Beija-Flor e a Casa das Minas |
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Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis está preparando uma homenagem à
Casa das Minas Jeje do Maranhão para o desfile das grandes escolas no carnaval
de 2001 no sambódromo da Marquês de Sapucaí no Rio de Janeiro. O júri da
escola já aprovou o samba e o tema previsto é A Saga de Agotimé, Maria
Mineira Naé. Matéria publicada no Jornal O Estado do Maranhão em 22/10/2000
informa que o tema não resulta da imaginação dos carnavalescos e que a Comissão
de Carnaval da Beija-Flor resolveu promover um resgate da história que não
chegou aos livros. Diz que as pesquisas basearam-se, entre outros, em depoimentos
da pajoa paraense Zeneida Lima, que garante ser tataraneta de Agotime, que
tendo desembarcado na Bahia, conseguiu a liberdade e recursos para chegar
ao Maranhão, onde encontrou escravos jejes e fundou a Casa das Minas, recebendo
o nome de Maria Mineira Naé. A mesma matéria diz que o Governo do Estado do Maranhão está apoiando a Escola e que a memória oral registra que a fundadora da Casa das Minas foi Maria Jesuína, consagrada ao vodun Zomadonu, dono da casa. Informa que a atual chefe, dona Denil Prata Jardim, confessa que se sentiu lisonjeada com a homenagem, mas reclama que a fundadora da casa é conhecida lá como Maria Jesuína e não como Maria Mineira Naé e também que ela não teve descendentes de sangue no Brasil. A matéria publicada apresenta foto dizendo ser de uma mãe-de-santo diante do altar da casa, mas que não tem nada a ver com a Casa das Minas Jeje, ilustrando o descaso com que a imprensa em geral trata este tema. Muitas pessoas relacionadas às religiões afro no Brasil estão se indagando sobre a oportunidade ou não da temática da Beija-Flor para o Carnaval de 2001. Os meios de comunicação procuram cada vez mais novos exotismos para explorar. O desfile das grandes Escolas de Samba do Rio é um evento controlado em grande parte pela mídia, que escapa ao controle dos que estão relacionados com os fatos que aborda, embora pesquisas como a de Maria Laura Viveiros Cavalcanti mostrem como comunidades locais, se envolvem com a organização do evento. A Casa das Minas Jeje é muito conhecida e respeitada no Maranhão e no Brasil, tem sido divulgada pela literatura específica, analisada em teses, artigos e livros de diversos pesquisadores. A comunidade religiosa da casa é profundamente discreta, procurando ajudar aos que a procuram, sem se interessar em divulgar o que faz e mais preocupada em ser do que aparecer. Talvez por isso os membros da casa são atualmente em número reduzido. Queremos ilustrar o que estamos dizendo comentando, a seguir, dois fatos: Em fins da década de 1980, dirigentes da casa foram convidadas por um cineasta alemão, para visitarem o Daomé, com a condição de colaborarem numa filmagem sobre relações entre a África e o Brasil, e responderam que só poderiam ir com a autorização dos voduns (entidades que as protegem). A resposta dos voduns foi que se elas fossem a África para aparecerem num filme, ninguém acreditaria na sinceridade delas. O cineasta ficou aborrecido por ter perdido tempo em vir ao Maranhão. Foi a São Paulo, convidou três mães-desanto e fez um filme sobre uma visita delas ao Benin. Não sabemos se funcionam ainda hoje as casas onde atuavam aquelas mães-de-santo. O segundo fato é o seguinte: Em 1985 a UNESCO organizou em São Luís um colóquio internacional para discutir Sobrevivências das tradições religiosas na América Latina e Caribe. Maurice Glélé, natural do Benin, descendente da família do antigo Reino do Daomé, então Diretor da Divisão de Estudos e Divulgação de Culturas daquele órgão, representou, no Colóquio, o Diretor Geral da UNESCO e esteve São Luís algumas vezes no período preparatório ao encontro. Na primeira vez que fomos com ele a Casa das Minas, quando saímos, muito emocionado ele nos disse que aquele é um templo muito sério, que continua as tradições de seu país e que o culto do vodun não é folclore. No relatório final do colóquio é dito em relação à casa: São Luís e a experiência original da Casa das Minas, fundada no Brasil pela Rainha Agontimé, mãe do Rei Ghezo, condenada à deportação a seguir a um ajuste de contas no seio da família real, antes que o seu filho acedesse ao trono do Daomé em 1818 e lançasse uma vasta operação em busca de sua mãe. A comunidade da Casa das Minas, com base na família, continua a tradição religiosa real de Zomadonu, marcada, por um lado, pela importância da iniciação, o segredo