As transformações do samba nas décadas de 20 e 40 e a indústria cultural

 

          Pesquisador estudou a transformação do samba carioca entre as décadas de 20 e 40. A consolidação do rádio e o surgimento de novas técnicas de gravação ajudaram a criar o "samba moderno"

          O samba acariocava-se e tomava a frente pelo fato de o Rio ter sido pensado, na época, como uma espécie de 'Cartão Postal' do País
          Com a modernização do Rio de Janeiro, nos primórdios do século passado, e o surgimento de novos meios de comunicação, o samba sofreu inúmeras transformações. A consolidação do rádio e o aparecimento de técnicas de gravação mais avançadas são um bom exemplo de como essas mudanças "afetaram" este gênero musical. Os dados constam na tese de doutorado do pesquisador José Adriano Fenerick, apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. No estudo, Fenerick acompanha o samba no Rio de Janeiro entre 1920 e 1945.
          Segundo o estudioso, a idéia central era estudar a transformação do samba por meio da chamada 'indústria do entretenimento' que se firmava no início do século passado. Além disso, havia também naquele período um projeto de nacionalização do samba, com interesses múltiplos, que incluíam desde sambistas até o Governo Vargas. "Daí a escolha do tema para a pesquisa", justifica.
          Fenerick conta que o samba foi se transformando, se modernizando, e deixando de ser apenas uma festa feita em casas de mães de santo para ganhar outros significados: num primeiro momento, o de música (gênero musical) identificada com o Rio de Janeiro e, logo após, um misto de música e dança, identificado com o Brasil. "O samba acariocava-se e tomava a frente pelo fato de o Rio ter sido pensado, na época, como uma espécie de 'Cartão Postal' do País", explica.
          Os modernos meios de comunicação, segundo o pesquisador, tiveram grande influência no surgimento deste novo tipo de samba, que ele denomina "samba moderno". De início, o samba de pagode, praticado como Partido Alto, era composto de improvisos a partir de um tema, e podiam durar um dia inteiro. "Com a gravação não se pode mais improvisar, ao menos na letra, pois existe uma versão definitiva, que fica gravada no disco e é difundida pela sociedade. Além disso, o sambista passa a ser visto como um músico profissional, principalmente os cantores, já que os compositores tiveram inúmeros problemas para se profissionalizarem efetivamente", descreve Fenerick.

Compra e venda de sambas

          No período estudado, ganhava-se alguns trocados, mas apenas pela gravação, e não pela criação e/ou reprodução. "A necessidade de mostrar a música em um mercado tacanho gerou o 'jabá', ou pior ainda, a famosa 'compra e vendas' de samba", conta o pesquisador. "O comércio de compra e venda de sambas é um exemplo da má regulamentação dos direitos autorais, da visão imediatista do sambista, que preferia vender seu samba por quaisquer trocados numa hora de aperto, e da precariedade do mercado musical brasileiro da época, que apesar de estar em expansão, era ainda muito limitado."
          O Rádio elevou o nome de muita gente, como Carmem Miranda, Francisco Alves, Orlando Silva e Noel Rosa, ao patamar de "ídolos", sendo que o mesmo não ocorreu com os chamados sambistas de morro. "No imaginário fica a imagem de Francisco Alves, de Carmem Miranda. A imagem do morro estava associada a algo ruim. Ele era mostrado como lugar de negro, de malandro, de vadiagem, de violência, enfim, tudo de modo muito pejorativo. Essa imagem vem se perpetuando desde, pelo menos, o fim da escravidão", lembra José.
          O rádio também foi visto pelo governo, e por boa parte dos intelectuais, como um meio "nobre" de "educar o povo". Segundo o pesquisador, o discurso era potencializado, enfatizando o perfil ideológico que intelectuais e mesmo o governo Vargas queriam levar a cabo. Não é por acaso ser deste período a invenção do samba-exaltação, e Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, é o maior símbolo.

Nem do morro, nem da Cidade

          Criou-se uma mitologia de que o "samba puro" vem do morro mas, segundo a tese de Fenerick, tanto o samba de morro como o samba do asfalto (da cidade), estiveram, e ainda estão, interligados. "O sambista de rádio ia até o morro para comprar um samba para gravar, do mesmo modo que o sambista da Escola descia até a cidade para desfilar no Carnaval." O estudioso lembra que mesmo havendo o crescimento e a explosão do samba urbano, ainda há o tradicional samba de morro. Ainda existem sambas praticados de formas tradicionais, não modernas e não capitalistas. Assim, para Fenerick, "o samba que se nacionalizou é uma mescla desses dois, não sendo efetivamente nem do morro, nem da cidade".

Pedro Biava
(Agência USP de Notícias-música19/03/2003)

 

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