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E seguindo o curso do progresso na linha do trem, nos arredores de uma antiga estação, em um bairro com nome de padre, sob as bênçãos de uma lendária mãe de santo, emoldurado por uma vila de casas tão modestas que, na gíria popular, “não valiam nem um vintém”, na zona oeste da cidade que já foi capital... Não se desenvolveu nenhum romance de García Marquez, apesar desta pinta toda de Realismo Fantástico! Aconteceu uma história real envolvendo os bravos boleiros de um modesto time de futebol de várzea - O Independente Futebol Clube - ou “Arroz com couve”, para aqueles que eram “de casa”, da Fábrica Bangu, do burburinho morenado e constante das Ruas O e Q. Em meados da década de 50, decidiram levar a sério as rodas de samba que improvisavam após as pelejas, trocando chuteiras gastas por sapatos lustrados, bolas por surdos e os desconcertantes dribles pelo riscado do samba no pé. Deu certo. O time virou bloco, o bloco cresceu e se tornou escola, e esta, há exatos cinqüenta anos, sacramentava o seu espaço entre as grandes agremiações cariocas, de onde nunca mais arredou pé.
O calendário não apontou mais do que seis anos desde a criação do Independente, em 1952, passando pela fundação da Mocidade do Independente – ainda com a preposição de batismo entre os consagrados nomes de força – em 1955, até a meteórica ascensão ao grupo de elite, façanha histórica naquele iluminado verão de 1958. Eram tempos de JK e seu afã de modernidade com a nova capital, mas o Rio não se cansava de fazer brotar novos recantos culturais. Prestigiado após um honroso quinto lugar, em 1957, com o “Baile das Rosas”, estréia da escola na Praça XI, Ari de Lima, então carnavalesco da verde-branco, concebeu “Apoteose ao samba”, uma rasgada ode ao mais brasileiro dos ritmos. A homenagem abarcava um especial resgate dos sambas de terreiro entoados pelos escravos no horror das senzalas, como sugerem os versos dos parceiros e compadres Toco e Cleber, que também haviam composto o hino do carnaval anterior: “Mas existia um porém/ É que o “seu” coronel toda fúria perdia / Quando escutava no terreiro / Um preto velho amarrado no tronco / Que entoava uma singela melodia”.
Contam os antigos que nenhum integrante rumava para os ensaios da agremiação, acontecidos, à época, no quintal de Dona Maria do Siri, sem antes passar na Rua General Jacques Ouriques 470, ali mesmo em Padre Miguel. Neste endereço, localizava-se o terreiro de Tia Chica, líder espiritual do bairro, que contemplava os filhos de santo com as positivas vibrações de seus “passes”, pouco antes de começar o rufar de tambores dos comandados de Mestre André. Este, por exemplo, era ogã (um dos responsáveis pelo som dos atabaques) no espaço, e reza a lenda que a batida do instrumento, um remontar dos antepassados escravos, teria estabelecido os signos identitários da bateria da Mocidade Independente. Conscientemente ou não, Ari de Lima bebeu nesta fonte quando da criação do tema de 1958 que, abençoado pelos cantos e ritos da umbanda, já nasceu encantado por forte simbolismo cultural e emocional: Moça Bonita era descendente de senzala mas, tantas primaveras de alforria depois, vestiria nova fantasia, emplumada de batuque festeiro.
E assim o sempre vivo Tio Vivinho deu asas àquele delírio de crescimento que já se manifestava tangível. Em comparação com o cronograma momesco contemporâneo, surpreende que um desfile campeão, mesmo no “segundo grupo”, tenha sido preparado em menos de três meses. Mas o fato é que “Apoteose ao Samba”, que emocionou a Praça XI em 16 de fevereiro de 1958, um domingo de carnaval, foi escolhido como enredo pela diretoria da agremiação apenas em 22 de novembro de 1957. O curto espaço de tempo, entretanto, não impediu que a Mocidade ousasse escrever, com raça e paixão, a sua primeira página de vitórias. Durante a apresentação, o “jeitinho” carioca falou mais alto entre os espectadores, que não titubearam em improvisar pequenos caixotes – alugados a CR$ 5,00 – para que pudessem assistir com mais clareza aos cerca de 200 desfilantes da Vintém rasgarem o histórico asfalto onde o samba brasileiro construiu o seu altar.
