1913, foi pequeno jornaleiro, numa época de maior oferta de atividades
adequadas à infância sem meios. O mitológico compositor Gradim (Lauro
dos Santos), parceiro de Noel Rosa e Ismael Silva, autor de sambas gravados
por Francisco Alves e Mário Reis, levou-o para a Mangueira no fim dos
anos 20, mal a escola havia sido fundada. O samba-enredo sequer existia.
As escolas, com freqüência, cantavam no desfile dois ou três sambas, nenhum
necessariamente vinculado ao tema escolhido para a apresentação. Quando
o samba-enredo se estabeleceu como modalidade indispensável, uma necessidade
criada pelo desenvolvimento das escolas, peça imprescindível à exposição
da dança dramática que elas vinham mostrar, exigiu canto universal sem
discrepância. Só vozes imperiais poderiam moldá-lo e sustentá-lo. Jamelão
esculpira a sua, que na meninice gritava notícias, em intensa atividade
de crooner de gafieiras, dancings e cabarés, na qual tinha de sobrepor-se,
sem o arrimo de caixas de sons ou mesmo de microfones, aos vibrantes naipes
de metais das orquestras.
É o solista principal das escolas (ele repele a designação de puxador,
a seu ver injuriosa, resíduo dos preconceitos que açoitaram o samba nos
primórdios) desde os tempos em que a única distância, escrupulosamente
respeitada, entre platéia e sambistas era a corda móvel, transportada
pelos próprios componentes, que isolava passistas, ritmistas e baianas.
Viveu todas as mutações do samba-enredo como seu intérprete máximo, ideal,
condição reconhecida e proclamada pelos rivais e seguidores mais qualificados.
José Bispo Clementino dos Santos nos documentos pessoais, só José Bispo
ou Ferreira dos Santos nas partituras e nas planilhas do direito autoral
de sua relativamente pequena mas valiosa obra de compositor, Jamelão é
especialíssimo também como cantor do sentimento, porta-voz veraz e convincente
das emboscadas do amor e da vida. Nas casas de baile, no rádio e no disco,
impôs-se com estilo e timbre únicos, para os quais jamais foi apontada
a mais remota sugestão de modelo ou influência e que excluem, pela absoluta
particularidade, a possibilidade de imitadores.
Voz de legítima e sincera extração popular, é, no entanto, solene. Parece
exigir a grande formação orquestral. Sua interação com a Orquestra Tabajara,
de Severino Araújo, por exemplo, é perfeita. Era a combinação preferida
das platéias do Projeto Seis e Meia, repetida, com a Praça Tiradentes
a expandir-se em filas, a cada edição dessa série memorável no Teatro
João Caetano. No samba de breque “Baile no Elite”, João Nogueira e Nei
Lopes celebraram a junção definitiva: “Subi a velha escadaria e dei de
cara/ com a Orquestra Tabajara/ e o popular Jamelão/ cantando só samba-canção”.
Precisamente aí, no acompanhamento, uma vinheta cita, ao trombone, “Folha
morta”, de Ari Barroso, uma culminância no entrosamento entre o grande
cantor e a grande orquestra. A comunhão se deu e cresceu na convivência
profissional de artistas contratados do mesmo cast, no auditório
da Rádio Tupi como nos estúdios da gravadora Continental. Alargou espaços
e fronteiras: Jamelão e a Tabajara foram a sensação de uma das festas
inesquecíveis do milênio passado, o baile que o estilista Jacques Fath
promoveu no Castelo de Coberville, perto de Paris, em 1952, para marcar
a estréia do algodão brasileiro na alta-costura européia.
Na volta, recusados os convites para permanecer na Europa, cantor e orquestra
fizeram a Porto Alegre a excursão que acabaria por completar o perfil
artístico de Jamelão, aproximando-o da obra de Lupicínio Rodrigues. Os
sambas do compositor gaúcho, no vigor vocal e na dimensão pungente da
interpretação de Jamelão, ganharam nova moldura, pode-se dizer nova forma
final, constituindo-se quase um gênero à parte, com seguidores esmerados.
De um destes, o santista Lúcio Cardim, Jamelão gravou meia dúzia de exemplares
típicos, com destaque para o clássico “Matriz e filial”, tão lupiciniano
que chega a ter a autoria confundida, quase sempre atribuída ao grande
Lupe. O próprio Jamelão, sob a assinatura de José Bispo, passou a compor
também no estilo, como se constata, em um de seus discos recentes, no
samba “Por força do hábito” (parceria com Luís Antônio Xavier), nestes
versos finais que Lupicínio Rodrigues assinaria: “Por força do hábito/
ainda ponho dois pratos à mesa/ um para mim, um pra dona tristeza/ companheira
que em casa surgiu”.
Nesse repertório da emoção amorosa dolorida e adulta, na empolgação do
samba-enredo, na louvação de seu reduto e de sua gente (quem não conhece
“Exaltação a Mangueira”, de Enéias Brites e Alúisio Costa?) ou na representação
viva do morro, de todos os morros, parte que lhe coube na “Sinfonia do
Rio de Janeiro”, criada para uma constelação de intérpretes por Billy
Blanco e Tom Jobim em 1954, Jamelão mantém cativo um público de gerações,
crescente e renovado. Admira-se nele o raro, inigualável, cantor. Mas
igualmente o artista popular de irremovível dignidade e intransigente
decência. Jamais prestou qualquer reverência a cardeais da indústria do
entretenimento nem fez qualquer tipo de concessão a gostos eventualmente
dominantes. Ignora jogadas mercadológicas e novidades superficiais. Não
bajula os meios de comunicação nem platéias de qualquer espécie. Vem,
canta o produto da sua cultura do qual é a voz, e pronto. No ano 2000,
cantou na Avenida um samba-enredo sobre um “príncipe do povo, rei da ralé”.
Podia ser ele.
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