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Anunciaram
e garantiram que o samba ia se acabar. Assim diria Assis Valente (1911-1958),
numa paródia moderna à sua famosa composição sobre o fim do mundo, cantada
por Carmen Miranda nos idos de 1930. Disseram até que o gênero fora morto
pela bossa nova e, mais adiante, pelo tropicalismo. Décadas depois, nos
anos 1990, o carrasco teria sido o pagode romântico de estúdio feito com
sintetizadores. Embora tenha enfrentado a concorrência de vários modismos
nos últimos vinte anos e apareça pouco na mídia hoje, o samba é o mais
popular e duradouro ritmo musical brasileiro do século 20, além de uma
das mais expressivas manifestações culturais do país - indissociável do
Carnaval.
Assim como o jazz e o blues na América, o samba atravessou
um século com mutações, fusões, adesões e experimentos. Um ritmo que se
reacende a cada ano na folia de momo e nos discos de seus mais vigorosos
representantes hoje: Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre ou
Luis Carlos da Vila, entre outros. Como explicar tantas mortes anunciadas
e renascimentos e compreender tamanha popularidade que ainda desfruta?
Ou por que o samba se impôs nos primórdios da indústria fonográfica e
radiofônica ou foi adotado por Getúlio Vargas para estabelecer uma identidade
cultural?
Esses e outros temas são discutidos em três teses de doutorado das mais
importantes porque ajudam a redimensionar os papéis histórico e cultural
do samba. O curioso é que os autores são todos paulistas, fato que parece
ter ajudado a dar um útil distanciamento para que fossem feitas leituras
coincidentemente complementares e reveladoras de uma música tão marcante
como sendo carioca, embora tenha vindo da Bahia e se instalado também
em São Paulo.
Em Abençoado e danado do samba, Ricardo José Duff Azevedo recorreu
a um extenso acervo de 7 mil letras de samba para mostrar valores da tradição
oral brasileira. Ele explica por que canções do gênero fazem parte do
imaginário popular. Apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria
Literária e Literatura Comparada do Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da USP, a dissertação partiu do princípio de que as letras de
samba representam um extraordinário acervo de algo que poderia ser chamado
de "discurso popular".
Azevedo destaca que as culturas populares e suas manifestações tendem
a se processar por meio de "padrões de longa duração". O fenômeno
seria contrário ao das culturas moderna, de massa e erudita, que seguiriam
"padrões de curta duração" - quase mecanicamente em busca do
"novo", da "nova forma" etc. Assim, nos sambas, por
estarem vinculados aos processos de longa duração, os procedimentos com
a linguagem e muitos temas seriam recorrentes no decorrer de todo o século
20 até hoje. Alguns deles: a família, o trabalho, a festa, o envelhecimento,
a morte, a religiosidade, o "nós", entre outros assuntos ligados
à vida concreta e cotidiana.
Malandro - A tese de fôlego de Azevedo - ainda sem editor - reúne
cerca de 500 letras de samba, recolhidas de um universo de mais de 7 mil
músicas, das quais fez uma pré-seleção de 4,8 mil. Em vez de recortar
períodos históricos, ele procurou demonstrar recorrências num espectro
amplo, o que permitiu uma outra compreensão da importância do samba. O
autor considera um equívoco, por exemplo, o fato de muitos estudos localizarem
o "malandro" nas décadas de 1930 e 1940 e falarem de seu "desaparecimento".
O que pode ter desaparecido, explica, é uma certa versão do malandro.
"O samba fala de malandragem e adota um 'tom malandro' desde o primeiro
samba gravado até agora." Na verdade, o malandro nunca existiu, isso
sim, num discurso mais culto, também presente nas letras da música popular
brasileira.
Ao mesmo tempo que as culturas populares costumam
ser solenemente desprezadas pelas elites culturais, têm marcado e sido fontes
de parte significativa da cultura erudita brasileira através de todo tipo
de apropriação. "Defendo a idéia de que as letras de samba só podem
ser compreendidas e avaliadas quando vistas como expressão de um determinado
modelo de consciência. No âmbito da música popular brasileira vejo o tropicalismo
como a representação mais acabada e nítida de um modelo que chamei de 'oficial'."
