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O CD de Argemiro Patrocínio
é maravilhoso
Pisar terreno conhecido é sempre
mais seguro, mas sair dos trilhos costuma trazer recompensas mais saborosas.
Não conheço o assunto tão bem quanto um João Máximo, um Nei Lopes, um
Aldir Blanc, e minha cintura é tão dura quanto à do zagueiro polaco Tomasz
Waldoch. No entanto, o fato de não escrever amiúde sobre samba não significa
desprezo pelo gênero: pelo contrário, é um sintoma de respeito de quem
não quer cair na batatada. Há, porém, momentos em que a prudência cede
ao entusiasmo. O CD de Argemiro Patrocínio, 79 anos, membro da Velha Guarda
da Portela, justifica qualquer arroubo.
Além do mais, são atos que podem andar em paralelo: escrever não apenas
por entender e sim também escrever para entender. A primeira fornada de
“Argemiro Patrocínio” saiu casadinha, numa sobrecapa, com o CD de Seu
Jair do Cavaquinho, de 80 anos, pelo selo Phonomotor, da cantora Marisa
Monte, o mesmo pelo qual foi lançado, em 1999, “Tudo azul”, do coletivo
Velha Guarda da Portela. Conquanto esses dois últimos títulos sejam formidáveis,
a estréia (acredite, estréia) solo de Argemiro brilha no meio deles. Por
que alguns discos batem e outros não? Não há resposta, apenas tentativas.
Antes até da audição do CD, o encarte de “Argemiro Patrocínio” já sugere
uma vertente de análise. Além das letras, das notações e das fichas técnicas
de cada música, cuidados comuns ao trabalho de Seu Jair, ele conta um
causo revelador. Levado por Paulinho da Viola a um bar onde estavam Vinicius
de Moraes e Chico Buarque, alguém pediu-lhe, meio galhofeiramente, para
fazer “um samba sobre essa garrafa” (deviam estar na maior água, lógico).
A resposta do pandeirista da Portela foi de uma inteligência fulminante:
“Eu não vou fazer porque eu não tô sentindo nada por ela.”
Então, de cara a gente fica sabendo que os sambas de Argemiro — em parceria
com gente da estirpe de um Casquinha, um Alberto Lonato, um Francisco
Santana — estão encharcados de sentimento. Não têm nada a ver nem com
os pagodes descoloridos dos Belos da vida nem com a corrida maluca dos
atuais sambas enredo. Sua cadência alicia, envolve, seduz, faz pensar.
E é até engraçado quando a gente se pega batucando na mesa do bar ou do
computador — esse batuque erroneamente associado só à alegria — e cantarolando
baixinho algo tão dolorido quanto “Solidão”: “Quanto mais que se procura/
Em noites claras ou escuras/ Vive só em seu humilde barracão/ Para ele,
as noites longas são mais frias/ As esperanças são sombrias/ Assim é a
solidão.”
Argemiro canta bem porque canta do jeito que compõe: com sentimento. Por
isso as letras são valorizadas. A maior parte delas versa brilhantemente
sobre abandono, perda, sofrimento, solidão mesmo. Como “A chuva cai” (dele
com Casquinha): “Já lhe pedi, não vá embora/ Espere o tempo melhorar/
Até a própria natureza/ Está pedindo pra você ficar.” Ou como “Nuvem que
passou”: “Você foi uma nuvem que passou/ E que não volta mais/ Mudar o
meu viver você tentou/ Não conseguiu jamais.” Mas há uma ou outra janela
entreaberta para o humor, como em “Saia da casa dos outros” (dele com
Darcy Maravilha): “Saia da casa dos outros, mulher/ E vem arrumar seu
ninho/ Você gosta de meter a colher/ Na conversa do vizinho/ Panela que
muito se mexe/ A comida estraga.”
O tempero de Argemiro está explicado em “Deslize da vida” (com Francisco
Santana): “A vida/ Não é somente doçura/ Tem que haver amargura/ Para
se dar o valor.” Por trás desses versos, apenas o autor, ao pandeiro;
Paulão Sete Cordas, nos violões; Mauro Diniz, no cavaquinho e no balde;
e Marcelo Costa, na vassourinha. Essas escalação mostra bem o acerto da
produtora Marisa Monte e do co-produtor Antoine Midani. Eles e os arranjadores
Sete Cordas e Diniz optaram por uma instrumentação esparsa. Não se optou
nem por uma orquestração luxuosa, como a que marca as excelentes produções
de Rildo Hora para Zeca Pagodinho, nem por entupir as faixas de pianos
acústicos ou elétricos (aliás, aqui totalmente ausentes), vício que pasteuriza
tantos discos que poderiam soar melhor.
Outra bola dentro em “Argemiro Patrocínio” está nas participações especiais.
Os instrumentistas surgem para realçar a melancolia das composições, caso
das intervenções do violoncelista Jaques Morelenbaum e do acordeonista
Waldonis. E os cantores, entre eles a própria Marisa e Zeca Pagodinho,
não se sobrepõem ao dono do pedaço, como nos CDs em que os convidados
parecem estar num pau-de-sebo ou numa coletânea. O destaque, porém, vai
para Moreno Veloso (um Caetano menos árabe, em “Vou me embora para bem
longe”) e para Teresa Cristina (“Amém”, parceria da musa da Lapa com Argemiro).
Portanto, o álbum do velho portelense é íntegro em mais de um sentido
da palavra. Nem a faixa-bônus-para-dar-um-toque-de-modernidade — um remix
de Marcelo D2 e Cleber França para “Vou me embora pra bem longe” — ousa
afastar-se demais do resto do trabalho. Fica bem legal.
Alguém já abriu a votação para melhor disco brasileiro do ano?
Quero crer que, neste momento, o mangueirense Tim Lopes está escutando
o CD do Argemiro e discutindo velhos times do Vasco com o Chico Nelson
e o Almir Muniz, livres das nossas mazelas, livres dessa merda toda aqui
embaixo. Assim deveria ser o Paraíso.
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