Escolas de Samba da Bahia

 

          Felizmente para a glória de todos a Bahia sempre se firmou como uma terra abençoada de verdadeiros talentos, não aqueles industrializados, mas os feitos de forma artesanal, burilados e por isso mesmo, dignos e legítimos representantes de nossas tradições mais puras, esses mesmos artistas, compositores e intérpretes, foram os grandes responsáveis e protagonistas, juntamente com outros foliões, de um tempo em que o carnaval baiano não estava preocupado em faturamento, o seu único lucro era proporcionar a mais pura alegria a todos, sem distinção de cor ou classe social, que desejavam se divertir livremente pelas ruas, ladeiras e becos da velha Salvador, e que se viam representados pelos blocos de sua predileção e também pelas suas Escolas de Samba, desfilando pela avenida e entoando seus lindos sambas enredo. Sim, pois para quem não sabe, a Bahia durante muitos anos teve no carnaval o desfile das Escolas de Samba como seu ponto alto, era verdadeiramente belo vê-las desfilar, com seus mestres salas, porta bandeiras, alas de baianas, bateria e tudo que tinham direito, trazendo uma alegria e um colorido inigualável a nossa grande festa. Foi um tempo mágico que precisa ser revivido, pois a Bahia, não pode ficar mais a mercê de camarotes e ais, uis, e ôôs, é preciso dar um basta nisso tudo e estimular o retorno triunfal de nossas Escolas de Samba para que possam mostrar toda sua graça e beleza desta vez não só para a Bahia, mas para todo o Brasil.
          Mas o espaço é curto e a história de nossas Escolas é longa, e ela se inicia no ano de 1943 quando é fundado o bloco Filhos do Tororó de grande tradição e que depois iria se transformar na Escola de Samba Filhos do Tororó, presidida por Arnaldo Silva tendo seu auge a partir da década de 60, quando realmente se inicia o grande ciclo dos desfiles das Escolas de Samba no carnaval baiano. Em 1964 a Filhos do Tororó apresenta seu primeiro samba enredo intitulado, Postais da Bahia , da autoria de Nelson Rufino; em 1965 o mesmo compositor apresenta o samba Independência da Bahia e a partir de 1966, juntas-se a ala de compositores da Escola, outro jovem talento, Ederaldo Gentil que compõe Dia de festa e faz o povo cantar nas ruas.

Hoje é dia de festa
O Tororó nos convida
Hoje é dia de festa
O povo feliz na avenida
Nas festas tradicionais
Em danças e cantos da terra
Costumes do nosso torrão
Folclore de todos os cantos
Todo o Brasil dando as mãos
Hoje tem samba de roda
Tem maculelê, tem maracatu
Hoje tem batuquejê
Baianas de saias rendadas
Barracas enfeitadas e a gente a cantar
Um refrão se agiganta
O povo é quem canta
Feliz na festa mais popular.

          Em 1967, Ederaldo Gentil continua como principal compositor da Filhos do Tororó e surge com o samba Dois de fevereiro.

Oh, Bahia, berço da tradição
As suas graças canto em versos
Na minha canção
Dois de fevereiro, festa de Iemanjá
Janaína, Mãe das Águas
A Rainha do Mar, oh, oh, oh
No bater dos atabaques
Repicar dos agogôs
Toda uma raça com fé
Vai entoando o refrão
De um candomblé
Ataberecê é de yê Iemanjá
Ataberecê aiôbô oromiurixaurelê
Que maravilha, cantos,
Danças, rituais
Melodias folclóricas, capoeira,
Seus berimbaus
Dá dá dá no nego,
No nego voce não dá
Dá, dá, dá no nego,
No nego voce não dá
Filhos de fé e Yaôs
Recebem os seus orixás
Os saveiristas, oh, macumba
Tem macumba,
Os pescadores
Uma de roda de samba a cantar
Lá rá lá rá laraialailará
A baiana deu o sinal, lelêo baiana
A baiana deu o sinal, lelêo baiana
Sobre os clarões das velas
A traçar de uma cruz
A fé de um crente que vive ao léu
Deus nos manda luz
Como dádivas do céu
Os pretos velhos, caboclos do mar
Vem de Aruanda êi
Traz oferendas para a deusa do mar
Terra cheia de magia
Bahia, oh! Bahia!

