Unidos do Salgueiro, 1953

 

            Precisamente a 2 de agosto de 1953, um domingo, mais uma vez subimos o morro. Galgamos a pedra nua, íngreme e resvaladiça, para alcançar o Terreiro Grande, um dos nascedouros da escola de samba. Lá, batemos um longo "papo" com Luciano Rosa, então com 31 anos, ajudante de caminhão, carioca do Salgueiro, e com o irmão, Noel (Noel Rosa), compositor, que o ajudava nas lembranças. A entrevista teve o patrocínio jovial de Calça Larga, que sugeria ou explicava coisas e de vez em quando nos brindava com novas porções de conhaque de alcatrão.
            Transcrevo a nota de campo que redigi sobre a entrevista.
            A escola Unidos do Salgueiro chamava-se antes Três Unidos, pois resultou da fusão de três grupos diferentes de sambistas do Salgueiro. Os pontos de reunião para o samba eram o Terreiro Grande e o Sunga-Camisa. Promovia o samba Pedrinho (Pedro Barcelos), pedreiro, diretor de harmonia, falecido em 1930 ou 1931. Os grandes sambistas do Salgueiro eram, então, Buruca, lustrador, que devia estar pelos 30 anos em 1932-1933 e tinha já uns 14 anos de morto; Antenor Gargalhada, pedreiro, falecido entre 1932 e 1935, da Azul e Branco; e Franklin de Oliveira, fundador da escola, falecido dois anos antes (1951). Os irmãos Rosa lembraram ainda Rubem, da Depois Eu Digo, e Canuto, ambos do Salgueiro.
            A escola desfilava no carnaval em formação à vontade, mas a tendência era a de pôr à frente as baianas (que agora dizemos pastoras). As mulheres vestiam chitão, os homens traziam calças brancas. O abre-alas, um cartaz conduzido à mão, abria a marcha, vindo em seguida o coro masculino, a primeira porta-estandarte com o seu baliza, as baianas, a segunda porta-estandarte com seu baliza, a bateria. (A nota de campo não esclarece se estas baianas eram ou não as pastoras da frente da escola, nem por que se colocavam tão no cabo do desfile. Por precaução em caso de conflito?) Os sambistas conduziam nos braços caramanchões, lanternas, bonecos de massa, cartazes e figuras de jacaré, de porco, de águia. Não havia carretas, nem alegorias, e só depois de 1930 surgiu o enredo. Não se usava corda para isolar a escola.
            A Unidos do Salgueiro, como as demais escolas, preparava dois sambas para o carnaval — um que se cantava na ida e outro na volta, ante a comissão julgadora na Praça Onze. Os sambas eram apenas um estribilho (primeira parte) sobre o qual os sambistas improvisavam (versavam). Os prêmios eram dados no mesmo dia da competição...
            Neste ponto Calça Larga interveio para contar que a escola Faz Vergonha, de Vila Isabel, que existiu durante alguns anos a partir de 1928, indicava, ao desfilar pela primeira vez diante da comissão, o troféu que desejava ganhar; e, na volta, se não o recebia, derrubava palanque e comissão.
            Surdos, tamborins, cuícas e taróis constituíam a bateria, a que se acrescentava o conjunto prato e faca — ou colher.
            A Unidos do Salgueiro exibia-se na praça Saens Peña, percorria o bairro da Tijuca e visitava a cidade na segunda e na terça-feira do carnaval, fazendo samba na praça Tiradentes e no largo da Carioca.
            A polícia proibira o pandeiro de tarracha, pois os choques entre escolas eram freqüentes. Um conflito que ficou célebre teve por palco a Feira de Amostras, em 1934, e por contendores da Azul e Branco, do Salgueiro e da Vizinha Faladeira, do morro do Pinto.
            Acompanham a nota de campo alguns improvisos, estribilhos e quadras de famosos sambistas do Salgueiro.

