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O
samba é um dos ritmos mais populares da cidade do Rio de Janeiro e têm
grande importância em sua identidade cultural. Durante o ano inteiro muita
gente participa das produções ligadas ao “mundo do samba”. Mas o sambista
compositor é que se projeta, tem a visibilidade e é símbolo deste mundo
e referência cultural de significativo setor da população carioca. Saber
o que ele pensa acerca da escola, como a vê e como ele se vê nela ou fora
dela é uma forma de olhar a escola formal a partir de outro ângulo, permitindo
que apareçam aspectos privilegiados por este olhar, possibilitando outra
leitura da escola em sua relação com a clientela e sua cultura antropológica
de origem.
Em nossa pesquisa, que resultou numa dissertação de mestrado,
entrevistamos 10 compositores do bairro de Oswaldo Cruz, subúrbio intimamente
ligado à história do samba na cidade do Rio de Janeiro, e do Grêmio Recreativo
Escola de Samba Portela, criado no mesmo bairro, também uma instituição
fundamental na história do gênero.
Conceitos que dão samba
Neste estudo, reconhecemos
o caráter polissêmico do conceito de cultura e suas acepções, procurando
definir o conceito com o qual trabalhamos. Partimos de uma síntese de
Gilberto Velho (1994) quando diz que os homens em interação social,
“participam sempre de um conjunto de crenças, valores, visões de mundo,
rede de significados que definem a própria natureza humana” (p.63).
A cultura, no sentido antropológico, entendida como um elemento dinâmico,
em movimento, em transformação, um elemento vivo. Esta é a conceituação
que orienta o presente trabalho.
Assim,
o que fica além das inúmeras concepções do termo, é a compreensão de
que não existe a cultura, mas culturas. Reconhece-se,
ainda, que as culturas estão em relação, havendo trocas entre elas,
não existindo cultura pura, “e que o outro não é nunca absolutamente
o outro e que há sempre algo de nós nos outros” (Cuche, 1999:243).
Quando
se fala em samba, remete-se à concepção de cultura popular. O
uso sistemático do termo “cultura popular” na imprensa e na academia
mostra a importância que tem, ainda que nesta última o conceito seja,
às vezes, desconstruído, buscando negar uma “pureza” e uma “autenticidade”
que lhe seria inerente e de apontar seu caráter dinâmico, de mistura
e de entrecruzamento. De fato, se formos estudar qualquer fenômeno cultural
que tenha como referência a população de baixa renda, de periferia das
grandes cidades ou de áreas marginalizadas socialmente, o termo se impõe,
mesmo que seja para uma análise crítica do seu uso.
Monique
Augras, em seu livro O Brasil do samba-enredo (1998), logo na
apresentação enfrenta a questão afirmando que não gosta do nome ‘cultura
popular’ (p.9), pela sugestão que parece carregar de corte, diferenciação
quase natural, com a cultura ‘erudita’. Mas admite o termo ‘popular’
através da “idéia que designa exclusivamente um lugar de produção
cultural” (p.10).
Para
Marilena Chaui (1996), a cultura popular não deve ser vista como uma
totalidade em oposição antagônica à totalidade dominante, mas reconhecida
num “conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência
que possuem lógica própria” (p.25), onde estão presentes o conformismo,
inconformismo e a resistência à cultura dominante, que é o que
distingue cultura popular da cultura dominante.
Concordando
com as relativizações acima e reconhecendo a existência de várias culturas
populares, utilizamos um termo que dá especificidade ao nosso estudo:
a cultura do samba.
Educação e cultura(s)
Pensar educação também no sentido mais amplo que escolarização,
como forma de socialização de saberes, e cultura em seu sentido antropológico,
é uma idéia que ganha corpo na pedagogia, inclusive em termos oficiais.
A uniformidade vigente no currículo, o conteúdo dos livros didáticos e
a organização da escola – a cultura escolar
[1] constituída – sempre estiveram presentes entre os fatores que
pesaram no fracasso escolar. A cultura escolar, homogeneizada, desconsidera
as diferenças. Assim, para Juarez Dayrell (1996:140):
Uma outra forma de compreender esses jovens que chegam à escola é apreendê-los
como sujeitos sócio-culturais. [...] Trata-se de compreendê-lo [o aluno]
na sua diferença, enquanto indivíduo que possui historicidade, com visões
de mundo, escalas de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos,
com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios.
