Mangueira, equilíbrio e intimismo:
Cadu e sua "estética do artesanato"

 

"Eu não vivo no passado; é o passado que vive em mim"
Paulinho da Viola

            Após três anos em que foram derrotados na final, Cadu e seus parceiros finalmente venceram a disputa na Mangueira com relativa facilidade (a decisão na final foi quase unânime) em sua quarta final consecutiva. Este
samba é uma espécie de síntese da visão dos compositores sobre o gênero, e ao mesmo tempo consolida sua progressiva evolução, sendo o samba mais trabalhado da parceria.
            Para Cadu, não se trata de fazer um samba de invenção: sua proposta é trabalhar de forma incansável e minuciosa dentro dos estreitos limites do gênero. É um samba mais de transpiração que de inspiração, o que de forma alguma significa um demérito: é nítida a preocupação dos autores em buscar a palavra mais exata, o acorde mais perfeito, o tom exato. Dessa forma, a grande chave que sintetiza a impressão causada pelo samba é o equilíbrio. É essa obsessão pelo acabamento que cristaliza a "estética do artesanato" dos compositores.
            Mas quem pensa, a partir dessas linhas, que se trata de mero acabamento mecanicista está muito enganado. Por trás de sua aparente estrutura que beira o convencional, desvela-se como nítida expressão pessoal, e daí resume a incrível sutileza desse samba. (E daí lembramos os recursos de uma arte que luta intensamente para esconder seus supostos vestígios de expressão pessoal, mas que acaba paradoxalmente por revelar-se - ou seja, a estética classicista, desde um filme de Howard Hawks até um romance de Tolstoi...) .
            Sua expressão autoral está na leitura do enredo pelos autores como uma inevitável expressão de saudade e melancolia. Nesse enfoque, tudo se encaixou plenamente ao estilo dos autores de preferirem os meios-tons e a
chave em tom menor. O início do samba, numa espécie de "flashback", já evidencia a estratégia dos autores: é a partir da herança partida do hoje que se olham as maravilhas do ontem. Nesse passeio íntimo pelas riquezas de
Minas, seu olhar pelo passado nunca é meramente saudosista e antigo (apesar de claramente tender a isto), mas se conjuga sutilmente com a necessidade do presente. Vejamos a estratégia dos autores em seu refrão do meio:

"Por belos recantos, andei
Das suas águas provei
De mansinho, eu peço passagem
A Mangueira vai seguir viagem"

            Os dois primeiros versos tratam das belezas do passado; o terceiro, reforça o tom de intimidade e sutileza que já existia nos dois primeiros versos. Mas o quarto é o mais elucidativo: mostra que mais que simples viagem ao
passado, é um pequeno estudo sobre o papel do tempo. Seguindo a viagem pelos recantos, os autores mostram que a vida precisa continuar, que não se pode viver eternamente no passado, que o trem precisa seguir até o seu destino
final. No fundo não deixa de ser triste, porque revela que é impossível permanecer lá para sempre, ou seja, não deixa de ser um olhar humilde sobre a fugacidade da vida.
            Todo o samba se estrutura na idéia do percurso e na problematização da revisitação do passado. A primeira estrofe apresenta a questão de forma bastante sugestiva ("A estrada do sonho" / "Real desejo de poder e ambição"). Com "a estrada do sonho", os autores resumem toda a idéia de percurso que caracteriza o samba, além da visão do passado como refúgio idílico impossível. Mas no verso seguinte, o "real desejo" traz de volta a importância da realidade (e a estrada é conhecida como "estrada real"...)
            Por fim, em duas partes o samba coroa a fusão de presente e passado e sua estrutura do percurso com uma idéia de destino. A primeira, mais descritiva, é em "eu chego ao Rio com certeza". Mas a segunda é mais poética, uma das chaves de elucidação do discurso dos autores: "As trilhas bordadas em ouro / levaram tesouros a caminho do mar". A ambigüidade dos versos revela a sutileza desse samba: por um lado, um recurso negativo, já que a chegada ao mar representa o escoamento das riquezas para fora do país, uma perda de identidade. Por outro, positivo, já que o percurso e a viagem acabaram sendo bem-sucedidos. O mar surge, então, com inevitável força, como elemento simbólico, valorizado pela melodia, que ganha contornos mais líricos. É em direção a esse mar, como síntese entre o exílio e o encontro, que segue todo o percurso do samba por um rastro de passado perdido.

Marcelo Ikeda
(Publicado originalmente na lista de discussão Palácio do Samba em 15/01/2004)

 

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