  • Estribilho de Buruca:

Vem clareando o dia
As estrelas estão próximas a sumir
Eu dando soco no sereno
Sem ter razão
Pela mulher que me deixou na mão.

  • De Pedrinho (Pedro Barcelos):

Sonhei que cantava
Acompanhado com pandeiro
Ao despertar ouvi
O samba,
O samba em meu terreiro.

  • De Franklin de Oliveira, talvez de 1927:

Terreiro Grande,
Paraíso da infância,
Tem cabrocha bonitinha
Que no cantar deixa lembrança.

  • De Franklin de Oliveira e Pedrinho (Pedro Barcelos), talvez de 1928:

Meu sabiá, ô sabiá
Tu canta, me faz alembrá
Ô pobre bichinho
Qu’está preso na gaiola
Adeus, Terreiro Grande,
Qu’eu já vou m’embora.

  • E este, anônimo:

Um a, um b, um c
Baiana, me ensina
Qu’eu quero aprendê
As quatro operação de conta
Baiana, me ensina qu’eu
Vou com você.

  • Em 1928 ou 1929 a Faz Vergonha deu uma alfinetada no Salgueiro,

Oswaldo Cruz,
Morro de Mangueira,
Favela, Estácio de Sá,
Vamos acordar o Salgueiro,
Que o mundo inteiro
Quer ouvir o seu cantar

  • Mas a réplica de Antenor Gargalhada não se fez esperar:

Uma resposta em cima da hora
Tenho prazer e glória
Em citar
Mas o Salgueiro não está adormecido
Quem é a Vila pra nos acordar?

            Era comum no Salgueiro o dito "disfarce e olhe", mas a que episódio particular aludiria Franklin de Oliveira nesta insinuação, talvez também de 1927, não explicada na nota de campo?

Disfarça e olha
E vê se pode.
O Azul e Cor-de-Rosa
É difícil dar o azar.
Temos um pouquinho de capricho
Ora, meu bem,
Deixa a má língua falar.

            De Aníbal da Silva, dado como o seresteiro da Praia do Pinto, colhemos estes improvisos de mais ou menos 1930:

Eu fui convidado
Pra uma missa à fantasia.
O padre ‘stava de Pierrot,
Sambando na sacristia.

Eu me chamo Anjba
O que é que você quer?
Tenho casa e comida,
Roupa lavada e mulher.

            Um improviso de Birrinho (Luís de Oliveira e Souza), camelô de feira, filho de Ti’Casemiro das Cravinas de Botafogo, morador do morro do Cantagalo, toma liberdades com a sentença latina Quod natura dat nemo negare potest e confere um diploma ao versador:

Mangarem em potes
Que é de Memel
Traduzindo o francês pra inglês:
Eu na roda do samba
Sou bacharel.

            Entre os antigos improvisadores lembrou-se ainda Broa (Jorge Pinto Gonçalves), de Botafogo.
            Anotamos, também, o samba de Clarivaldo da Mota (de 1940?) em torno do imposto dos solteiros, que tanto os irmãos Rosa como Calça Larga deram como samba de enredo:

Dizem que o solteiro vai pagar imposto
Sou obrigado a me casar sem querer
Mas o meu dinheiro não chega...
Como é que eu vou viver?

A lei do casamento não é do meu gosto
Eu caso para me livrar do imposto
Veja como as coisas estão feias:

Ou casa ou paga imposto
Ou se não vai p’ra...

            Não fizemos gravações — o nosso modesto Revere estava em conserto — nem anotamos a solfa. Não tínhamos conseguido ainda entendidos em música. De qualquer maneira, passados tantos anos, as melodias teriam perdido o "molho" peculiar da época — não seriam fiéis. Naquele dia, no Terreiro Grande, todo o nosso instrumental eram papel, lápis e um pouco de discernimento.

 

Edson Carneiro
Publicado em Folguedos Tradicionais
(É folclorista )

 

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