Ou seja, são estudantes que têm uma cultura diferente. Os alunos, provenientes
de bairros populares, têm a escola, muitas vezes, como um instrumento
que o aliena de sua cultura, mesmo levando-se em consideração que esta
não seja pura, estática, e esteja continuamente sendo cruzada por outras
culturas, inclusive a cultura escolar. Gimeno Sacristán, criticando as
acepções mais ou menos restritas de cultura, diz, baseado em Aronowitz
e Giroux:
O desafio escolar, não fácil de ser realizado hoje em dia, está não em
opor esta alta cultura à cultura antropológica de referência do aluno,
mas em reconciliá-las, em fazer que cada uma delas encontre a relevância
na outra. (Sacristán, 1996:41).
Dessa
maneira, a distância entre a escola e os alunos tem contribuído para
que o conflito – e não apenas a tensão – entre cultura escolar e cultura
“antropológica de referência do aluno” se alargue, somando-se às outras
razões que produzem a evasão e o fracasso escolar. É preciso levar em
conta a comunidade e o público que a constitui para se entender esta
distância e pensar caminhos para um diálogo.
Podemos falar de uma cultura do samba?
Menos
do que criar um termo ou expressão, ao falarmos em cultura do samba,
estamos falando sobre o samba como vários autores (Cabral, 1996; Cavalcanti,
1995; Goldwasser, 1975; Lopes, 1981; Tramonte, 1996) se referem a este
gênero musical e toda a sua rede de significados, de produções, de espaços,
de formas de se comportar, de hábitos, de tradições renovadas a cada
ano – algo que lhe dá uma especificidade – que são interpretados pelo
termo mundo do samba. Esse termo é o que entendemos por sinônimo
de cultura do samba.
Para
entendermos a cultura do samba é necessário conhecer um pouco da história
do samba, sem o que só a perceberemos como expressão musical. Há uma
construção de redes de significados, costumes, solidariedade, afirmação
de valores, afirmação de um grupo social, de resistência cultural, política
e étnica, ao mesmo tempo em que há um processo de trocas. As ambigüidades
apresentadas neste processo acabam por revelar sua riqueza e complexidade.
Mas, o que é o
samba? De onde se origina? São perguntas que recebem respostas aparentemente
tão óbvias do tipo “é música negra brasileira”, “o samba veio da África”,
“o samba é música afro”, e por aí vai. Esta compreensão, embora não
deixando de ser baseada na realidade, é aquela do senso comum e simplifica
um processo rico, dinâmico e que não deve ser separado de determinados
processos sociais de nossa história. A cultura do samba é formada
na tensão entre o social, o econômico, o político e a herança cultural,
aqui ressaltando a religião e suas práticas sincréticas.
A
mistura de ritmos e a designação geral de samba para toda e qualquer
música afro-brasileira, foi superada pela organização das Escolas de
Samba, que apresentavam, com singularidade, uma nova forma de tocar
e cantar a música que se originara nos batuques, criando novos instrumentos
e dançando de forma peculiar, ainda que resultasse de uma estrutura
copiada dos Ranchos. O que interessa é que com as Escolas o samba obteve
uma visibilidade e identidade, de modo a não confundir com nenhum outro
ritmo: aquele era o samba. A divulgação do samba através do rádio
e das gravadoras, juntamente com um processo de contribuições diversas,
acabariam por ampliar as variações do samba, que continua até os dias
de hoje.
O samba pode ser
considerado um dos instrumentos de penetração do afro-brasileiro [2] na sociedade branca. E nesse processo a perseguição aos sambistas
foi grande. Sérgio Cabral (1996) cita alguns depoimentos como o de
Donga: ‘O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito
estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior ...” (p.27);
ou de João da Baiana: ‘A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro
na festa da Penha e a polícia me tomava o instrumento’ (p.28).
Como
diz Sodré (1988:134), para o negro, após a abolição, “a apropriação
da cidade como estrutura de encontro interétnico, criação festiva e
confrontação simbólica” se intensificou, porque antes o negro
tinha seu lugar – fixo e desumano, é verdade – mas depois ele
não tinha lugar algum. E são as Escolas de Samba, em nossa análise,
um dos mais importantes instrumentos dessa penetração.
Para
entendermos esse processo é preciso ter em conta os elementos que compõem
a cultura do samba:
-
Mediação cultural – A mediação cultural é aqui entendida
como a ação dos indivíduos e grupos, ou o local de realização, que efetiva
uma relação de troca entre indivíduos, grupos, espaços, de culturas
diferentes.
- Identidade cultural – Uma contínua criação/recriação da identidade
afro-brasileira.