O autor utilizou várias letras tropicalistas de forma comparativa para ressaltar
as características das letras de samba.
Enquanto as composições tropicalistas tendem a pressupor leitura, releitura
e interpretação da realidade vista por seus autores, as de samba costumam
ser criadas para o compartilhamento, a comunicação imediata e a memorização,
sempre por meio de temas amplos, capazes de gerar grande identificação entre
as pessoas. Daí sua popularidade e massificação. Dentro dessa lógica, trata-se
de uma produção para a qual a música convida a comunidade a participar,
"uma vez que sua função como espectador não é aceitar passivamente
sua obra, mas repeti-la novamente para si mesmo".
No caso do tropicalismo, por exemplo, esses temas tendem a desaparecer do
discurso escolarizado e oficial, que optou por temas mais específicos de
uma forma muitas vezes distanciada, analítica e impessoal, como se propusesse
uma "teoria". "Não pretendo criticar o tropicalismo, dizer
que o samba é melhor ou pior, mas, sim, ressaltar que as letras do tropicalismo
foram criadas a partir de um modelo construtivo e de padrões éticos e estéticos
diferentes daqueles utilizados pela maioria dos sambistas, sejam eles alfabetizados
ou não."
Indústria - Cada vez mais o samba deixou de ser, nas primeiras décadas
do século 20, uma música tradicional para se tornar um produto da assim
chamada indústria de diversões. A possibilidade de profissionalização do
músico popular, a chegada do rádio comercial - em busca de novidades - e
o projeto nacionalista do governo de Getúlio Vargas mostraram o envolvimento
de boa parte da sociedade brasileira na criação do "samba nacional",
um misto de tradição e modernidade. Essa é a síntese da tese de José Adriano
Fenerick, Nem do morro, nem da cidade: as transformações do samba e a
indústria cultural - 1920-1945 - também defendida na FFLCH da USP.
Fenerick viu na modernização do Rio de Janeiro nos primórdios do século
passado, em sintonia com o surgimento de novos meios de comunicação, um
cenário propício para que o samba sofresse inúmeras transformações. Assim,
a partir da década de 1920, com a difusão da indústria fonográfica, o ritmo
começou a se transformar e a se modernizar. Deixou de ser apenas uma festa
feita em casas de mães-de-santo para ganhar outros significados. Num primeiro
momento tornou-se gênero musical, identificado com a população negra do
Rio de Janeiro. Logo após passou a ser um misto de música e dança, identificado
com o Brasil. "O samba se acariocava e tomava a frente pelo fato de
o Rio ter sido pensado, na época, como uma espécie de 'cartão-postal' do
país", explica o pesquisador.
A
indústria do disco teve grande influência no surgimento desse novo tipo
de música, que Fenerick denomina de "samba moderno". O samba
de pagode, praticado como partido-alto, que era composto de improvisos
a partir de um tema, podia durar um dia inteiro. Com sua gravação em disco
não se pôde mais improvisar, ao menos na letra, pois se estabeleceu uma
versão definitiva, registrada em acetato e que passou a ser difundida
pela sociedade também através do rádio para todo país. Além disso, o sambista
ganhou status de músico profissional, principalmente os cantores, já que
os compositores tiveram inúmeros problemas para se estabelecer.
Nesse aspecto, um dos tópicos tratados por Fenerick foi a ainda pouco
investigada venda de sambas - quase sempre abordada como folclore por
biógrafos e historiadores de música popular. "A necessidade de mostrar
a música em um mercado tacanho gerou o 'jabá' ou, pior ainda, a famosa
'compra e venda' de samba." O aspecto sociológico do samba foi investigado
também. Se no imaginário popular ficou a lembrança de Francisco Alves
e Carmen Miranda, entre outros, a do morro estava associada a algo ruim
- representado como lugar de negro, de malandro, de vadiagem e de violência.
