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"Os escândalos de corrupção do governo de Brasília, amplamente noticiados nos últimos dias, serão um prato cheio para a crítica social e política, em programas humorísticos, marchinhas e blocos de carnaval, chargistas nos jornais... Só num espaço historicamente transgressor e irreverente não se tocará neste assunto: o carnaval das escolas de samba na Sapucaí. O enredo sobre os 50 anos de Brasília, que será levado para a Passarela do Samba pela Beija-Flor, vai passar ao largo de qualquer menção à política atual, como se a cidade não tivesse sido construída justamente para abrigar nossas maiores instâncias de governo.
Olhando para as origens do carnaval, e para a forma como ele se configurava há muito pouco tempo, as manchetes do caso José Roberto Arruda seriam um deleite para qualquer escola de samba. Afinal, é no carnaval que o plebeu vira rei, que os papéis se invertem e que o povo pode botar a boca no trombone de forma descontraída – não é à toa que as máscaras de maior sucesso nos blocos são as de políticos, e que as marchinhas há décadas fazem uma ácida crítica social.
Mas, de uns 15 anos para cá, o espetáculo do Sambódromo mudou. Os patrocínios chegaram, os dirigentes das escolas passaram a achar esse apoio financeiro absolutamente necessário e se entregaram sem pudores aos encantos das moedinhas. O fato é que, desde então, a festa se tornou chapa branca. Branquíssima. Só passa pela Avenida o que o dono do dinheiro quer. E o que eles querem, normalmente, não tem muito a ver com carnaval.
Um desavisado que for ouvir o CD das escolas de samba de 2010, que acaba de chegar às lojas, vai levar um susto, mesmo que ouça apenas as cinco primeiras faixas. Nelas, temos a Beija-Flor, com sua homenagem a Brasília totalmente desconectada do imaginário popular sobre a cidade – como pedir para o povo cantar o samba se ele não se reconhece naquela mensagem? Depois vem a Portela, com uma ode às maravilhas que a tecnologia vem trazendo às favelas cariocas, numa propaganda quase explícita de programas governamentais. Não satisfeita, ainda deu um jeito de incluir em seu samba o nome de uma fabricante de computadores (“Faz da criança um cidadão / Positivo pra nação”), na esperança de pingar mais uma graninha. Depois, aparece o samba da Grande Rio, que obrigou seus compositores a amontoarem no refrão as palavras do slogan de uma cervejaria (“Grande Rio eu sou, guerreiro / Sou brasileiro e faço o meu ziriguidum / Vibra, arquibancada, explode! / O camarote número 1”). Sobra reverência, falta irreverência.
E aí me pergunto: será que as pessoas que comandam a festa realmente querem que o público brinque carnaval desse jeito? Não é simples entender que a vendagem de discos diminuiu, assim como a procura por fantasias, porque ninguém acha graça nesses sambas oficialescos? O povo quer se divertir e ouvir letras inspiradas, fruto da liberdade criativa dos compositores. O que ele quer é ir para a Sapucaí com fantasia de rei ou de mendigo, mas nunca travestido com a marca de um patrocinador.
As escolas de samba despertam cada vez menos interesse nos cariocas, perderam muito de seu prestígio cultural e até os turistas têm deixado a Sapucaí cada vez mais cedo, depois de verem duas ou três escolas. Quanto mais ficarem presas às amarras de compromissos assumidos com A ou B, esse fenômeno vai se acentuar. Ainda é tempo de revertê-lo. Carnaval é arte, é transgressão, é bom humor, é festa popular. Se ele se afasta de suas características mais genuínas e vira um espetáculo chapa branca, se afasta do povo. |