- Afirmação social –A visibilidade positiva adquirida
pelos desfiles possibilitou maior inserção dos afro-brasileiros em nossa
sociedade historicamente preconceituosa.
- Memória coletiva –
Assim como várias manifestações populares, o samba funciona como
memória de um povo.
- Sociabilidade – Possibilita processos de integração social.
- Solidariedade – É um elemento próprio do mundo do samba, fruto
histórico das relações estabelecidas para a sobrevivência entre as camadas
pobres da população.
- Respeito aos direitos, contradições e conflitos – Há uma série
de valores morais que preservam a família, a liberdade religiosa e política.
No entanto, ao lado desses valores, aparecem o alto consumo de bebidas
alcóolicas, as relações com a contravenção, as relações machistas, que
refletem as condições materiais, históricas e culturais.
- Tradição e renovação – Tradição e renovação se afirmam dialeticamente.
- Socialização de saberes – Esse é o elemento crucial da cultura
do samba, sem o qual não seria possível o desenvolvimento dos outros.
Por que? Porque não se trata somente da socialização e transmissão de
saberes com referência à composição, instrumentalização e dança do samba,
bem como organização das Escolas de Samba e eventos como o desfile na
avenida, que por si só já são importantes. Trata-se, ao mesmo tempo, de
socializar ethos, códigos, estratégias de sobrevivência, de resistência
cultural, de afirmação de grupos sociais [3] .
O samba enredando a vida
As histórias de vida dos compositores nos possibilitam entender como esses
sujeitos ajudam a construir uma cultura musical e social que, particularmente
na cidade do Rio de Janeiro, é constitutiva da sua identidade cultural
e, de forma mais ampla, marca indelével da história de nosso país.
Wilson Moreira [4]
, negro [5] , nos diz: “convivo com o samba desde criança.” É assim que
fala de sua relação com o samba quando freqüentava as antigas agremiações
que existiam em Realengo e Padre Miguel e conta que “a música me veio
aos... 12, 13 anos de idade...”.
O compositor Monarco [6] , moreno, por sua vez, assim se expressa:
Meu envolvimento com a Portela é desde a infância. Eu morava em Nova Iguaçu
ainda, tinha lá meus sete, oito anos de idade, eu já ouvia aqueles sambas...
Noel Rosa... [cantarola] ‘salve Estácio/ Salgueiro, Mangueira/ Oswaldo
Cruz e Matriz...’ [...] Aí de repente a minha mãe se separou do meu pai
e viemos morar em Oswaldo Cruz. Ô destino!
Mauro Diniz [7] , negro, filho mais velho de Monarco, relata:
Minha mãe era dona de casa, ela era pastora da Escola, né, ela desfilava
na Portela também. O papai costumava falar que eu já freqüentava a Portela
dentro da barriga da minha mãe. Eu me lembro... ele falou que eu, com
1 ano de idade, ele me botou a fantasia da Portela.
Marcos Diniz [8] , negro, outro filho de Monarco, começou na União de Vaz Lobo,
com 7, 8 anos, e a admiração pelo samba fazia o menino pobre prestar atenção,
conta “...eu era garoto, eu ficava escutando, olhando para o nariz escorrendo...”
Diz: “primeiro samba que eu fiz foi aos doze anos de idade, mas eu comecei
a ter certeza das coisas foi com treze anos”, pois com essa idade ganhou
um samba no Bloco Xodó de Oswaldo Cruz, onde participavam compositores
respeitados.
Mas se existem exemplos de composição precoce, também temos outros que
não começaram tão cedo assim. Jair do Cavaquinho [9] , pardo, nascido no bairro de
Oswaldo Cruz, conta: “a minha infância toda foi no Grêmio Recreativo Escola
de Samba Portela. Eu, desde pequenininho, com 7 anos de idade, já fui
mascote da Escola de Samba Portela.” Portanto, a viu nascer. Mas surpreende:
“eu comecei a fazer samba era... foi em 1958”, ou seja, aos 36 anos de
idade!
Seu Argemiro [10] , negro, outro membro da Velha Guarda da Portela, revela: “eu
comecei essa vida de compositor aos 56 anos”! Mas o contato com o samba
foi desde a infância, quando o pai brigava com a sua madrasta e levava
os filhos para ficarem na casa da cunhada, perto da Portela, “...então
aí eu... minha prima ia sempre pra assistir ensaio, aí me levava, aí eu
ficava vendo” e se apaixonou pelos instrumentos de percussão.
