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Resumo:
O artigo trata do surgimento das escolas de sambas no cenário urbano do Rio de Janeiro e as ocupações de morros, favelas e subúrbios pelas comunidades associadas a essas agremiações carnavalescas. Agremiações que engendram modos subjetivos e mecanismos de identificação social a quem se vincula afetivamente a elas. O artigo também se propõe a discutir as formas pelas quais as escolas de samba produziram redes de sociabilidade e de rivalidade, transpondo barreiras sociais, geográficas e econômicas, o que resulta, amiúde, na valoração positiva dos territórios ocupados por elas.
Palavras-chave: Samba. Territorialidade. Identificação social.
Introdução:
Na visão de Santos (1997), é crescente o interesse científico-social pelo entendimento da ocupação humana do espaço geográfico. Este, ao ser ocupado pelas sociedades humanas, apresenta uma dinâmica própria: uma realidade relacional que não dissocia objetos naturais e sociais. Cada ocupação de espaço implicaria necessariamente formas e conteúdos específicos de as coletividades existirem e se diferenciarem entre si.
A ocupação social do espaço urbano carioca pelas escolas de samba resultou em um peculiar processo de produção de identidades sociais . Grosso modo, os sambistas convivem em diferentes espaços e situações urbanas cariocas, apresentando distintos projetos de vida
[1] e encontrando, nas redes de sociabilidade propiciadas pelas escolas de samba, momentos de lazer, compartilhamento coletivo de sentimentos. Além disso, eles internalizam referenciais simbólicos que os identificam socialmente como torcedores desta ou daquela agremiação carnavalesca.
Essas identidades sociais, engendradas a partir da disputa festiva entre as escolas de samba, remetem diretamente a uma das problemáticas centrais levantadas por Velho (1994), qual seja: o fato de as sociedades complexas modernas apresentarem diferentes contextos sociais e níveis de realidades que são operados e vivenciados singularmente pelos indivíduos e grupos sociais. O autor prossegue afirmando que a urbanidade das cidades demarcaria espaços e temporalidades perpassados pela heterogeneidade, diversidade, conflitos e descontinuidades. Outrossim, as sociedades complexas urbanas viveriam permanentemente as contradições entre particularizações de experiências restritas a um grupo e a universalização de valores, temas e estilos de vida que perpassam indistintamente por todas as camadas sociais
[2]. Por seu turno, as escolas de sambas, a despeito de estarem inseridas na tessitura de tramas sociais urbanas, são instituições onde prevalecem valores pessoais e hierárquicos. Isto se configura como um indício de que a sociabilidade interna às escolas de samba estaria em tensão com o modelo de sociabilidade preponderante nas sociedades complexas. Detalhe, a subjetividade sambista demanda que o estar junto e o agir complementarmente se sobreponham aos valores modernos de individualidade e isolamento social (SANTOS, 2006).
Conforme sinaliza Becker (1977), o relevante de uma análise sociológica sobre mundos sociais é ver como os próprios nativos distinguem o que lhes é característico do que não é tomado como componente de seus mundos. Nessa direção, buscarei discorrer sucintamente como os torcedores das escolas de samba cariocas vivenciam os processos de construção de suas identidades sociais.
O Samba Carioca: uma perspectiva histórica
O debate sobre a origem do samba no contexto urbano do Rio de Janeiro é acirrado e cercado de controvérsias. Há perspectivas concorrentes sobre o surgimento, circulação e difusão desse estilo musical no início do século XX na então capital da República. De maneira esquemática, há os estudos que valorizam sua dimensão autócne, associando o samba exclusivamente à cultura negra, entre eles, as literaturas produzidas pelo jornalista Sérgio Cabral (1996) e pelo sambista e historiador Nei Lopes (2003). Por outro lado, existem os estudos analisando o samba como um mediador cultural entre os diferentes segmentos sociais cariocas: Sandroni (2001), Viana (2002); e Cavalcanti (2007).