          Em 1968 Ederaldo compõe para a Filhos do Tororó, História dos carnavais . Mas outras Escolas de Samba brilhavam no carnaval baiano destacando-se dentre elas o Grêmio Recreativo Escola de Samba Juventude do Garcia, fundada em 24 de novembro de 1959 e a partir também de 1964, inicia seu reinado em nossa festa maior. Nesse ano foi campeã do carnaval com o samba Brasil , de Edson Rios, em 1966 vence novamente com Bahia e seus séculos , de João Barroso e Reginaldo Luz, em 1967 sagra-se bi-campeã com o tema, Segundo casamento de D. Pedro I , e em 1968 conquista o tri-campeonato com Exaltação a natureza , de João Batista e João Barroso. No carnaval de 1969 a Juventude do Garcia recebe menção honrosa com o tema Três anos de glória de Raimundo Nascimento, e devido ao regulamento do concurso a escola não concorreu por ter se sagrado tri-campeã no ano anterior.
Em 1968 surge com toda força como compositor de sambas enredo, Walmir Lima, que já havia desde 1962 compondo alguns sambas e marchas para o carnaval, sem, contudo se aventurar ao mundo das Escolas, fazendo então seu primeiro samba enredo para a Escola de Samba Filhos do Morro, com o título de O circo.

É pena que a gente não possa
Trazer nessa Escola tudo que há
De maravilhoso, no riso, na alegria,
Nas emoções do circo
No riso, na alegria, nas emoções do circo
Um palhaço que distraí a criançada
A rapaziada e os velhos também
Só alegria, muita alegria ele tem
Um domador com muito amor
Faz do leão, do elefante, sem ter medo
Uma fera que parece de brinquedo
E um trapezista lá no alto
Salta pra lá, salta pra cá
Em lindas evoluções emocionando corações
No picadeiro quando a bandinha
Um dobrado entoa e um mágico aparece
A algazarra é boa
É pena que a gente não possa trazer
As alegrias do circo para a cidade ver.

          Um fato, porém, dos mais pitorescos da história das Escolas de Samba no carnaval da Bahia, se daria em 1969, quando Walmir Lima, é convidado pela direção da Filhos do Tororó para compor seu samba enredo, esse gesto provocou um desentendimento entre Ederaldo Gentil e a cúpula da Escola, pois este era considerado o principal compositor da agremiação, o resultado dessa contenda, foi que Walmir Lima, que não tinha nada a ver com a briga, compôs o samba Jorge Amado em 4 tempos.

Escritor emocionante, realista, sensacional
Deslumbrou o mundo, ó Jorge Amado genial
Suas obras em 4 tempos apresentamos neste carnaval
Do território mágico e real
Grandeza da literatura nacional
Extraiu dos seres e das coisas um lirismo espontâneo
Glória, glória do romance brasileiro contemporâneo
Glória, glória do romance brasileiro contemporâneo
Foram essas suas obras escolhidas
Para serem exaltadas, reunidas:
Bahia de Todos os Santos, Gabriela Cravo e Canela,
Dona Flor e Seus Dois Maridos e o País do Carnaval
Louvemos, pois as glórias alcançadas
Nas suas grandes jornadas neste mundo de meu Deus
E tudo que expomos na avenida
São histórias já vividas contadas nos livros seus.

          Brigado com a Filhos do Tororó, Ederaldo Gentil, pela primeira vez apresentou um samba enredo para outra Escola, a Juventude do Garcia, com o tema, Samba canto livre de um povo , feito em parceria com Edil Pacheco.

Ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô
Abre-se uma cortina colorida
Para mostrar toda uma vida
De encantamentos mil
Com os corações em alegria
A Juventude do Garcia
Apresenta a sinfonia do Brasil
Ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô
Samba canto livre de um povo
Vem Natal, vem ano novo
O samba continua a deslumbrar
Nesta linda melodia colorida de alegria
Vamos festejar
Modernas e antigas batucadas
Da inesquecível Praça Onze
Onde o nosso samba alcançou
Glória e projeção nacional
Vindo de um novo horizonte
Para um Brasil colonial
Glória aos artistas que levaram
O samba ao cenário universal ô, ô, ô
Donga, pioneiro dos sambistas
Salve todos os ritimistas
Desta melodia imortal
Salve o mês de fevereiro
Salve o samba brasileiro
Viva o nosso carnaval.