Casquinha [11] , pardo, que retoma a composição
de samba após um intervalo de quinze anos, quando parou de jogar futebol,
aos trinta anos, sempre morou em área de samba: “... eu nasci em Anchieta,
[...] sou radicado aqui em Oswaldo Cruz desde... dos dez anos.”
Teresa Cristina [12] , negra, que viveu até os 28 anos na Vila da Penha, também
teve sua relação com o samba interrompida. Na adolescência, conta, “eu
comecei a gostar de rock, porque eu via todo mundo cantando rock... jornal,
televisão, era só rock...” Mas no seu caso, o território suburbano ficou
marcando a presença como elemento da cultura do samba. Como ela explica,
“... eu nem escolhi ser Portela, sabia? Quando eu nasci minha família
já era portelense. Tinha Escola de Samba? Era a Portela. Não foi uma coisa
que eu escolhi.” Aos 29 anos, casada com músico de um grupo de samba e
morando no Leblon é que principiou a compor sambas.
Outro exemplo de uma ligação mais diversificada em termos
musicais que, no entanto, não afastou a influência do samba que tinha
desde a infância, é o compositor Edinho Oliveira
[13] , negro. Nascido numa família grande, tendo vivido no bairro
de Rocha Miranda e há quase vinte anos em Oswaldo Cruz, desde cedo teve
contato com as batucadas. Seus contatos, no entanto, foram ampliados e,
como ele diz, trabalha “há 23 anos com música”, não se restringindo somente
ao samba.
David do Pandeiro
[14] , pardo, nascido em Bento Ribeiro numa família onde vários membros
eram músicos, acabou aprendendo samba em colégio interno na cidade mineira
de Passa Quatro, para onde foi internado pela mãe, após separar-se do
pai, como conta: “E lá em Passa Quatro, no meio da garotada lá de morro,
pessoal pobre lá, aquela coisa toda, mas gente de samba, eu, que já tinha
o samba no sangue, né, aí virei sambista, aprendi a tocar pandeiro, num
pandeiro de lata de goiabada cascão...” Quando voltou para o Rio, acompanhava
os blocos, que naquela época tinham samba de verso. Mas os contatos com
outros espaços como o rádio, os shows, viagem internacional e outros tipos
de música como a cubana, por exemplo, se o fizeram experimentar novos
ritmos e danças, não o afastaram do samba, tanto que hoje faz parte do
conjunto da Velha Guarda da Portela.
No imaginário social, a representação do sambista como negro, malandro,
pobre e morador do morro é ainda forte e reforçada pelos próprios sambistas.
Monarco, referindo-se aos moradores da favela do Jacarezinho, dizia “o
povo do morro”, apesar da citada favela se situar numa área plana na região
da Leopoldina.
Por que, então, essa reiteração? Porque, para os sambistas especificamente,
e no imaginário social, o samba é produto dos setores mais pobres e marginalizados
da população, que está no morro, na favela. Morro e favela têm a mesma
identidade. Toda favela, então, é sinônimo de morro, pelas condições sócio-econômicas
dos moradores, pelas privações, falta de colégio, dificuldades, discriminações
e, o que parece ser uma contradição, pela alegria, solidariedade, sociabilidade
e produção cultural, na qual se destaca o samba.
Uma confirmação que podemos encontrar na origem social e experiência
da maioria dos sambistas [15]
, como atesta a vida de nossos entrevistados. Como diz o compositor
Edinho Oliveira, de família operária, “... eu tenho uma compreensão de
samba: o samba é uma cumplicidade, é de uma raça, de um segmento racial,
de um segmento de classe.”
Casquinha, criado em Oswaldo Cruz, é o único dos entrevistados
que tem pai estrangeiro. “Era engenheiro elétrico, ele veio da Alemanha
pra montar as torres de eletricidade aqui no tempo do bonde, [...] a minha
mãe era preta, por isso que eu sou raça negra (rindo), eu sou meio
claro mas eu tenho orgulho de pertencer à raça negra.”
Como se pode notar, apesar do discurso de que não há diferença, é o negro
que é tomado, subrepticiamente, como parâmetro para se saber se alguém
tem qualidades de sambista. Porém, é uma constante, na fala dos compositores
a afirmação de igualdade, ou pelo menos da possibilidade, do branco, no
samba, ser ou se tornar um grande sambista.
Como surgem os compositores de samba? De onde sai a capacidade para compor
aquelas canções, muitas delas mais tarde se tornando clássicos do samba
e da chamada Música Popular Brasileira? “O que é o mundo do samba? Mundo
do samba é o Rio de Janeiro”, diz Jair do Cavaquinho. O “meio ambiente”,
como dizem Candeia e Isnard (1978), torna-se um estímulo para a produção
do sambista. Podemos mesmo dizer que é o “caldo de cultura” que ajuda
formar grandes compositores. Mesmo aqueles que não nasceram neste “meio”,
mas que amam e convivem num ambiente de samba, sofrem a influência do
que chamamos cultura do samba, como definimos anteriormente.