Até o final do século XIX, o termo samba não
designava um estilo de música específica, significando mormente festejo ou baile popular. Segundo Sandroni (2001), o samba surgiu como dança na zona rural da Bahia, sendo trazido ao Rio de Janeiro nos primeiros anos do século passado por negros baianos libertos e seus descendentes. Possuidor de uma origem negra e rural, o samba teria tido uma recepção negativa pelas camadas sociais cariocas mais abastadas, que preferiam os saraus, a polca e a valsa.
A reforma urbana [3] posta em prática pelo prefeito Pereira Passos no começo do século XX expulsou a maioria dos negros e pobres do centro da cidade, entre eles, muitos sambistas que passaram a habitar morros, subúrbios e favelas do Rio do Janeiro: a exemplo, os morros de São Carlos, da Mangueira, do Borel, do Salgueiros e regiões suburbanas, como Madureira e Osvaldo Cruz, entre outras.
Embora compartilhe a tese de que o samba era, desde seus primórdios, um mediador simbólico entre camadas sociais e raciais distintas, é complexo não admitir que os primeiros encontros entre sambistas, que aconteciam nas casas das Tias Baianas
[4], foram frequentadas, em sua maioria, por descendentes de africanos. Nessa acepção, Ferreira (2005) relembra que, durante extensa parte do século XIX e começo do século XX, pobres e negros, no Rio de Janeiro, eram praticamente excluídos das comemorações e festejos burgueses, como os bailes de máscaras e os cortejos das grandes sociedades. Por isso, as camadas populares teriam inventado suas próprias expressões de lazer, como as rodas de sambas e os blocos e ranchos carnavalescos.
Convém relembrar também que o Rio de Janeiro, como a capital da República, no início do século XX, era referência para a importação e circulação da ideologia capitalista-industrial para todo o território nacional. Por conseguinte, os encontros entre os sambistas nesse período não coadunavam com os ideais de civilidades burgueses que tentavam ser implantados em diversas esferas sociais pelas elites econômicas e
intelectuais dominantes. Nesse sentido, os sambistas, assim como capoeiras e adeptos de cultos africanos, não podiam ocupar livremente os espaço públicos, passando a ser severamente reprimidos pela polícia. Eles eram, quando muito, tolerados nos subúrbios e favelas (MAIOLINO, 2005, p. 57). Registraria ainda que modos subjetivos de usar roupas e trejeitos na maneira de se comportar sociais, quando não apropriados ao modelo europeu hegemônico eram também coibidos pelas instâncias governamentais. A propósito, a perseguição policial aos sambistas, nesse transcurso, se inseria no amplo processo civilizador da sociedade carioca, tendo como agravante o fato de os sambistas serem associados socialmente às figuras de malandros, negros vadios e desocupados
[5].
Assim, as primeiras rodas de sambas realizadas nas casas das Tias podem ser entendidas como espaços de lazer e de sociabilidade para sujeitos - negros em sua maioria - cujas rotinas urbanas eram perpassadas pelo trabalho, pelo lar, pelo botequim e pelas perseguições policiais, como bem analisara Chaloub (1986). Ou seja, embora maculados socialmente por questões raciais e cerceados em suas liberdadades de se expressarem musical e corporalmente nos espaços públicos, os sambistas procuravam brechas por onde dar vazão à sua criatividade e à necessidade humana de regozijo
[6].
Vale dizer, no entanto, que, nesse ínterim, as rodas de samba, além de proporcionarem momentos de sociabilidade e serem baseadas em relações pessoais, eram cenários também para a solução de rixas amorosas entre seus frequentadores, posto amiúde haver entre os sambistas agressões físicas em decorrência da disputa pela atenção da mesma mulher (SANDRONI, 2001). Ademais, havia confrontos musicais entre os sambistas para informalmente se eleger o mais talentoso na improvisação de versos. A institucionalização das escolas de samba modificou a dinâmica dessas relações sociais.
