Canta, João!

 

           — Seu nome, por favor?
           — João Nogueira, senhor.
           — João Nogueira... deixa eu ver sua ficha. Ah! O senhor era sambista.
           — Isso mesmo! Mas sambas dos bons, daqueles que se ouve pouco por aí nos tempos de hoje.
           — É, tem razão... estão fazendo tanta porcaria hoje em dia. O senhor pode entrar. Aliás, pelo que vejo na história de sua vida, o senhor entrava em qualquer lugar, era bem quisto por todos...
           — Ah, isso realmente eu era. Eu ia em qualquer quebrada, da zona norte à zona sul, do Rio à Minas, o Brasil todo. Mas meu QG era mesmo no subúrbio, num lugar que parecia o céu... todo azul e branco... lá na minha querida
Portela. Lá eu era um dos bambas entre tantos.
           — Vamos entrando então, João?
           — Senhor, é o seguinte: Não daria para me enviar para onde estão os meus compadres? O senhor deve saber quem são....
           — Eu já estava adivinhando, João! Todos que chegaram antes de você pediram a mesma coisa. Meu anjo assistente vai levá-lo até lá. E fica sossegado, que esse meu anjo é muito gente boa.
           Nisso chega um anjo. Um negro sorridente e alegre, cantarolando Praça Onze.
           — Anjo Otelo, queira por favor, encaminhar esse senhor aos 'outros bambas'.
           — Pode deixar, doutor! Estávamos esperando por ele.
           — Puxa, João! Estava com muita saudades de você... o pessoal tá lá no Botequim . Estão fazendo sambas maravilhosos, a Clara Nunes continua com sua voz inconfundível, o Cartola e o Carlos Cachaça compondo sambas como nunca. Eu mesmo estava bebericando umas com o Nelson Cavaquinho mais o Noel Rosa. Inclusive a roda de samba está formada, tem o Candeia, Roberto Ribeiro, Pixinguinha, Zé Ketti, Paulo da Portela, Mestre Marçal, está a turma toda. Estão esperando você, irmão.
           — Não acredito! Você de anjo? Que papel é esse Grande Otelo?
           — Ah, você sabe... João, é mais um papel que estou fazendo. E mais um que faço com prazer. Mas, vamos indo que o samba já vai começar.
           Nisso foram os dois conversando pelas esquinas do céu. Parando em alguns botequins pelo caminho. A noite prometia mais um sarau, com a constelação de todos os bambas. Naquela noite, o céu 'Clareou', os acordes que saiam do bojo perfeito do mestre Cartola faziam o vento dançar. E o 'Poder da Criação', observava feliz e orgulhoso aqueles seres privilegiados de talento e poesia. Feliz por ter dado à eles esse dom divino. E João de todos os sambas soltou sua voz, que correu os céus e desceu à Terra, ecoou no Méier, passou pelos Arcos da Lapa, na Cinelândia, subiu as escadarias do Elite e os morros, entoou pelas favelas, desceu e foi para Madureira.... pairou sobre a Portela. E voltou para o céu em forma de Águia.
           Canta, João!

José Ricardo Leite
Especial para o Portal Academia do Samba

 

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