Com efeito, assim nos revela Mauro Diniz, filho de compositor
e de pastora da Portela:
Eu comecei a fazer samba quase sem perceber, na realidade, né. Quando
eu era pequeno eu ouvia muito o papai e... [...] uma vez, sem querer
– a gente tinha um bloco lá em Oswaldo Cruz, na rua Cananéia, o nome do
bloco era Bloco da Alegria – eu tinha mais ou menos 8 anos... eu
fiz uma paródia de um... samba enredo com a melodia de um samba que o
papai tinha, coincidentemente, né, aquilo veio muito espontâneo,
então eu comecei assim, eu fazia e tinha vergonha de mostrar, escrevia
algumas coisas, depois eu comecei a ter coragem, as pessoas começaram
a puxar por mim, principalmente o papai, né, eu comecei a mostrar e a coisa surgiu naturalmente.
Note-se que a interpretação do sambista é de que esse fenômeno acontece
“sem querer”, “muito espontâneo”, e não como uma produção da cultura.
Ressalte-se também, o incentivo de pessoas da família, de amigos, de vizinhos,
que constitui-se parte do processo cultural que produz compositores de
samba.
A história de Jair do Cavaquinho é intimamente ligada à Portela.
Quando pequeno, conta, “a minha mãe sempre me levava pros ensaios, né.
Foi quando fui me ambientando no negócio.” E vivendo naquele bairro, a
vida do menino Jair encontrava o samba a todo momento, como narra:
...eu, pequenininho, ia comprar pão... ia comprar pão, passava ali, esquecia
que ia comprar pão. Ficava olhando, apreciando... [...] Aí um dia eu fiz
assim: peguei um pedaço de pau, uma tauba, botei quatro arames bem fininhos,
representando as quatro corda, aí o que eu via ele fazer com as posição,
aí eu fazia também no meu “cavaquinho”, porque eu não tinha dinheiro pra
comprar um cavaquinho, né. [...] Eu sei que, não sei se foi a força de
vontade, eu sei que eu... em pouco tempo eu peguei...
Quando
perguntado sobre o que a Portela lhe deu, Argemiro Patrocínio de pronto
respondeu: “trouxe o que eu sou hoje. Eu não sou um camarada marginalizado.”
Nessa afirmação está uma das possibilidades que traz o samba para uma
ampla camada da população carioca. De fato, o samba tem encarnado para
muitos compositores do gênero, o sentido da vida, e retirando ou evitando
que o caos social da maioria da população de baixa renda e das comunidades
das periferias urbanas, econômicas ou sociais, se abata sobre os indivíduos,
arrastando-os para a marginalidade ou contribuindo para a baixa estima.
Outro aspecto, não menos importante, está na construção da identidade
social e cultural que o samba ajuda a afirmar para parcela significativa
da cidade do Rio de Janeiro.
Diante das falas,
percebe-se a íntima ligação dos sambistas com a cultura do samba ao
longo de suas vidas. Uma ligação que é um processo de afirmação não
só de indivíduos, mas de grupos sociais, que vêem no samba uma identificação,
uma forma de viver, um produto da sua cultura, de valorização
do seu espaço geográfico e social, de elevação da auto-estima. Como
se vê, a relação com o samba é a relação com a vida.
Escola dá samba?
Como vimos, o compositor se forma num meio ambiente que chamamos de cultura
do samba. É aí que ele tem seu aprendizado como compositor. Reconhecendo
a impossibilidade da educação formal, ou seja, o colégio
[16] , educar para tudo e educar em todos os aspectos que a cultura
alcança, colocam-se algumas questões: como os sambistas vêem o colégio
em sua formação de compositor? Que papel teve o colégio em suas vidas?
Que relações podemos estabelecer entre o colégio e a cultura do samba?
A partir das falas dos sambistas, procuramos pensar as relações entre
o colégio e cultura.
O samba é “uma dádiva de Deus”?
Essa é uma frase comum, usada na
afirmativa entre os sambistas, quando falam do fato de terem se tornado
compositores, apesar da relação estabelecida por eles com a cultura do
samba desde tenra idade. Edinho Oliveira explica: “... eu continuo achando
que o samba é uma dádiva de Deus.” No entanto, não defende a idéia
de se valorizar a condição de não alfabetizado e entende que a leitura
é importante.