A formação das Escolas
de Samba e os processos de identificação coletiva
Nas décadas de 1930 e 1940, período de surgimento e de expansão das primeiras escolas de samba, a cidade do Rio de Janeiro intensificava as divisões sociais e espaciais entre as zonas norte e sul. A primeira suburbana e proletária; a segunda, elitizada e intelectualizada. A centralização política do Estado Novo reforçou a pujança cultural carioca em relação ao restante do país. No âmbito
carnavalesco, conforme destaca Gonçalves (2003), os ranchos ainda pediam passagem pelas ruas da cidade, condensando os interesses das camadas médias e comercias urbanas. Esta preferência pelos ranchos decorria do fato de eles promoverem carnavais considerados moralizados que
consistiam na apresentação de organizados cortejos com limites de espaços e de tempo para a apresentação. E mais, estas expressões carnavalescas, além de representarem as identidades sociais de diversos bairros da cidade, permitiam que diferentes atores sociais se vinculassem socialmente.
Cumpre acrescentar que os ranchos, até meados da década de 1940, eram avaliados pelos segmentos médios cariocas como mais
civilizados do que os blocos de sujos e os até então estigmatizados desfiles de escolas de samba. Estas, mais tarde, incorporaram processos simbólicos e sociais pertencentes aos ranchos, como a competição agonística, cortejos procissionais marcados pela música e pela dança, além dos processos sociais de reciprocidade e de rivalidade que faziam e fazem dialogar os diferentes grupos e camadas sociais citadinas na confecção dos desfiles.
O surgimento e consolidação das escolas de samba do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1920 e 1940, desencadearam repercussões significativas nas relações sociais travadas entre os sambistas, haja vista os vínculos e tensões, no mundo do samba, passarem a ser tecidos a partir de uma perspectiva coletiva. Destarte, os sambistas passaram a estabelecer processos de identificação com as agremiações carnavalescas que representavam e defendiam durante o carnaval. Os processos de vinculação dos sambistas com as escolas de samba possibilitaram a irrupção de identidades sociais: salgueirense, portelense, mangueirense, imperiano, entre outras. A propósito, o caráter competitivo dos desfiles das escolas de samba impulsionou as agremiações carnavalescas a construírem e a acionarem signos diacríticos de alteridade. Desse modo, as cores de cada agremiação
[7] , o ritmo da batida dos instrumentos de cada bateria, bem como os símbolos de animais
[8] e objetos reais [9] passaram a ser usados para o estabelecimento, na visão êmica, das identidades e das características singulares de cada escola de samba e de seus foliões.
No tocante à disputa festiva entre as escolas de samba, a competitividade é exacerbada quando duas ou mais agremiações estão localizadas no mesmo bairro ou em espaços urbanos próximos. Essa assertiva é calcada em um depoimento de Natal da Portela coletado por Araújo e Jório (1975) no que diz respeito à rivalidade existente entre as principais agremiações carnavalescas do subúrbio de Madureira. Senão vejamos:
Eu não gostava muito do pessoal do Império. A gente só vivia brigando. Eles eram
convencidos. Uma merda. O que me deixava puto é que foi o pessoal nosso, que saiu da Portela, para, juntamente com o Prazer da Serrinha, em 1947, fundar o
Império...O falecido Elói, do Império, mandava no cais. Ele não dava colher de chá ao pessoal que era da Portela tinha gente que não conseguia pegar um dia de estiva. Era só pro pessoal do Império... Uma vez a gente fazia aquele desfile de segunda-feira em Madureira, que se faz todo ano, quando, ao passar em frente ao
Império, um dos caras de lá meteu a mão no revolver e atirou em mim. Porra. O tempo esquentou. Quem estivesse de verde e branco entrava na porrada. Era homem, mulher, veado ou puta. Porrada neles. Foi uma das maiores porradas de Madureira. (ARAÚJO; JÓRIO, 1996, p.103-104).
A noção de territorialidade [10] está subjacente ao relato supracitado, visto revelar tensões entre duas escolas de samba que dividem o mesmo espaço urbano. Recordo que os ranchos e as escolas de samba desenvolveram estreitos laços identitário e sentimentos de pertencimento com os bairros que lhes deram origem (GONÇALVES, 2003; CAVALCANTI, 2007). Dessa forma, a disputa pelo domínio exclusivo ou a supremacia simbólica de uma territorialidade específica comumente passa a fazer parte da trama urbana de atores sociais que se vinculam a esses grupos carnavalescos.
