A cultura do brincar*

 

            O título do debate que hoje se inicia e O Carnaval e a Cultura do Brincar. O Carnaval todo mundo sabe o que e. Já a Cultura do Brincar ainda precisa ser explicada. Antes disso, eu gostaria de rememorar a historia através da qual eu descobri que o Carnaval faz parte da cultura do brincar que, por sua vez, faz parte de uma cultura do riso datada da Renascença, a chamada cultura rabelaisiana ou da praça popular.
            Foi em 1979 que o Carnaval me arrebatou, passou a ser o meu tema e isso por causa da eclosão no mundo de uma frase. Uma frase então de uma audácia inusitada, que foi mesmo uma espécie de aparição. A frase era: "Quem gosta de miséria e intelectual. O povo gosta de luxo". O autor, como se sabe, e Joãosinho Trinta que, na época, parecia suspeito a inteligentzia deste nosso estranho pais.
            Precisamente porque parecia suspeito, eu fui ter com ele para saber o que a frase significava e então Joãosinho me explicou que a inteligentzia se enganava ao se opor ao Carnaval cujo luxo não e o do dinheiro, mas o da imaginação.
            Nessa mesma ocasião, eu, que pertencia a dita elite intelectual, perguntei a ele se o Carnaval não era um fenômeno marginal e ele me respondeu, sem mais, que marginal era eu. Foi ai que eu me amarrei. Quis entender porque Joãosinho se autorizava a dizer isso e passei então a ouvir os carnavalescos das diferentes escolas de samba do Rio de Janeiro. De 1979 a 1981 eu me pus a escuta de um Brasil ao qual a elite ainda não havia dado ouvidos, embora Joãosinho Trinta já fosse considerado um fenômeno e já tivesse ocupado as paginas amarelas da Veja.
            Foi dessa escuta que resultou Os bastidores do Carnaval, que eu levei cinco anos para conseguir publicar e e agora editado pela terceira vez na Empresa das Artes, com o patrocínio das Secretarias de Cultura de São Paulo e do Rio de Janeiro, ou seja, quinze anos depois o livro se tornou um livro oficial.
            Também foi graças a escuta dos carnavalescos que eu tive a idéia central de um outro livro, O que e Amor?, inúmeras vezes reeditado pela Brasiliense, e no qual eu introduzi a idéia de que nos brasileiros temos uma paixão que nos e característica, a paixão do brincar, exemplificada pelo Macunaíma. O herói nacional e sua amada brincavam que mais brincavam, escreveu Mario de Andrade apontando um traço nosso. Eu cito: "Os dois brincavam que mais brincavam num deboche de amor prodigioso (...) despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar".
            A cultura que sobeja a esta paixão e a cultura dionisíaca do brincar, que eu descobri ouvindo Joãosinho Trinta me dizer em 1980 que a cultura brasileira e a cultura fluindo através da brincadeira, e a Grécia, o Egito, Roma na Marques de Sapucaí, os deuses, as deusas, as ventais...
            O que mais caracteriza a cultura macunaimica do brincar? Sumariamente eu diria que ela não se manifesta através de dogmas como a cultura oficial, mas de um estilo que se diferencia incessantemente evitando toda coincidência definitiva consigo mesmo, promovendo antes a ambivalência, exaltando a alegria e solicitando o riso. A exemplo, o travesti carnavalesco que se vale do masculino para ridicularizar o feminino; em outras palavras, faz uma sátira da alternativa implícita na diferença sexual, de ser isto ou aquilo, para travestindo-se ser isto e aquilo, ambivalente.
            A cultura do brincar, que se manifesta no jogo, na festa, na literatura, se prevalece dos mesmos recursos presentes na elaboração do sonho. Por isso, ela e indiferente ao principio da não e ao tempo cronológico. O Colosso de Rodes, os Jardins Suspensos da Babilônia e as Pirâmides do Egito podem coexistir num mesmo enredo de escola de samba, como, por exemplo, na Beija-Flor em 1981. A diferença do Museu que valoriza a cronologia, o Carnaval faz coexistir as representações de todos os passados, do presente e do futuro. Ele e atemporal.
            Distraidamente sacrílega, a cultura do brincar reverencia irreverentemente as outras culturas que ela brincando dessacraliza. Celebra devorando a diferença para criar e recriar a nossa identidade. Interessa-se pelas realizações do resto do Ocidente, mas não se deixa inibir, apropria-se de tudo que estiver a mão. O mundo e dela que e do mundo. O Hamlet de Shakespeare com Jose Celso vira Hamlet que, do Brasil, agora vai a Inglaterra.
            Quanto ao Carnaval brasileiro, que também não cessa de se exportar, ele não e senão uma das expressões da cultura do brincar e, nos bastidores da festa, no lugar onde ela se prepara, o espaço secreto do barracão, eu me dei conta de que o Carnaval e a memória deste pais desmemoriado, de que ele e um culto paradoxal do esquecimento através do qual o Brasil se reinventa incessantemente, narrando a sua verdadeira historia.
            E disso que eu trato no Bastidores do Carnaval. Nele, o Carnaval não e analisado através do desfile, mas do discurso dos carnavalescos e das alegorias, fotografadas no barracão por um grande fotografo, Jorge Bodansky, cujas fotos retrabalhadas por uma artista plástica e uma diagramador de gênio, Denise Milan e Emilie Chamie, permitiram criar uma metáfora visual do Carnaval.
            Culto paradoxal do esquecimento, ele tanto rememora a historia do Brasil quanto a fantasia dos descobridores, a de chegar ao Paraíso. Assim sendo, coloca em cena os elementos da geografia fantástica do paraíso, a flora e a fauna antropomórfica, os homens-gatos que são os mensageiros do Eldorado e os homens com cauda de pavão. Traz os reinos áureos e argênteos, faz de novo ressurgir o imaginário mítico dos nossos antepassados. A sua maneira, o Carnaval e um culto dos ancestrais e e por isso que, malgrado tantas dificuldades, ele vinga todo ano, e a Republica do Samba e sempre gloriosa, não e nunca uma republiqueta.
            Dela tanto faz parte o desfile carnavalesco, que Joãosinho Trinta chamou de opera de rua, quanto o teatro produzido pelo Oficina, um teatro que e o nosso musical, que já deu o Hamlet e, com a mesma fé em Dionísio, proximamente vai nos dar As bacantes.
            Da Republica do Samba fazemos parte nos e os outros todos do extremo norte ou sul que também estiverem identificados com o que e genuinamente brasileiro. A cultura macunaimica e antropofágica do brincar de tão nacional não precisa ser contraria ao estrangeiro, não e nacionalista porque ela e indiscutivelmente universal.

.

 
Betty Milan
Seminário sobre Carnaval e Identidade Cultural,
Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo, 13 de setembro de 1995

 

Artigos