Para
Monarco, nem mesmo as Escolas de Samba ensinam a compor: “tem pra
aprender sambar, tudo, mas compor, eu acho que é uma coisa que já vem...
acho que é uma dádiva divina que Deus dá...”.
O que pudemos perceber através das falas dos compositores
é que, apesar da importância do fator que chamam de “dom”, “hereditariedade”
ou “dádiva divina”, a inserção na cultura do samba também é crucial. Ali
eles obtêm os conhecimentos que se tornam fundamentais.
Ao mesmo tempo, pudemos perceber uma menção constante à “ajuda” do conhecimento
obtido através da escolarização, e uma certa importância desses conhecimentos
na elaboração dos sambas. Ou seja, se de um lado, o “dom”, a cultura do
samba, são os ingrediente fundamentais para o sambista, não se apresentou
uma visão de negação ou desprezo da formação escolar, mas se considerou
como um elemento que pode ajudar a fazer samba.
O papel do colégio na vida dos sambistas sempre foi minimizado
na análise dos próprios compositores e também na imprensa especializada,
ajudando a formar uma representação, ou seja, uma imagem e uma idéia de
como é a relação entre compositores e o colégio: nenhuma. Se esta está
ancorada numa realidade, não se deve universalizá-la e o papel do colégio
não é tão irrelevante assim, como procuraremos demonstrar.
Jair do Cavaquinho foi sintético ao falar de sua relação com o colégio
e demonstrou um certo incômodo com a questão. Ao relatar que estudou pouco
e que o pouco que sabia vinha do berço e da força de vontade, estava adiantando
sua visão de que o colégio nenhuma influência tinha em sua formação de
sambista.
Mas para “seu” Jair o samba “ensina muita coisa”. Além de
ritmo, canto e dança, “o samba dá desenvolvimento [bota os dois
dedos indicadores de cada lado da fronte]! Desenvolvimento!” E
explica que não adianta só ler e escrever a letra, porque tem a música.
Ou seja, tudo isso exige esforço de raciocínio e um processo autodidata.
Edinho Oliveira, criado em Rocha Miranda, sempre ligado
ao samba, mesmo enfrentando as dificuldades da vida de família pobre,
como ele diz, “cheguei a me engraçar, digo até assim, engraçar no
nível superior pra fazer engenharia, depois eu vi que não era... compatível
à minha realidade...”
Ele reafirma ainda a importância do estudo e coloca inclusive sua posição
com respeito ao tipo de ensino que se tem em nossos colégios: “... quando
estudamos, nós abrimos claros em nossa mente, em nossa visão, em nossa
forma de pensar e perceber, porque no ensino básico hoje no Brasil, mesmo
sendo com a cara... é a cara e o molde do ensino europeu, é ensino”.
Para ele é importante ter um ponto de partida e daí desenvolver um autodidatismo.
Contudo, não deixa de fazer a crítica ao que falta à nossa cultura escolar:
“Cadê a cultura do índio? O que é que temos de informação da escola, no
ensino básico sobre o índio? Tacape, pau pesado; índio de pele avermelhada,
cabelos lisos, coisa e tal e acabou, que o índio come peixe. Não, o índio
tem muito mais contribuição...”
De acordo com o depoimento de Argemiro do Patrocínio,
ele é um caso sui generis de evasão escolar, pois saiu do colégio
porque não queria usar calça curta, na época obrigatória para crianças
e adolescentes. Mas entende que sua escolaridade foi suficiente, como
relata:
...estudei mucado, primário, né, mas naquele tempo o primário era um
primário, né! Também só fiz até... até o quinto ano só. Aí não quis
mais porque... já... quinze anos, já tava com mais ou menos com quin...
catorze, quinze anos, aí digo, ah, não vou andar mais de calça curta [...]
Eu, um negão já grande, de calça curta... eu, hein!
Observemos que sua análise é de que foi uma boa escolaridade, porque o
primário daquele tempo era o primário, num enaltecimento muito comum
ao colégio de ontem e crítica ao colégio de hoje. Assinalamos ainda que
ele estudou em colégio público. Embora começasse a fazer sambas somente
aos 56 anos, acredita que tem algo a ver com os tempos colegiais: “Ah,
veio aparecer... é conseqüência, né, rapaz, é como eu te falei... o início...
eu sempre gostava de... no colégio, eu sempre gostava de fazer verso,
poesia, então vem negócio de namorada, né, garoto... namorar...”