Convém trazer à baila, no entanto, as ponderações de Zaluar (1985), ao estudar as organizações populares em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro, quando observou que a representação de uma territorialidade seria algo relativamente importante para essas comunidades. A autora insiste ainda que quando há duas associações ocupando a mesma localidade com o mesmo fim, elas findam por estabelecer seções territoriais e áreas de influência bem demarcadas.
São oportunos ainda os comentários de Waizbort (1999, p.92), ao analisar as similitudes entre os pensamentos de Nobert Elias e Georg Simmel, assinalando que, para estes autores, as relações sociais estão sempre em processo de construção e de
reconstrução. Em outras palavras, as interações sociais nunca estariam petrificadas, elas se fortaleceriam ou se esgarçariam continuamente. Nesse sentido, são verificáveis as mudanças ocorridas nas relações sociais existentes entre os sambistas após o surgimento das escolas de sambas cariocas. Antes de estas agremiações aparecerem no cenário urbano citadino, as relações sociais entre os sambistas possuíam um caráter pessoal. Após a institucionalização do samba, no entanto, o que se destaca é uma extensa rede de solidariedade e de sociabilidade atravessando bairros, morros e favelas, sobremaneira, nas regiões próximas ao centro urbano e nos subúrbios da Zona Norte e Oeste. Essas redes sociais foram e são mediadas primordialmente pelas escoas de sambas.
Ademais, na atualidade, conforme sinaliza Cavalcanti (2007), além de dimensões artísticas, os desfile das escolas de samba são
perpassados por aspectos notadamente econômicos e sociais, engendrando mediações complexas entre as diversas camadas sociais citadinas. São sambistas, amantes do samba, curiosos, turistas, artistas, empresários, visitantes ocasionais, que se relacionam entre si, ao participarem e tomarem partido de uma das agremiações que disputam anualmente o título de campeã do carnaval. Nessa perspectiva, reitero que as escolas de samba foram seminais para o aparecimento identidades sociais na cidade do Rio de Janeiro: mangueirense, salgueirenses etc. Assim, entre outras consequências, as escolas de sambas permitiram tanto que seus torcedores fossem identificados socialmente, quanto possibilitaram que sentimentos de paixão fossem compartilhados entre aqueles que estão vinculados à mesma agremiação carnavalesca.
Cabe enfatizar, entretanto, que o universo das escolas de sambas além de acionar processos artísticos e critérios de identificação social, é eivado de rivalidade. Em suas regras rituais, o mérito está em jogo: vence a melhor agremiação. Por isso, o samba, desde o seu primórdio até a contemporaneidade, serviu de espaço social tanto para o lazer quanto para o conflito.
Processos de
identificação dos sambistas na atualidade
No mundo do samba, as construções de identificações coletivas estruturam-se por mecanismos de simbolização, notadamente no uso de cores que aproximam ou diferenciam os torcedores das escolas de samba.
No tocante aos estudos antropológicos sobre as cores, Sahlins (2004, p. 155) sinaliza que estas são códigos semióticos por possuírem uma significância cultural . As cores seriam usadas como signos de esquemas sociais, cujos significados são atribuídos, combinados e diferenciados pelos indivíduos. Ou seja, a percepção humana das cores seria condicionada a partir das experiências compartilhadas por cada grupo social. Por seu turno, estudando a eficácia ritual das cores entre os Ndembus, Turner (1977) assevera que os diferentes sentidos atribuídos ao vermelho, preto, branco não seriam apenas em termos de percepção visual, pois seriam abstrações mentais extraídas dos distintos modos de classificações produzidas por aquela sociedade.
