"Não é apenas a Beija-Flor: todos mentem sobre a real África"

 

          Peço licença aos leitores para concordar com o artigo do sr. Leandro Narloch "A Beija-Flor mente sobre a África", publicado na edição da última sexta-feira da Folha.
          Concordo com ele, pois as escolas de samba cariocas, sacrificando a verdade histórica em benefício do espetáculo, têm fantasiado bastante a respeito do continente africano, ainda visto como "distante", "misterioso", "impenetrável" etc, e quase sempre mostrado como um corpo homogêneo e não como um todo multiétnico e multicultural.
          E digo mais: não foi só a Beija-Flor que mentiu. Mentiu a Salgueiro, quando juntou às candaces de Méroe, cuja experiência se desenvolveu entre o século 4 A.C. e o primeiro da Era Cristã, figuras femininas como as de Nefertite e Makeda, a rainha de Sabá, que viveram em épocas mais remotas, bem como a de Cleópatra, mais grega que negra. Mentiu a Porto da Pedra quando, cantando a África do Sul, disse que "o anjo invasor" deu a cor ao país. Mas, com todo o respeito, o Sr. Narloch também mentiu um bocadinho em seu artigo.
          Falseou ele a verdade histórica - inclusive sobre a cidade hauçá e muçulmana de Kano, no norte da atual Nigéria, por ele localizada na antiga Costa do Ouro – não distinguindo o tráfico de escravos praticado na África antes da chegada dos europeus, exercido principalmente por árabes e direcionado para o Oriente e a Europa, com aquele que se desenvolveu através do Atlântico. E tudo isso usando a velha tática de colocar na conta dos negro-africanos toda a responsabilidade por esses tristes eventos.
          É certo que tanto o tráfico europeu, pelo vulto econômico que adquiriu, quanto o tráfico árabe contaram, a partir de um certo momento, com a efetiva colaboração de africanos de vários segmentos sociais, desde monarcas a simples transportadores.
          Havia, sim, mercados de aldeias que dispensavam os traficantes estrangeiros das perigosas incursões continente adentro. Mas a participação africana no tráfico de escravos não diminui a responsabilidade dos europeus. Foram eles que corromperam soberanos e súditos, inclusive fornecendo armamentos, para tornar esse tipo de comércio altamente rentável e tentador.
          Entre 1580 e 1680, período em que duraram as chamadas guerras angolanas, envolvendo, principalmente, Portugal, Holanda e os ambundos da rainha Nzinga Mbandi, estima-se que cerca de um milhão de cativos foram vendidos de Angola para as Américas.
          Da mesma forma, nas guerras entre axantis e fantis, na atual Gana, no início do século 19, com participação inglesa; e também nas refregas entre iorubanos e daomeanos, a partir do século anterior.
          Todos esses acontecimentos foram motivadores de migrações forçadas de grandes contingentes de africanos para as Américas.
          Mas a aceitação passiva do tráfico de escravos e a participação nele não foi, como quis o sr. Narloch mostrar, regra geral entre os governantes africanos. Na década de 1730, por exemplo, o rei daomeano Agajá Trudô, entendendo que o tráfico era um obstáculo ao desenvolvimento de seu país, saqueou e queimou os fortes e armazéns de escravos e bloqueou o acesso às fontes do interior.
          Esse fato deu ensejo a uma retaliação por parte dos europeus, concretizada por uma espécie de bloqueio econômico, o que fez com que a atividade se restabelecesse.
          Mas, felizmente, está aí, em vigor a lei nº 10.639, instituindo o ensino obrigatório de história da África e das populações afro-brasileiras nos currículos de base no Brasil. Com ela, certamente, teremos, daqui a alguns carnavais, enredos mais verdadeiros. E comentários também.

Nei Lopes
Nei Lopes é autor da "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana" e do "Dicionário Escolar Afro-Brasileiro" (Publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo em 24 de fevereiro de 2007)

 

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