Passou o Carnaval de 2004.
Começa o Carnaval de 2005

 
            Festa móvel em data e em substância o carnaval se apresenta sempre inovador e mutável. Nos 249 anos de carnaval organizado (1855, primeiro carnaval com alegorias e fantasias), um carnaval diferente criou muitas formas de brincar carnaval: préstitos carnavalescos, cordões e blocos de bairros, ranchos carnavalescos, bailes com música própria, folia nas ruas nos dias de Momo, escolas de samba primitivas até os grêmios recreativos escolas de samba, tudo eram brincadeiras do carnaval.
            Nos últimos 40 anos surgiu a arte carnavalesca de fazer carnaval, com as superescolas de samba dominando tudo e centrando atenções gerais. Tudo mostra que a festa popular nasce espontânea, se organiza e se esvai, à medida que uma nova maneira de participar no carnaval surge e supera, absorvendo a forma anterior. Isto está acontecendo ao completarmos 20 anos de desfiles no Sambódromo, neste carnaval de 2004.
            Acho que cabe uma reflexão: o carnaval carioca, brasileiro, precisa voltar a ser do povo. Nada de submisso à pirotecnia de "carnavalescos delirantes" ou à vontade industrial" de grupos monopolizadores da festa e da verdade coletiva. O carnaval de 2004 indicou nova transformação: o carnaval não é apenas no Sambódromo, mas em toda a cidade; um conjunto de manifestações que se vêm revigorando, dando espaço à alegria popular, verdadeira semente do carnaval.
            Começando pelo movimento quase espontâneo dos blocos de bairro, sementes que se desenvolvem viçosas, mas já sofrendo de vícios carnavalescos. Antes quase ignorados pelos veículos de comunicação, este ano receberam adubo de boa cobertura noticiosa. Depois de 20 anos de existência não era mais possível ignorar a Banda de Ipanema, a agitação que provoca o Suvaco do Cristo ou os Carmelitas de Santa Teresa.
            Não apenas nos bairros classe média alta, mas em toda cidade. Trazem vantagens simples como a forma de brincar: não têm organização metódica, não usam carro-chefe (como queria João Bosco) características da liberdade carnavalesca. Têm boa aceitação popular, pois permitem ao folião - peça central da folia - cantar e dançar ao som de marchinhas e sambas conhecidos. Alguns já ensaiam música própria, mas sem passo marcado, sem peias, no desfile de rua. Cada figura canta e dança como sabe.
            A própria autoridade municipal sentiu a força e imortalizou (tombou) também a criação de Albino Pinheiro, seu principal guru. Sofrem já da praga da "camiseta vendida", mas sem gasolina o carro não anda. O patrocínio (nunca oficial) talvez seja solução, difícil mas sem exploração. Grupos ou patronos ampliaram o gosto popular nas feijoadas alegres e ressurgiram bailes infantis e de adultos nos clubes e casas de shows, dando espaço ao carnaval interno.
            No desfile do Sambódromo, a chave da mudança. No carnaval de 2004 ocorreu mais uma vez uma diferenciação, desta vez mais acentuada: o povo aplaudiu um desfile que os jurados da Liesa não viram; os jurados julgaram um carnaval que o povo não quer. Explico: escolas desfilam e mostram seu espetáculo montado. Mas, tal como nos shows de palco, a platéia quer participar do canto e da dança, sem perturbar o lado artístico da apresentação. Ficou claro que um bom samba-enredo carrega qualquer "estória" que uma escola queira contar. Boa melodia e letra adequada ao que se deseja narrar são essenciais para o entendimento pista e arquibancada. Daí ter agradado em cheio a idéia feliz de reeditar enredos apoiados em grandes sambas do passado. Daí o entrosamento palco/platéia da Portela, do Império Serrano, da Viradouro e mesmo do, pouco conhecido, samba-enredo da Tradição.

A questão polêmica da figura do jurado

            Mas aqui entrou um "pisilone": há um regulamento para o desfile técnico cenográfico: o que pode e o que não pode. E, por cima da rígida regra há um entrave maior chamado "jurado". Há os que conhecem o tema que julgam; há os que dão nota sem entender do assunto que avaliam; e há os que julgam como pecador diante do confessor: com medo, dizem amem a tudo o que assistem.
            Daí os desastres de todo ano; como em outros carnavais as escolas mais aplaudidas alcançaram colocações medíocres, sem chance de vitória; os jurados avaliaram o lado técnico do desfile, porque entusiasmo popular levanta a escola mas não é quesito, não conta ponto.
            Esta a primeira medida (se posso opinar) para sanear o desfile. Há jurados, figurinhas marcadas de todo ano, que dão nota dez a tudo que vêem deslumbrados pela honra de serem jurados de escola de samba ou porque não querem desagradar a este ou aquele empresário zoológico do samba carioca. Mudar o corpo de julgadores e, muita coisa, no tradicional regulamento do desfile é urgente e necessário.
            Está certo que estava muito bonita a Amazônia da Beija-Flor. Mas é preciso desconhecer pontos básicos da história para dar nota dez a um enredo que supõe a presença de invasores espanhóis, na Amazônia, dizimando os incas, que nunca estiveram lá. Ou o aplauso para samba-enredo que, de eufônico só tem o estribilho.
            Paulo Barros, novo carnavalesco - já crismado pela imprensa badalativa como "novo Joãosinho Trinta" - trouxe formas diferentes de alegorias dando vida a figuras vivas. Uma nova concepção figurativa. A pirâmide da vida ou fórmula do DNA, todo de atores ensaiados, cobertos com purpurina azul, dando vida a um fato científico é notável e inovador. Os demais carros, todos com as figuras humanas vivendo fatos do desfile, foram diferentes. Mas o samba-enredo do Borel não tem nível para nota dez dos quatro julgadores. O enredo, em si, se assemelha a uma feira de amostras de invenções, idéias e ameaças com cem produtos, distribuídos, condensados em 28 alas.
            A Mangueira fez, como sempre, um desfile clássico da comissão de frente aos carros de bois finais, um "trem danado de bom e animado", muito mal-engraxado por um samba-enredo mais cansado que o Jamelão. Ficou onde devia a duras penas. A mesmice da coreografia para todos os blocos do desfile em alguns casos rígida e noutras inexistente deixou o samba no pé longe da pista.
            Viradouro, Imperatriz e Salgueiro quase emboladas, nos décimos dos quesitos, tiveram pecadilhos, ao dispor as alas na explanação do enredo ganhando, no entanto, boa nota no quesito. Portela, Império Serrano e Tradição mereciam melhor atenção dos jurados da Liesa. A fixação fálica e o gosto pela polêmica do septuagenário Joãosinho Trinta levaram os dirigentes da Grande Rio a afastá-lo ingloriamente da escola de Caxias, quem sabe (Deus permita!) do sambódromo por bom tempo.
            Resta reformular o desfile à base de um bom samba-enredo, reensinado aos compositores que melodia e harmonia, rima e métrica são indispensáveis a uma boa composição musical. Letra descritiva e sintética sempre que possível. Com bons sambas o entendimento enredo x público, com julgadores julgando realmente o que vêm, dentro da estética do inevitável samba-espetáculo. Resta dar menos importância aos "cenários" (carros alegóricos), às vedetes e rainhas de bateria siliconadas, valorizando o povo do samba. Quem sabe começando em 2005, o desfile possa ser do povo e para o povo?

Francisco Duarte
(Francisco Duarte é Redator da coluna Memória, pesquisador de cultura popular)
(Publicado originalmente no
Jornal do Commercio na edição de 07 e 08 de março de 2004 )

 

Artigos