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Alguns dias atrás, entrevistei Arandi Cardoso do Santos, o Careca do Império, idealizador da primeira escola de samba mirim, o Império do Futuro, e um dos “Pelés do Samba” – trio de ouro de passistas da verde-branco da Serrinha – junto a Jorginho do Império e Jamelão (não confundir com o eterno gogó mangueirense). Um bate-papo que percorreu mais de meio século de amor ao samba do Rio de Janeiro, a ser veiculado em uma publicação com previsão de lançamento para fevereiro próximo.
Careca nasceu, cresceu e viveu respirando o carnaval carioca. Desde os tempos de moleque, no início da década de 50, como desfilante da “Ala dos Periquitos”, do Império Serrano, já ensaiava o riscado que terminaria por fazer história, sobretudo após a criação da ala “Sente o Drama”, grupamento que introduziu a estética do passo marcado no carnaval carioca.
“Coreografias ou passos marcados sim, mas sempre adaptados às características definidoras do samba, muito diferentemente do slow motion que se faz nos dias atuais”, apressou-se nos devidos esclarecimentos. Em “Saravah”, DVD lançado no ano de 2005 pela Biscoito Fino, há uma seleção de imagens clássicas registradas, em 1969, pelo ator e músico francês Pierre Barouh. E uma delas traz, justamente, a evolução da ala “Sente o Drama”, durante o antológico desfile “Heróis da Liberdade”.
Remanescente de um tempo em que poetas como Silas de Oliveira brindavam o carnaval com as suas poesias, Careca demonstrou-se surpreso com a descoberta desta raridade. Ele afirmou lamentar a falta de preocupação com a memória foliã, a ausência de um sério trabalho de preservação com aqueles que fizeram florescer o mais brasileiro dos ritmos.
“Galerias não podem ser enfeitadas apenas por nomes de presidentes, mas também por aqueles que, efetivamente, trabalharam em prol do samba brasileiro”, disse. O fato é que o carnaval carioca, tão preocupado em dar asas à sua recente persona empresarial, vislumbrando novos paradigmas de gestão no pós “moeda-prestígio”, ainda se encontra no Proterozóico das intenções, quando se pretende reverenciar os seus bambas.
O discurso soa como o famoso clichê do crítico musical que proclama não mais existirem sambas como aqueles de antigamente. Mas o que fazer se as próprias escolas alimentam e sintetizam o panorama de uma nação, que, freqüentemente, não demonstra qualquer resquício de zelo com os seus aspectos formadores?
No momento, por exemplo, a fotonovela carnavalesca campeã de audiência, estampada na capa dos principais jornais populares, não envolve o samba propriamente dito, mas dá a entender que os refletores das agremiações encontram-se apontados para uma espécie curiosa do gênero épico. Um ringue feminino por alguns errantes metros quadrados de chão, parte do que seria um novo estratagema de capitalização carnavalesca. Para bom entendedor, mero pingo este a ser captado como letra, e que somente o tempo tratará de sentenciar como válido, ou não.
De concreto, apenas um panorama próximo à unanimidade, ao menos no tocante ao grupo de elite da folia carioca, de substituição gradual do capital dos patronos, pelo patrocínio e associação empresarial. Válido, inegavelmente, sob o prisma daquilo que pode ser compreendido como o início de um autêntico desenvolvimento sustentável folião, mas com reveses explícitos – e o sacrifício temático, em primeira análise, é o principal deles.
Estratégias de financiamento e marketing válidas ou errôneas à parte, além, é claro, da fome midiática por insurreições e guerrilhas envolvendo “notáveis”, é interessante notar que o diálogo com um homem que traz o carnaval carioca pulsante e incendiário em suas veias, deixa evidente o quanto as discussões e preocupações atuais têm sido tolas, e como o sambista de verdade acabou preterido pelas agremiações.
Não, este aqui não é o grito de guerra do romantismo exagerado, nem da volta às origens, e muito menos o fechar de olhos para a realidade de que o carnaval contemporâneo trata-se de uma festa internacional, televisionada, que movimenta volumoso montante. Mas como não se deixar deslumbrar pelas palavras de Careca? Questionado sobre as intenções da vitoriosa apresentação imperiana de 1982, a crítica às ditas “Super Escolas de Samba S.A”, ele saiu-se com o seguinte:
“Nosso desejo não foi a de criticar a verticalização dos desfiles, mas sim, na verdade, mostrar que o crescimento das alegorias e do espetáculo não poderia destruir a magia da evolução e os talentos do asfalto. Pensemos em uma analogia: O sol e a lua são lindíssimos e importantes, mas para que servirão se não cuidarmos e adubarmos bem o solo aqui de baixo? Que brilhem, portanto, os sóis e luas lá no alto das alegorias, mas não esqueçamos que o nosso anteparo é o chão, que a base do carnaval está no Bum-bum paticumbum prugurundum feito em terra”.
Pronto. Eis aí o caminho de volta, no seio de tão feliz metáfora, à temática de algumas colunas anteriores, além da legitimação do que havia sido expresso, quando discorremos sobre a importância do chão, dos passistas, do folião orgulhoso de sua bandeira. E as janelas aqui abertas sucessivamente, centradas na figura e fala do grande Arandi Cardoso do Santos, têm mesmo a premissa de celebrá-los novamente, acendendo a luzinha amarela de atenção na cabeça de todos aqueles que estão envolvidos, de alguma forma, com o maior espetáculo da Terra.
Este, realmente, tornou-se gigantesco não só na importância simbólica que desempenha junto a determinados seguimentos populares, mas também como ímã de suntuosidade estética, investimentos e turismo. Natural, neste sentido, que tenha ido buscar fontes variadas de sustentação e renovação. A despeito deste quadro, ainda é o famoso Bum-bum paticumbum que compõe, essencialmente, a festa, a simples receita dos “Pelés do Samba” – o gingado moleque e despretensioso – elemento de que o carnaval não prescinde.
Permitam, portanto, o rodopiar sem filas de nossas baianas, invistam nas escolas mirins, façam sambas sem receita, não entreguem o sentimento de alegria ao subjugo do apito censor. Preservem os bambas, registrem suas histórias, dêem gás e importância aos departamentos culturais. Deixem as pastoras, os senhores de cartola, as cabrochas, os passistas... Os sonhos, pois, evoluírem em liberdade. Afinal de contas, o espaço andarilho onde despejam a sua arte, pelo menos neste caso, jamais poderá ser comercializado.
A devida reverência aos bravos que ergueram a pedra fundamental daquilo que hoje é o carnaval carioca, e as lágrimas que rolam sobre a face do folião apaixonado ao final de cada desfile, não há milhão algum neste mundo que possa vir a comprar. Sentimentos são fundamentos. E vice-versa.
São algo mais. |