Trazendo esta reflexão teórica para a dinâmica das escolas de samba, diria haver controvérsias sobre o processo como cada agremiação selecionou as cores para constar em suas bandeiras. Há autores relatando que as cores das primeiras escolas de samba foram determinadas por sorteio: a Estácio de Sá ficou com as cores vermelhas e brancas; Mangueira, com verde e rosa; e a Portela, com azul e branco. Por seu turno, Nei Lopes (2003) relata que tais escolhas teriam tido uma dimensão eminentemente simbólica: a Estácio de Sá teria indicado o vermelho e branco por causa do Clube de Futebol do América; a Mangueira devido a um antigo rancho carnavalesco cujas fantasias eram verdes e rosas; O azul e branco da Portela seria corolário das cores das vestes de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da escola. A propósito, Pavão (2005) salienta que os portelenses teriam a tonalidade azul-real como a sua favorita. Ela seria conhecida como azul – Portela e serviria para distingui-la dos tons azulados das outras agremiações que também utilizariam as combinações de cores azuis e brancas.
Na atualidade, observo que os foliões portam camisas, bonés, broches com as cores de suas agremiações como forma de exibirem seus vínculos afetivos e sentimento de pertencimento àquelas. Comumente, ao visitarem uma escola de samba rival, co-irmã, os torcedores usam roupas ou objetos com cores de suas agremiações
[11] . Em outros termos, os torcedores das escolas de sambas usam seus corpos para exibirem socialmente as cores de suas agremiações, ao mesmo tempo em que reforçam seus vínculos afetivos para com elas. Nesse processo, vale sinalizar, as formas pelas quais os torcedores combinam os objetos e as roupas com as cores da agremiação em seus corpos são heterogêneas. Há os que apenas usam um lenço com algumas tonalidades, outros usam esmaltes, batons, brincos, bolsas, sapatos, pulseiras, em diversas nuanças das cores de sua escola de samba. Assim, não seria temerário afirmar os corpos dos sambistas são vias privilegiadas para a ostentação dos sinais diacríticos de cada escola de samba.
Cumpre enfatizar que os processos de identificação no mundo do samba, além de permeados por dimensões simbólicas e de vincular os foliões às agremiações carnavalescas, estabelecem também conexões com os territórios onde as escolas de samba estão localizadas. Nessa perspectiva, não poderia deixar de recordar que significativa parcela das escolas de samba está localizada em morros e bairros suburbanos, fato que isoladamente acaba engendrando uma representação negativa de territorialidade para essas comunidades. Isso porque, em sua maioria, essas comunidades são marcadas pela violência e pela presença do tráfico de drogas (MAIOLINO, 2005).
No entanto, Zaluar (1985), ao estudar as organizações populares em favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro, percebeu que a representação de uma territorialidade positiva seria algo relativamente importante para essas comunidades. Em particular, clubes de futebol e agremiações carnavalescas contribuiriam para atenuar os estereótipos atrelados às regiões suburbanas cariocas. Em termos concretos, poderia citar a etnografia de Ribeiro (2003) sobre o bairro de Madureira. Para a autora, as duas escolas de samba lá localizadas – Portela e Império Serrano – colaboraram ativamente no sentido de construção de uma visão positivada daquele subúrbio, que deixou de ser visto de forma menos estigmatizada, ao assumir a representação de um ambiente musical e de território de duas das principais escolas de samba do Rio de Janeiro.
Considerações finais
As dimensões simbólicas, como o uso de cores, e a ligação afetiva com determinados espaços urbanos onde estão localizadas as quadras de suas agremiações carnavalescas são elementos centrais na construção das identidades sociais dos torcedores das escolas de samba. Comumente nos relatos de sambistas, é possível encontrar assertivas sugerindo de que ser torcedor desta ou daquela escola de samba não é uma decisão autoconsciente tomada individualmente. Em muitos casos, os sambistas argumentam que simplesmente nasceram em um ambiente onde a maioria dos familiares e vizinhos já eram aficionados por uma determinada escola de samba. Logo, a afeição pelas escolas de samba seria transmitida através das gerações
Por outro lado, esses processos de identificação social implicam que qualquer possível sentimento de fragmentação individual decorrente das vivências múltiplas e heterogêneas no contexto urbano do Rio de Janeiro seja atenuado. Os torcedores das escolas de samba cariocas são indivíduos que não se contentam em formar uma ‘tribo provisória' para preencher necessidades emocionais. O vínculo entre tais torcedores e as agremiações carnavalescas são duradouros e insubstituíveis. Ademais, as identidades coletivas criadas em torno das agremiações carnavalescas ultrapassaram as fronteiras do mundo do samba, espraiando-se para outros domínios sociais, como a realidade virtual da internet, a mídia impressa e televisiva. Aliás, como dito anteriormente, as escolas de samba contribuíram significativamente para que os estigmas sociais e territoriais contra os lugares de diversão dos sambistas fossem diminuídos ao longo das décadas. Os próprios desfiles na Rua Marquês de Sapucaí ajudam a superar temporariamente as divisões e separações entre as classes sociais cariocas. Assim, o carnaval carioca, conforme assinala Cavalcanti (2007), ainda que em um espaço e um tempo circunscritos, tornou-se um lugar simbólico onde os segmentos sociais do Rio de Janeiro se encontram.
