Aldir e João Bosco

 
          A notícia soou tão boa como se fosse a do cessar-fogo no Oriente Médio ou no Iraque: Aldir Blanc e João Bosco fizeram as pazes após 20 anos de separação pessoal e musical. Primeiro, o fato da amizade, coisa bonita, entre brasileiros da qualidade de ambos. Aldir grandão, original, turrão, coração de manteiga disfarçado de urso, pretensioso, bronqueador, nascido para a oposição pela necessidade interna de coerência e impiedosa autocobrança que deve havê-lo levado à medicina e à psiquiatria como especialidade. João Bosco, timidez disfarçada, muita doçura pessoal, dessas pessoas maneiras e modestas que não acendem a chama de prestígio em torno de sua presença física mas que, tinhosas, teimosas e lutadoras, abrem caminho a golpes de talento e muito trabalho. A autêntica dupla que se completa através da contradição de temperamentos.
          Aldir, para mim, está na mesma linha de três outros letristas especialíssimos e que se equivalem: Noel Rosa, Chico Buarque e Paulo César Pinheiro. Os quatro operam na mesma linha de talento e originalidade nas letras. Não sou a favor, nem vivo a afirmar, fulano é o maior. “Maior é Deus no céu e nada mais”, como dizia um velho e hoje esquecido samba cantado pelo Jorge Veiga. Sou contra isso de “maior”, “melhor”. Isso é marketing, é subjetividade, é reducionismo. Tom Jobim não é maior que Ari Barroso, que não é maior que Lamartine Babo, que não é maior que Braguinha. Todos e tantos mais são figuras de altíssimo valor, sem comparações possíveis, orgulho e glória da música popular brasileira. O que existe são linhas próximas e Aldir está na de Noel: letras arrojadas, originais, sem concessões, alto poder crítico, retratos notáveis do Brasil. De Noel só lhe falta um certo romantismo.
          João Bosco é acima de tudo um grande representante do samba branco que se aproxima do negro, melodista ágil, igualmente original, sem imitar ninguém, com vantagem ainda de cantar e bater um violão de menino grande. Para ser franco, só não aplaudo João Bosco numa fase recente em que abandonou a simplicidade como cantor e enveredou por uma afetação vocal cheia de guturais, gemidos e falsetes, que são afinados e refinados, mas deixam longe o músico popular que faz a sua força do ritmo e da simplicidade. E além de tudo isso, um dia vi na televisão uma entrevista com um filho dele: que rapaz inteligente e talentoso! Depois cheguei a ouvir letras dele, um talento novo prontinho para o vôo da águia se não se mascarar. Sim, porque o grande risco de quem, jovem, é assim tão talentoso, é ficar cedo demais convencido de que é superior e na hora de ser superior fica apenas rapaz. É parecido com essas crianças prodígio. Mas o menino saiu aos seus. É muito bom!
          Mas eu falava do ótimo cantor (sem guturais e falsetes) e violonista, além de compositor, que é João Bosco. Por isso a re-união desses dois formidáveis compositores, responsáveis por Bala com Bala; Kid Cavaquinho; O Bêbado e a Equilibrista; De Frente Pro Crime; Dois Pra Lá, Dois Pra Cá; O Mestre Sala dos Mares; Escadas da Penha e vários outros, é motivo de alvíssaras para a necessitada música popular brasileira. Ambos tiveram outros ótimos parceiros no período de separação, como Moacyr Luz, Guinga e Paulo César Pinheiro, além do citado Francisco Bosco (filho de João), Abel Silva, Antonio Cícero. Melhor.
          Estou feliz, cá de longe. Nada escrevi por ser amigo dos dois ou pertencer à patota deles (antes fosse). Conheço-os ligeiramente. Mas uma funda admiração e gratidão pelo que já fizeram e farão por nossa música alegra-me a alma. Não é por nada, não: são muito bons!

Arthur da Távola
(Publicado originalmente no Jornal O Dia em 11 de setembro de 2003)

 

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