ascético dos grandes responsáveis, a gerontocracia feminina, a complexidade dos ritos e, por outro lado, pela integração da comunidade no meio em que vive, de modo que as sujeições rituais decorrentes da sua origem fon não excluem de maneira alguma as exigências de integração profunda no contexto sócio-cultural e político-econômico brasileiro. (UNESCO, 1986: 34). Este dois fatos que estamos mencionando e o depoimento de muitos pesquisadores, como Roger Bastide, Pierre Verger, Nunes Pereira, Costa Eduardo, entre os mais conhecidos e respeitados, destacam a seriedade como são mantidas as tradições e religiosas da Casa das Minas. A hipótese da fundação da Casa das Minas pela Rainha Na Agontime, mãe do rei Ghezo (1818-1858) e viúva do Rei Agonglô (1789-1797), foi apresentada pela primeira vez por Pierre Verger em 1952, em artigo que depois teve outras versões. Na Casa das Minas, como já assinalamos, a fundadora é conhecida como tendo sido Maria Jesuína, que “carregava” o vodum Zomadonu. Sobre esta entidade, no relatório do Colóquio da Unesco em São Luís (1986: 41), é dito que: “Segundo um chefe tradicional vindo da África, Zomadonu é considerado como o culto mais importante no reino fon. … O nome de Zomadonu, que significa “Não se põe o fogo na boca”, traduz o poder excepcional deste Vodum. Em relação à rainha, artigo na mesma publicação (Unesco 1986: 339-340), informa: A tradição oral e grandes historiadores ... legaram-nos provas de que NAAGONTINMÉ, viúva do Rei AGONGLO e mãe do Réi GEZO, foi vendida aos negreiros pelo Rei ADANDOZAN, ao mesmo tempo que vários dignatários ou simples membros da família real, algum tempo após a morte de Agonglo. ... Segundo trabalhos de Pierre Verger ... a mãe do Rei GEZO foi encontrada em São Luís do Maranhão. Como dissemos, a memória oral da Casa das Minas não menciona o nome da rainha Agontime e registra como tendo sido fundada por Maria Jesuína, que trouxe para cá o culto de seu vodum protetor e dos outros voduns do Daomé. Neste culto a entidade maior é conhecida como nochê Naé, mãe ancestral mítica de todos os voduns. Ela é quem rege a casa, é superior a todos e decide tudo. É a única entidade a quem são oferecidas duas festas anuais, no solstício do verão e do inverno, em junho e dezembro. A festa dela é a mais importante. Naé é muito velha, como uma rainha mãe e por isso é chamada de Sinhá Velha. É a dona da árvore sagrada, tem devotos que lhe são consagrados, mas não incorpora e nunca teve filhas dançantes na Casa das Minas. Nunes Pereira (1979: 236), apresenta um cântico de Naê, que é cantado na visita anual da Casa das Minas à Casa de Nagô e que também já ouvimos em outros terreiros de mina e que diz: “Para Vodun Naê, Naê. Agongone chegou na toque Para Vodun Naê. Para Vodun Naê. Agongone chego na toque”. Em agosto de 2000 alguns membros da Comissão de Carnaval da Escola, que funciona como Carnavalesco e como autor do enredo, estiveram em São Luís e fizeram rápida visita a este pesquisador e à Casa das Minas. Na ocasião disseram que já haviam escolhido o tema e estavam concluindo a letra do samba enredo. O enredo A Saga de Agotime, que está sendo divulgado pela Liga das Escolas de Samba do RJ, foi quase integralmente inspirado no romance histórico, muito bem documentado, da pesquisa e escritora norte-americana Judith Gleazon. Pena que não seja indicado na bibliografia que acompanha o mesmo. Pode-se argumentar que um samba de Carnaval obedece à liberdade poética, mas samba da Beija-Flor: Agotimé Maria Mineira Naé, possui erros, como vemos, e não representa corretamente a história da casa. Além disso, a estória contada por Zeneida Lima, pajoa paraense que assessorou a Comissão Carnavalesca da Escola, também não é correta, pois, conforme a tradição da Casa das Minas, Maria Jesuína não teve descendentes de sangue no Brasil e, portanto, não pode ser tataravó de Zenaide Lima, que é conhecida na casa como Zuleide Figueira de Amorim. Ela passou pela Casa das Minas em fins dos anos sessenta, foi integrada à comunidade como vodunsi de Poliboji, mas logo se afastou. Tentou abrir filial da casa em Jacarepaguá no Rio de Janeiro, mas esta experiência não foi adiante e possui uma casa em Soure (Marajó), sem nenhuma vinculação com a Casa das Minas. Nunes Pereira, que foi seu amigo, inclui duas fotos dela na última edição do livro sobre a Casa das Minas (Nunes Pereira, 1979) e ambos participarem em um filme (Nunes Pereira e a Casa das Minas, de Rolando Monteiro e José Sette, de 1976), que mostra cenas da Casa das Minas e do