Tudo de modo muito pejorativo. Essa imagem viria a se perpetuar desde,
pelo menos, o fim da escravidão.
O rádio também foi visto pelo governo, e por boa parte dos intelectuais,
como um meio "nobre" de "educar o povo". Segundo o
pesquisador, o discurso era potencializado, enfatizando o perfil ideológico
que intelectuais e mesmo o governo Vargas queriam levar a cabo. Não por
acaso, veio desse período a invenção do samba-exaltação, cujo maior símbolo
foi Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964). Criou-se uma
mitologia de que o "samba puro" vinha do morro, mas Fenerick
concluiu que, tanto o samba do morro como o do asfalto (da cidade) estiveram,
e ainda estão, interligados. "O sambista de rádio ia até o morro
para comprar um samba para gravar, do mesmo modo que o sambista da escola
descia até a cidade para desfilar no Carnaval."
Varguismo - O aspecto político destacado por Fenerick aparece de
modo mais aprofundado no estudo do músico e historiador Magno Bissoli,
autor de Caixa preta: samba e identidade nacional na era Vargas - impacto
do samba na formação da identidade na sociedade industrial: 1916-1945,
outra tese sobre o tema defendida na FFLCH da USP. Bissoli afirma que
Getúlio Vargas, enquanto estava no poder, pegou uma carona na aceitação
popular desse gênero musical e deu um impulso considerável à sua difusão
e afirmação como ícone do país. "O processo de popularização do samba
era iminente, mas certamente a política de Vargas contribuiu para a sua
consolidação no panorama nacional", explica.
A exemplo das doutrinas fascistas da Europa, o governo pós-1930 sempre
se caracterizou pela exaltação ao nacionalismo. Mas como difundir, pergunta
o pesquisador, uma identidade nacional num Brasil com apenas quatro séculos
de história e cuja maior parte da população era composta de descendentes
de escravos e pessoas marginalizadas, principalmente negros e mestiços?
O varguismo então teria tentado forjá-la com bases na cultura, ao lançar
mão de artifícios semelhantes aos usados por Benito Mussolini na Itália.
Seus métodos iam desde a projeção de filmes em paredes de casas e a instalação
de autofalantes em praças interioranas e em favelas à estatização de veículos
de comunicação e censura da imprensa.
O Estado Novo, deflagrado por um golpe em 1937,
investiu nesse propósito por meio do controle cultural e midiático. Na verdade,
já em 1931, o presidente Vargas criou o Departamento Oficial de Propaganda,
que depois seria transformado no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),
em 1939, que se tornou responsável pela censura à imprensa e pela propaganda
ufanista da ditadura. Com seu crescente e promissor poder de influência,
o rádio se tornou fundamental nesse processo. Em 1940, a Nacional passou
a ser controlada pelo Estado e a apresentar programas musicais de conteúdo
popular.
Um destaque dessa onda ufanista que tomou conta do país foi o compositor
e radialista Henrique Foréis Domingues (1908-1980), o Almirante. Conhecido
como "a maior patente do rádio brasileiro", ele se tornou "uma
figura importante para a propagação, pelo rádio, da idéia de uma nacionalidade".
No mesmo período foi criada a Orquestra Brasileira, com o maestro Radamés
Gnattali (1906-1988), que, na onda nacionalista, interpretava a música brasileira
com o mesmo tratamento destinado à estrangeira. Nessa época, narra Bissoli,
surgiram diversas composições, algumas de sambistas famosos, que apoiavam
Vargas e o Estado Novo. Nomes como Ataulfo Alves, João de Barro (Braguinha)
e Moreira da Silva compuseram e interpretaram algumas dessas composições,
num claro exemplo de que o samba estava, cada vez mais, atingindo a grande
massa.
Outro ponto levantado pela pesquisa foi o de que para ser aceito pela sociedade,
principalmente pela elite, o samba devia "embranquecer" - ao ser
adotado por cantores e compositores brancos. Como Noel Rosa, cuja obra deixou
a certeza de que o samba não morreria nunca. Mais que isso, seria eterno.
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