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Havia algo de profecia.
Talvez Paulo da Portela, Caetano e Rufino, entre outros dos primeiros
tempos, não imaginassem que aquele ritmo aprendido com o pessoal do Estácio
saísse da condição marginal para representar toda uma nação, em qualquer
lugar e em todas as manifestações, definindo nossa identidade cultural.
Foi o que constatei no último dia 02 de dezembro, Dia Nacional do Samba.
Pelo segundo ano consecutivo,
fui à Gare da Central do Brasil – não era assim antigamente? A farra
já havia começado na composição que eu e mais um grupo pegamos na Estação
Engenho de Dentro. Eis que no vagão em que entramos o samba já corria
solto e diversos amigos da Portela que encontramos, passistas, componentes
e algumas baianas, já estavam na folia. Era aquele cantar os sambas
do Zeca Pagodinho, aquela alegria que só os reencontros permitem.
E se aproximava o destino. As portas abriram e a plataforma foi
invadida por aquele verdadeiro bloco, misturando-se aos outros batuques,
que ecoavam nas outras plataformas, no saguão de entrada, e gente vindo,
na verdadeira apoteose.
Dizem que felicidade
é um substantivo abstrato. Que nada! Era concreta, palpável,
palatável. Sentíamos o cheiro da raça. Sorrisos de todos os
cantos, de todos os níveis culturais, dos diversos estratos sociais.
Éramos todos, naquele momento, súditos de Sua Majestade, o Samba, personificado
em azul e branco. E víamos o verde, o rosa, o vermelho. Todas
as cores desfraldavam amor e histórias. A Velha Guarda sempre solicitada
pelas câmeras e microfones. Os flashes.
A fotografia para sempre. Voltei no tempo.
Via o pessoal da Portela
reunido. Em fins dos anos 20, todo mundo se reunia diariamente pra
pegar o trem das 18:04 h em direção ao subúrbio. “Esse trem era
paradouro”, nos conta Ernani Rosário, passageiro habitual do horário,
nos noticiam Lygia Santos e Marília Barbosa, na biografia Paulo da Portela, traço de união entre duas culturas: “
vinha parando em todas as estações, do Engenho de Dentro a Cascadura.
A turma desabava toda em Oswaldo Cruz, a maioria. Outros iam para
Bento Ribeiro, Madureira e adjacências. Ali passava-se o samba.
Já começava a passar o samba na Central, enquanto esperava o trem.
O pessoal ia chegando quatro horas, quatro e meia, até seis e quatro,
quando chegava o trem. E uma turma ia de Oswaldo Cruz. Quando
chegava umas cinco horas, tomava um banhozinho, botava o paletó, enfiava
o tamborim, debaixo do braço e partia pra lá pra se reunir. Na estação
D. Pedro II, o carro de prefixo Deodoro era a sede móvel da Portela, a
sede volante. As pessoas iam de Oswaldo Cruz até a Central pra poder
voltar junto(...) O carro da Central era sempre dos amigos.”
Sentia-me amigo de todo
mundo. Que privilégio estar ali, melhor ainda estar de volta uma
tradição tão bonita. E de novo o pessoal de Osvaldo
Cruz reinventando uma história. Que se espalha pela cidade e pelo
mundo. Gente das mais tradicionais rodas de samba do Rio.
Gente de São Paulo, de Minas. Da Inglaterra, da Alemanha, do Japão.
Não importa. Todo o mundo na felicidade de cantar junto sambas,
de todos os tipos, de todas as épocas, de todas as escolas. Sambas
de todos os sambistas.
Mauro Duarte, Clara Nunes,
João Nogueira, Silas de Oliveira, Nelson Cavaquinho, Candeia, Cartola,
Manacéa, Roberto Ribeiro. Rufino, Dona Ivone Lara, Arlindo Cruz.
Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Monarco, Noca. Todo mundo presente.
E a memória nunca esteve tão fresca pra lembrar dessas jóias.
E chegar a Osvaldo Cruz,
cantando os sambas-de-enredo – era assim antigamente! – da Portela, é
pôr-se à prova dos limites do coração.
Hoje, tenho a certeza de que Paulo era profeta.
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