terreiro de Zuleide/Zenaide no Rio. Na época o filme foi mostrado pela televisão em São Luís, provocando indignação na Casa das Minas, pois pessoas ligadas ao culto disseram que ela realizou no filme rituais errados. Zuleide/Zenaide já assessorou a Escola Beija-Flor em tema de carnaval anterior sobre o Reino das Caruanas e foi mostrada em programas da TV Globo como “a única pajoa existente no Brasil”, o que também não corresponde à realidade. As relações entre cultura de massas e cultura popular são complexas, como estamos vendo, sobretudo no campo da religião, como são complexas as relações entre os intelectuais e a cultura popular. Muitas religiões procuram há tempos controlar e/ou ter os seus próprios canais de rádio e televisão, pois sabem que sem este controle a visão que a mídia passa da religião, é muitas vezes imprecisa e confusa. As religiões populares não têm este nível de poder e como são participadas predominantemente por membros das classes não privilegiadas, esta imprecisão é ainda maior, pois a mídia quase sempre procura destacar exotismos na religião. Seus agentes em geral não estão preparados para entender e expor sutilezas da cultura do povo, que é vista e mostrada de modo simplificado, superficial e carregado de preconceitos. Por outro lado, os intelectuais que podem ser vistos pelas camadas populares como tendo algum poder, possuem de fato poder muito reduzido diante da mídia. Parece estranho que um antropólogo que pesquisa religião afro no Brasil, tenha que vir a público defender o tema que estuda para evitar um desrespeito para com aspectos importantes da realidade cultural brasileira. A cultura das elites raramente é tratada com descaso entre nós, enquanto a cultura do povo muitas vezes é tratada como folclore, no mau sentido do termo, e qualquer um se acha com o direito de inventar ou dizer o que quer. Muitas pessoas estão reclamando que a Casa das Minas é um tema sério e difícil de ser abordado num desfile de Escola de Samba. Dona Denil, disse na matéria publicada no Caderno Alternativo, que estamos comentando, que os voduns não gostam de ser representados por imagens nem por pessoas fantasiadas, mas considerou que a homenagem da Beija-Flor como uma forma de divulgar a Casa das Minas. Como diz Verger (1990) em artigo sobre Agontime, na França quase tudo acaba em canção, podemos também dizer que no Brasil quase tudo acaba em samba e carnaval. Esperamos que o desfile da Beija-Flor não desinforme mais do que pretende informar, mas temos receio que isto não aconteça. Embora se possa questionar se Na Agontime fundou a Casa das Minas, a história oral e documentos da casa, não deixam dúvidas de que sua fundadora, Maria Jesuína de Zomadonu, organizou o culto da família real do Daomé no Maranhão. A Beija-Flor não tem o direito de apresentar outra versão, ignorando o depoimento da casa e de pesquisadores, como Pierre Verger e outros. Não deveria também contribuir para a projeção pessoal de uma branca paraense, que ora é Zuleide ora é Zenaide, ora é pajoa, ora é de uma Casa onde só se recebe um vodum, e que está querendo aparecer agora na mídia como tataraneta de rainha africana e da fundadora da Casa das Minas. A nosso ver, entre os novos adeptos das religiões afro-brasileiras talvez esteja ocorrendo um certo esgotamento ou cansaço, no interesse pelos modelos religiosos que tiveram grande destaque no período entre os anos de 1970 até meados da década de 1990. Hoje diversos ritos jejes e nagôs despertam cada vez interesse maior em todo o Brasil. O culto dos voduns passa a ser muito procurado e em vários lugares estão surgindo casas que se dizem jeje ou pessoas interessadas em conhecer as tradições jejes mais “puras” ou ortodoxas, que são consideradas “muito finas”. A Casa das Minas Jeje, como a Casa das Minas Nagô, fundadas no Maranhão na primeira metade do século XIX, são comunidades de culto afro dirigidas e participadas predominantemente por mulheres e nelas os homens desempenham papel específico e muito limitado. Ao mesmo tempo que passam a despertar maior interesse, estas duas comunidades hoje enfrentam crises de continuidade e não se sabe se continuarão existindo por muito mais tempo. Justamente quando passam a chamar mais atenção da mídia e do grande público, parece que os jejes, como os nagôs do Maranhão, se tornam realidades quase inatingíveis, continuando como um mistério conhecido por poucos. Bibliografia:
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Sergio
Ferretti |
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