Casquinha é mais um daqueles sambistas que sua permanência no colégio
foi obstaculizada pela desestruturação familiar e pelas condições materiais
de sobrevivência. De qualquer maneira, acha que o colégio teve importância
porque “... eu cheguei a fazer concurso e passar com aquele pouco que
eu estudei [...] Também o concurso era uma dissertação, quatro operações,
um ditado, tudo isso, eu passei...”. Mas é no samba que ele acaba mostrando
a importância dos estudos: “... por exemplo, hoje o camarada que tenha
pouca instrução ou quase nenhuma, é difícil ele fazer uma letra pro samba-enredo.
Ele faz a letra pro samba-enredo, mas ele sempre ele... tem que recorrer
a outro pra pedir, tá entendendo, a orientação mais assim...”
Ou seja, o conhecimento escolar está cada vez mais presente no samba.
O que significa ampliar os conhecimentos já desenvolvidos pela cultura
do samba pois, como diz Casquinha, “... o samba ilustra a pessoa, o samba
ensina muita coisa, depois a gente aprende, aqui dentro [da Portela] mesmo
a gente aprende, não é, no desenvolver da... do tempo e tal, e daí vai
aprendendo alguma coisa, bastante coisa, né”.
De sua passagem pelo colégio interno em Passa Quatro,
Minas Gerais, David do Pandeiro relata: “Lá no... o estudo de lá, os estudos
de lá em Passa Quatro são muito avançados nesses estudos em Minas... Caxambu,
Viçosa... Os estudos lá são muito avançados e você tem que aprender mesmo,
né, porque se não aprender, já viu, né, é castigo, etc etc. Não tem como
fugir de lá”. Mas do internato em Quintino, para onde foi transferido,
ele conta:
Em Quintino eu me lembro, por exemplo, eu me perdi dentro da escola Quinze,
no meio da garotada lá, juntei com aqueles moleques safados lá e fiquei
um aluno terrível, um aluno terrível, revoltado com a situação e um dia
eu encontrei um professor que ele me botou, não me bateu nem me botou
de castigo nem nada, ele sentou comigo e começou conversar comigo baixinho,
suavemente, daqui a pouco chorava eu, chorava ele. Aí ele... mudou
a minha vida, passei a ser o primeiro aluno em caligrafia, fui o primeiro
aluno do.. da 5ª série. José Vicente de Souza. Esse professor
que mudou não só a mim como meus amigos também.
Viu-se, pelas palavras dos compositores, que o recurso a bibliotecas,
à leitura, demonstra por um lado um conhecimento obtido através da cultura
escolar e, por outro lado, o auxílio de livros – representação e concretização
de escolarização – significa que não é somente a inspiração, a “dádiva
divina” e o meio cultural que compõem os elementos da produção musical
dos sambistas. Mais do que isso, os depoimentos colhidos apontam uma tendência
de que os compositores mais jovens ou são todos escolarizados ou apresentam
um grau de escolarização maior do que os primeiros sambistas. Quase todos
eles tiveram sua experiência escolar abortada por razões econômicas e
sociais, acrescentadas por tragédias familiares, mas todos os compositores
que têm filhos, encaminharam sua prole para os estudos, alcançando um
grau de escolaridade bem maior que o dos pais, o que comprova a importância
por eles dada à escolarização.
À guisa de conclusão: qual o enredo
para a escola [17] ?
O sentido desse trabalho é discutir as relações entre escola
e cultura, no caso, a cultura do samba, que consideramos uma das culturas
antropológicas de origem de parcela significativa dos estudantes cariocas,
buscando verificar como ela se dá, ou mesmo se esta relação existe a partir
das histórias de vida dos compositores. Em nosso estudo procuramos observar
a relação dos compositores de samba com o mundo e que papel teve a escolarização
em suas vidas.
Nesta relação entre a cultura escolar e sambistas, vamos encontrar no
samba-enredo uma relação que nos revelou evidente. A composição de um
samba-enredo não é tarefa fácil. Além da inspiração para compor uma bela
melodia com bons versos, o compositor ou, o que é mais comum, os compositores,
têm de dar conta dos aspectos do enredo em seus versos para que cumpra
o papel de conseguir os pontos máximos em seu quesito. Dessa forma, para
dar conta do recado, os sambistas são obrigados a pesquisar em jornais
e livros, freqüentar bibliotecas e, quem não sabe ler, procurar alguém
que o ajude, conforme ficou explícito nos depoimentos dos entrevistados.