Ao todo, foram desembolsados CR$ 23 mil na confecção das alegorias, valor considerado módico toda vida para a época. Mestre André, que inventaria a famosa “paradinha” um ano mais tarde, já conduzia, com ares e mãos de maestro, os cerca de 25 ritmistas que compunham a sua delirante e mítica orquestra de percussão. Entre os intérpretes do melodioso samba que embalou a agremiação, também se destacava um de seus autores, o franzino e talentoso Antônio Correa do Espírito Santo, ou Toco, codinome com que ficou eternizado na história do carnaval. Então com 22 anos, e abusando do grave e límpido vozeirão de crooner, sua marca registrada, defendeu com especial coragem os versos que imortalizaram a emoção do carrasco Coronel Trigueiro ante o lamento negro nas “noites enluaradas no tempo do cativeiro”.
Tamanho foi o impacto da apresentação dos “chalangueiros” do Independente, que o resultado apontou a vitória da Mocidade com quase dois pontos de diferença para a segunda colocada, a Unidos do Salgueiro. Intelectuais – de óculos ou de orelha – poderosos, políticos e a dita “nata” do samba, todos se curvaram diante daquela espécie de “neófita nata”, com o perdão do gritante paradoxo, nascida à margem do berço tradicional, mas plena do inovador pulsar dos quintais e quitutes de Dona Maria. Nem mesmo os componentes da Beija-Flor de Nilópolis, escola que amadrinhara a verde-branco pouco tempo antes, pareciam acreditar na categórica escalada dos recém-batizados, com quem passariam a disputar o campeonato em pé de igualdade. Da Barão (do Triunfo) à Belizário (de Souza), onde, como na letra da famosa canção local, “não é lugar de otário”, alcançando a General Jacques Ouriques, General José Faustino, General Gomes de Castro, Coronel Tamarindo, e tantas outras ruas, esquinas, praças e vielas daquele agora reconhecido reduto de bambas, os festejos se estenderam por quase dois meses.
Eternamente abençoada por Miguel de Santa Maria Monchon, imponente nome daquele que ficou célebre como Padre Miguel, a prendada e antiga Moça Bonita da zona oeste, que já aplaudia a valente Unidos de Bangu fazer frente aos mais poderosos grêmios do carnaval, encontrava uma nova razão de vida. A feijoada da vitória ocorreu em seis de abril, e reuniu seguimentos ligados a quase todas as agremiações cariocas. O Globo, Diário de Notícias, Tribuna da Imprensa e Imprensa Popular também estiveram presentes, enaltecendo o feito magistral daqueles moços que tornaram grandiosa a guerreira Mocidade nascida em celeiro de várzea.
Jamais caiu. Jamais deixou de amealhar apaixonados incorrigíveis pelos quatro cantos onde fez brilhar a sua cadência. Somente a Estação Primeira de Mangueira, Portela e Acadêmicos do Salgueiro também conseguiram igual posição especial cativa. Em ata, o 1º secretário da escola, Altamiro Vieira de Menezes, sintetizou o espírito que regeria a ascendente estrela, dali para frente: “Façamos votos que em nossa trilha se suceda o que acabamos de conseguir. Avante, sempre avante, em busca de mais láureas...”. E foi assim, “avante”, que delineou o seu caminhar – margeando a linha férrea e sua velha parada, no sorriso largo da baiana de tabuleiro farto, no menino de pés descalços que dedilha o cavaco sem tirar os olhos dos papagaios no céu, na “paradinha” de instrumentos que, sem sombra de exagero, paralisa corações a perder de vista. O sonho se fez realidade.
APOTEOSE AO SAMBA (1958) Composição: Toco e Cleber
Nas noites enluaradas No tempo do cativeiro Todos devem conhecer A fama de carrasco Do coronel Trigueiro
Mas existia um porém É que o "seu" coronel, toda fúria perdia Quando escutava no terreiro Um preto velho amarrado no tronco Que entoava sua melodia
Era o Samba, sim senhor Entoado com sofrimento e dor Neste ritmo cadenciado Que pelo Brasil se propagou Radiofonia, imprensa falada Associação, departamento de turismo Que com muito brilhantismo Pelo nosso samba trabalhou Confederação Brasileira Lutou pelo mesmo ideal Para que o samba se tornasse O orgulho nacional
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