          O curioso é que nessa ocasião a Bahia contava com um total de 10 Escolas de Samba, distribuídas em 3 grupos, e Ederaldo Gentil, compôs um samba enredo para cada uma delas, ou seja, um mesmo compositor a desfilar nove sambas nas ruas, com única exceção para a sua Escola do coração, a Filhos do Tororó.
Em 1970, a Juventude do Garcia apresenta o tema Castelo da Torre , de Walmir Lima conquistando o segundo lugar, no carnaval que teve como vencedor a Escola Diplomatas de Amaralina.

Apresentamos neste carnaval
Uma história vibrante, colossal
Vivida em campos de Tatuapara
Entre luxos e coisas raras
Vindas da Índia e Japão
Era meados do século dezesseis
Quando um fidalgo português
Garcia D'Ávila levantou uma torre singela
E seu luxuoso castelo construir ao lado dela
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Varão autoritário, empreendedor
E protegido do governador
Semeou a cultura da cana
Construiu seus dez currais
E muitos prédios bacanas
Tratava sua gente honradamente
Criadagem e carruagem oferecia especialmente
Cadeirinhas ornadas de cetim
E lindas pedras de Diu e Bombaim
Era assim o baile em homenagem
Aos grandes feitos
Com cavalhadas ao redor da torre iluminada
Melodias virtuosas eram executadas
E de geração em geração
Contadas por matutos e pescadores
Hão de fincar a sua lenda e tradição.

          Ainda em 1970 Walmir Lima foi convidado de última hora pela Escola Ritimistas do Samba para compor seu samba enredo, homenageando o Velho Guerreiro, com o tema Homenagem a Chacrinha .

Neste cenário de real beleza
Vamos exaltar verdadeira aberração da natureza
Em matéria de comunicar
Nasceu no Nordeste brasileiro
O papa do Tropicalismo, o Velho Guerreiro
É o dono da buzina tradicional
E fantasia que parece carnaval
Lá, lá, lá, lá, lá, iá, iá iá
Lá, lá, lá, lá, lá, ia, ia, iá
A discoteca famosa
Nos variados mocotós e vitaminas
Onde desfilam os astros e estrelas
Do rádio e da TV nacional
Roda, roda, roda
Neste carnaval
E os Ritimistas do Samba
Homenageiam o Chacrinha genial
Lá, lá, lá, lá, lá, iá, iá, iá
Lá, lá, lá, lá, lá, ia, ia, iá
Roda, roda, roda
Terezinha!

          Em 1972 a Juventude do Garcia, conquista o campeonato com Exaltação a cultura nacional , samba de Walmir Lima e Jandir Aragão.

Brasil, na arte e na literatura
No vasto campo da ciência
Viemos exaltar sua cultura
Seus grandes vultos imortais
Ficaram na história em seus anais
As festas, comidas, danças e costumes
Dos negros e índios, legados culturais
Quanta poesia se encerra em seu seio
Oh! linda terra
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
O auriverde, o branco,
O azul do seu pendão
Origem da divina inspiração
E seus compositores e poetas
A luz da insofismável perfeição
Com mil louvores
Hoje exponho na avenida
Nessa passarela colorida
Um conjunto de valores
Que no curso da história
A sua gente criou.

          No decorrer dos anos setenta as Escolas de Samba ainda desfilariam, mas no fim da década seu prestigio iria diminuir, devido às dificuldades porque vinham passando e também em função das modificações impostas ao carnaval baiano, que aos poucos foi se descaracterizando, até transformar-se num palco móvel onde apenas alguns tem assento, com o intuito de vender suas imagens aproveitando-se da oportunidade que os meios de comunicação oferecem. A volta das Escolas de Samba ao carnaval da Bahia não é um sentimento respaldado em nostalgia, mas sim, referendado num clamor popular que procura de todos os meios ter seus reais valores preservados, sem artificialismos, nem hipocrisia, mas somente imbuído do desejo soberano de proporcionar momentos de enlevo, exuberância e participação popular efetiva, retomando uma das maiores tradições de nosso carnaval, retornando para avenida, local aliás de onde nunca deveriam ter saído.

Luiz Américo Lisboa Junior
Site: http://www.luizamerico.com.br/
Pedagogo/ Historiador – Professor de Filosofia da Educação e Historia da Educação no Brasil – Pesquisador da História da musica popular brasileira. Autor dos livros: A Presença da Bahia na musica popular brasileira e 81 Temas da musica popular brasileira.

 

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