A composição de alguns sambas de exaltação neste período inicial, que
fazem parte de uma estratégia de legitimação e busca de reconhecimento
dos sambistas, levavam ao uso de um conhecimento da história oficial.
Um processo que tem uma exigência para além da memória oral e uma aproximação
com a cultura escolar. Não é de se espantar, portanto, que o enfoque das
letras dos sambas apresentados nos desfiles, mesmo antes do aparecimento
do samba-enredo [18] ,
assim como os sambas que mais tarde passaram a se caracterizar como de
enredo, apresentassem um Brasil oficial, com os heróis oficiais, com
uma história que constava nos manuais escolares. Foram esses manuais
[19] as fontes principais para a elaboração das letras que exaltavam
figuras da elite brasileira e fatos históricos que expressavam realizações
da mesma elite. Ao mesmo tempo omitia, ou apresentava como versão contrária
aos interesses nacionais, outros fatos históricos em que os setores populares
agiram na defesa de seus interesses e que hoje são vistos de maneira muito
diversa.
Podemos apontar a marca da escolarização, mesmo que indireta, na produção
daqueles sambas. Uma marca característica da escola tradicional que reproduz
enfoques históricos não críticos. E com a ampliação da importância das
Escolas de Samba e dos desfiles, surge a figura do carnavalesco, que vai
aumentar essa necessidade da relação com a cultura escolar. É o carnavalesco,
ou a comissão sob sua orientação, que elabora a sinopse do enredo entregue
aos sambistas para orientar a composição do samba-enredo.
Mas existem vários sambas-enredo que fugiram da mera glorificação das
elites, buscando mostrar os setores populares como sujeitos históricos
e referindo-se a fatos, personagens e cultura ligados à sua própria história
[20] , que por sua vez mostram-se também como fruto de um processo
de escolarização. Porém o que queremos afirmar é que a escola formal foi
o principal agente de reprodução da história oficial [21] , neste aspecto deixando de contribuir para
uma visão mais crítica de nossa história e nossa sociedade na cultura
do samba.
Contudo, a menção de alguns sambistas mais velhos sobre uma superioridade
do colégio público “antigo” não é um fator desprezível para analisarmos
a potencialização que os compositores de samba fizeram de seus
poucos anos de estudos. Ainda que tenhamos uma visão crítica sobre os
métodos e processos de ensino do colégio “antigo”, deve-se reconhecer
que havia uma determinada apropriação de saber, que proporcionou aos compositores
de samba um melhor aproveitamento de sua criatividade. Nesta compreensão
podemos perceber que os sambistas fizeram bom uso dos conhecimentos adquiridos,
não só para passar em concursos públicos, conseguir empregos com melhor
status, mas também compor sambas de rimas mais ricas e contribuir
para seu sucesso artístico.
A potencialização que a cultura do samba permite não é apenas de alguns
indivíduos isolados, mas um fenômeno massivo, daí a sua importância para
a escola formal. Queremos chamar atenção é para os aspectos simbólicos,
que perpassam o mundo do samba para além da Escola de Samba, educando,
formando, produzindo uma cultura fundamental para a potencialização do
aluno, não observada pela escola formal, que aliena, num certo sentido,
a criança e o jovem oriundo desta cultura. O que contribui, deste modo,
para uma situação duplamente perversa e negativa para a criança/jovem,
pois não trabalha sua auto-estima em relação ao seu pertencimento cultural
e não lhe dá instrumentos para desenvolver o seu “capital cultural”, muitas
vezes próprio da relação familiar e não só da comunidade ou vizinhança.
Portanto, se observarmos as possibilidades que a escola tem para potencializar
o saber de seus estudantes, podemos esperar que a relação entre a cultura
escolar e a cultura do samba seja profícua, produzindo outra coisa que
não a evasão escolar, ainda que reconheçamos que este grave problema repouse
em várias questões. É preciso dar mais atenção ao que diz Jair do Cavaquinho
ao afirmar, categórico, botando os dois dedos indicadores na fronte: “o
samba dá desenvolvimento! Desenvolvimento!”
Se os sambistas não aprenderam samba na escola, isto não significa que
ela não contribuiu para o desenvolvimento das suas qualidades de compositor.
Assim, os compositores têm aproveitado o pouco que a cultura escolar lhes
deu. Podemos dizer que a cultura escolar tem mesmo uma contribuição, ainda
que fora da intencionalidade de um projeto pedagógico. Mas certamente
a escola pode contribuir muito mais para que as potencialidades de muitos
futuros compositores sejam ampliadas. Se isso se der, o samba e a sociedade
agradecem.
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Notas:
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