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Nem
sempre vale o escrito, sabemos muito bem. Estão aí as leis que não nos
deixam mentir – muitas vigoram só no papel. Se valesse o escrito na certidão
de nascimento da Tia Eunice, emérita pastora da Velha Guarda da Portela,
ela
faria aniversário em 16 de maio. Foi nesse dia, em 1920, que o pai a
registrou. Para não pagar multa pelo atraso no registro, ele omitiu a
verdadeira data de nascimento de Eunice: 24 de junho de 1919. A pastora
completa hoje 86 anos. A bênção, tia!
A grandeza de alma de Eunice é coisa rara. Passou por muitas adversidades
na
vida e talvez até hoje não tenha o justo reconhecimento pelos serviços
prestados ao samba carioca. As famosas rodas que promovia em seu quintal
em Turiaçu, com fogão de lenha sob um caramanchão de chuchu, revelaram talentos
que se espalharam pelas escolas de samba do eixo Madureira-Oswaldo Cruz,
com
destaque para a Portela. Fosse só por essa proeza – na distinta linhagem
de Tia Ciata – e Eunice já mereceria honrarias.
Mas
ela foi além. Domina como poucos a dança do miudinho, uma das mais
difíceis e admiráveis do reino do samba. E canta divinamente. Doca e
Surica,
suas companheiras na Velha Guarda da Portela, concordam que Eunice tinha
a
mais bela voz entre todas as pastoras da cidade.
Se
a gente fala isso, Tia Eunice fica tímida, muda de assunto. Aí a gente
vê
como se porta uma rainha. Outro dia, na casinha simples de vila em que
mora,
em Turiaçu, pedi que ela cantasse nem que fosse um trechinho de uma canção
qualquer. Depois de muita insistência, ela entoou Canto de Areia, música
imortalizada na voz de Clara Nunes. A voz melodiosa de Eunice fez com
que
todo o resto fosse um silêncio profundo e por um momento meu coração
mergulhou na paz suburbana, longe de tanta aflição que a vida nos impõe.
Hoje é seu aniversário, tia, mas jamais vou poder retribuir um presente
como
aquele canto que a senhora me deu.
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