A Globo atravessou o samba

 

            A transmissão dos desfiles das escolas de samba continua sendo o maior desafio para as cabeças pensantes da TV. O que o espetáculo tem de beleza e emoção quando assistido ao vivo das arquibancadas do Sambódromo, ele tem de monótono e cansativo para o telespectador em casa. Há pelo menos duas décadas, tempo de vida do Sambódromo, as TVs tentam (e não conseguem) transformar o espetáculo em algo atraente para os que se aventuram a assistir na telinha de casa. Só que a missão é praticamente impossível, pela própria programação do show, com desfiles de 80 minutos de duração para cada escola.
            Oitenta minutos assistindo a uma enfadonha repetição de imagens e sons... não há quem agüente, nem mesmo aqueles mais apaixonados. O samba-enredo, sobretudo, cantado à exaustão pelos desfilantes e pelo puxador é quase uma tortura. O negócio é tão cansativo que o puxador do samba traz consigo uma entourage de cantores auxiliares. Ora, se até o puxador não agüenta, imagine o ouvido do telespectador. Do desastre, não escapam nem mesmo sambas consagrados como Lendas e Mistérios da Amazônia e Aquarela Brasileira, este ano trazidos de volta à Avenida. Depois de meia hora, adeus paciência.
            A tecnologia televisiva está cada vez mais desenvolvida, permitindo a instalação de câmeras em trilhos, dirigíveis e no alto de morros próximos para que se tenha uma visão panorâmica da avenida dos desfiles, mas isso pouco ajuda a melhorar a transmissão como um todo. Até porque essa mesma tecnologia permite a inserção de uma quantidade de (d) efeitos especiais, como bonecos, propagandas, fogos, luzes e cores, usados abusivamente, de tal forma que o telespectador não consegue distinguir o que é real e o que é virtual.
            Outra dificuldade da transmissão é que as escolas hoje são praticamente iguais. Os carnavalescos são os mesmos, vivem trocando de emprego e o resultado é que as fantasias e alegorias parecem saídas da mesma fábrica. Quem vê os gigantescos carros alegóricos na TV pode pensar que eles foram produzidos pelos mesmos artistas. Até as caras dos bonecos são parecidas. Por isso, cada vez é mais difícil dar um palpite sobre a vencedora. O máximo que se pode distinguir é entre escolas ricas e menos ricas.
            Até pouco tempo, duas emissoras transmitiam a festa no Sambódromo. Hoje a exclusividade é da Globo, que determina até o início do horário de transmissão, de acordo com a conveniência de sua programação. Com isso, não há uma disputa pela escolha das melhores imagens. O telespectador só toma conhecimento das 'celebridades' globais que desfilaram. Se alguém de outra emissora desfilou, ninguém sabe, ninguém viu. Sem contar a preferência pelas imagens de mulheres nuas e saradas, também com corpos iguais, como se saíssem da mesma academia de ginástica. Pessoal da comunidade...bem, só quando é alguém com história curiosa para contar, como Dodô, a sambista de 84 anos que substituiu, no posto de rainha da bateria da Portela, uma conhecida modelo e apresentadora de TV. Ou, como diria aquele gozador: 'pobre só dança quando é preso, rico vai mesmo pro Sambódromo'. Infelizmente, o desfile das escolas é cada vez menos espontâneo, a comunidade pobre dos morros da cidade está cada vez mais marginalizada. O que manda nos enredos e nos destaques é o dinheiro dos patrocinadores e o espaço que pode render na mídia.
            Quem sofre com tudo isso, além do telespectador, são os profissionais escalados para a transmissão. O narrador transmite o desfile como se estivesse narrando uma emocionante partida de futebol. Ninguém sabe onde ele vai buscar tanta vibração para ler aqueles releases chatos que as escolas mandam para explicar e descrever a ordem do desfile, coisa que só mesmo os comentaristas, com vozes cansadas e lentas, conseguem destrinchar. E os repórteres, salvo raras exceções, 'cometem' informações e perguntas de doer os ouvidos. Como aquela que apresentou uma sambista assim: 'essa aqui é russa, nasceu na Russia'. Toimmm!!! Ou aquela, de outros carnavais, que perguntou a um sambista da velha guarda 'como é que se faz para entrar na velha guarda?' A resposta veio pronta e irônica: 'bom, minha filha, tem que ficar velho, né?'. Toimmm!!!
            Por hoje é só. No ano que vem tem mais. Tudo igual, como sempre.

Eliakim Araújo
(Eliakim Araújo foi noticiarista da Radio Jornal do Brasil, Âncora dos Jornais da Globo, da Manchete e do SBT. Ancorou o primeiro canal internacional de notícias em língua portuguesa. Vive em Miami, onde tem uma produtora de jornalismo e publicidade. É diretor de redação do site Direto da Redação.)
(Publicado originalmente em Direto da Redação em 26 de fevereiro de 2004)

 

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