Notas:
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Para Velho (1994), o contexto urbano possibilita aos indivíduos empreenderem projetos de vida com uma ampla gama de possibilidades e de escolherem trajetórias biográficas muito diversas umas das outras.
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Empregando as categorias particularização/universalização de práticas sociais para pensar o mundo do samba carioca. Nele é apreensível uma tensão entre valores modernos e tradicionais. Sendo um fenômeno urbano, ele demarcara espaços e temporalidades perpassados pela diversidade, descontinuidades e heterogeneidade. Maffesoli (2000); Sennet (1988); Figueiredo (1995; 2002), Velho (1994; 1999).
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A reforma consistiu na demolição de casarios para a construção do Teatro Municipal, do Porto da cidade e da Avenida Beira-Mar. A fundamental mudança urbana foi a abertura da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, a principal via de circulação de automóveis e transeuntes no centro (Josephson, 2005).
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Tia Baiana é uma categoria genérica usada para as mulheres negras descendentes ou advinda diretamente da Bahia que exerciam liderança na organização familiar e religiosa de seus grupos, assim como promoviam rodas de samba em suas residências. Desse modo, elas teriam desempenhado um papel simbólico significativo em defesa do samba, do período em que a polícia cerceava a manifestação dessa prática cultural em logradouros públicos (MOURA, 1983).
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Na acepção de Maiolino (2005) ainda permanece, até os dias atuais, uma visão estereotipada da elite carioca em relação aos agrupamentos menos favorecidos. Aliás, haveria representações extremamente negativas que veem os favelados e suburbanos como sujeitos degenerados cujas opiniões e queixas quase nunca são ouvidas pelas entidades governamentais. Nesse bojo, a autora acrescenta haver estigmas contra as preferências culturais dos menos favorecidos, como acontece na atualidade com os bailes funks.
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Remeto-me especificamente à noção antropológica de que as temporalidades humanas são marcadas pela interposição de períodos de trabalhos e períodos de descansos e festas (DURKHEIM, 1989).
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À guisa de exemplo: a Portela é azul e branco; Mangueira, verde e rosa; Império Serrano, verde e branco; Salgueiro, vermelho e branco; Unidos da Tijuca, amarelo e azul. A lista poderia continuar até se completar os nomes de todas as escolas de samba que, atualmente, participam dos seis grupos em disputas no carnaval do Rio de Janeiro.
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Em relação às agremiações que concorrem no Grupo Especial das escolas de samba cariocas, citaria: a Portela tem como símbolo a águia; Unidos da Tijuca, o pavão; Unidos do Porto da Pedra, o tigre; Estácio de Sá, o leão.
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O Império Serrano, Unidos de Vila Isabel e Imperatriz Leopoldinense têm como símbolos a coroa real.
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Diversos estudos antropológicos já se dedicaram a explanar as representações afetivas e sociais que os povos cultuam sobre os territórios onde vivem. Entre eles, Durkheim (1989) e Evans-Pritchard. (1994). No Brasil, tornou-se clássico o estudo de Roberto DaMatta (1997) sobre usos sociais e metafóricos da casa e da rua.
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Vale lembrar, nesse debate do uso simbólico de cores, as matrizes religiosas africanas, como o candomblé, que recorre às cores para diferenciar as vestimentas dos orixás.
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Emprego esse terno na acepção de Mafessoli (2000).
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