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“Os enredos e a ação tornaram-se mais variados e tiveram início os efeitos cênicos espetaculares” A partir de então, “o compositor não era a figura dominante” e “as platéias burguesas foram um fator influente na evolução”. Veja, ilustre passageiro, que não é de escolas de samba que tratam as palavras acima. É de ópera e foram extraídas do verbete dedicado ao gênero no “Dicionário Grove de Música”.1
Ora, de tanto os carnavalescos baterem nessa tecla, de que o desfile é uma “ópera de rua”, o belo tipo faceiro que assina essas mal-traçadas houve por bem pensar à luz da lira (e da lírica) napolitana os acontecimentos singulares do carnaval de 2004 que, realmente, não foi igual àquele que passou.
Como se sabe, a ópera é um espetáculo dramatizado conduzido exclusivamente pela música. É entendido assim, desde 1637. A partir de 1660, tornou-se popular com a forma consagrada, diz o mesmo Grove. E, quando se fala em ópera, pensa-se imediatamente em Verdi, Rossini, Donizetti, Bellini, Puccini, até Beethoven, Mussourgski, Wagner e os impressionistas Debussy, Ravel, Stravinsky. Não se pensa nos coreógrafos que montaram seus maiores sucessos, inclusive por que a maioria deles enfrentou dezenas e centenas de montagens.
No entanto, em terras tupiniquins, os carnavalescos ao carnavalizarem a ópera, fizeram como o velho adágio inglês: quase jogam fora o bebê junto com a água do banho. Isto é: tentaram acabar com a música, fazer uma ópera sem Verdi, sem Rossini.
Recapitulemos: tudo começou com “Alô, alô, taí Carmen Miranda”, enredo de Fernando Pinto para o Império Serrano, em 1972. Fernando, grande artista pernambucano, chegou em Madureira com a idéia de uma Carmen Miranda múltipla e dinâmica (eram sete, se bem me lembro, as Carmens: Leila Diniz, Zélia Hoffmann, Maria Pompeu, Mirian Pérsia, por aí).
Na disputa do samba-enredo, por influência de Fernando Pinto, o samba de Silas de Oliveira foi fragorosamente derrotado (nos bastidores, falou-se em algo como 7 x 0). Grande campeão que era, Silas ficou deprimidíssimo, naturalmente. O samba vencedor, de Wilson Diabo, Heitor e Maneco, é que iria para a pista, seria campeão e um dos líderes de execução no rádio da época.
Aos jornais, Fernando justificou a escolha: o samba vencedor atendia mais ao enredo. Era mais funcional para o desfile. O Império, escaldado pela derrota com “Nordeste, seu canto e sua glória”, um lindo samba dolente (que não é do Silas), embarcou na canoa do pernambucano.
Não demorou muito, Silas morreu. E veio Joãosinho Trinta, instaurando-se definitivamente a ditadura do carnavalesco em praticamente todas as escolas. Os compositores foram se afastando. Suas alas, menosprezadas e desprezadas (pense rápido: em que escola do grupo especial você viu uma Ala dos Compositores como nos desfiles de antanho?). Passamos, inclusive, a ouvir na pista sambas que os carnavalescos não se constrangiam de anunciar como uma fusão promovida por eles, carnavalescos, de dois ou três finalistas. E sambas feitos por gente de fora da escola – aliás, nunca mais se ouviu falar daquele nobre ritual de admissão numa ala de compositores, o pretendente sendo obrigado a “mostrar serviço”, compondo em homenagem à agremiação.
Tempo passou, ô, ô, e no terreirão da casa grande os carnavalescos vinham fazendo tudo o que queriam fazer. Até que, de onde menos se esperava, da própria LIESA, fez-se uma luz no fim do túnel, facultando-se às escolas a possibilidade de recorrer ao seu próprio acervo (ou ao acervo de uma co-irmã) para fazer seu carnaval.
Quatro escolas aceitaram o desafio de visitar o passado, recontar o já contado, desafiar o dogma de que a história só se repete como farsa. E três delas fizeram bonito, sacudiram a Sapucaí – a Tradição nem tanto. Nostalgia? Sem essa: apenas a verificação prática de que a maravilha de cenário que é o desfile só tem a ganhar se a trilha sonora for de qualidade. Isto é: se o carnavalesco puder admitir, com humildade, que não é o dono absoluto da festa; se aceitar dividir com o compositor os ecos dessa celebridade instantânea.
O ser humano não falha, diz o adágio. E nas três últimas décadas vem sendo progressivamente assim. Nada é feito nas escolas, internamente, que valorize o compositor. E os carnavalescos só ampliam o seu raio de ação, o seu prestígio dentro e fora das quadras, o numerário de seus contratos.
O desfile de 2004 pode ser um momento de corte nesse quadro sinistro. Uma sucessão de acontecimentos até certo ponto inesperados criou uma salutar e inesperada reversão de expectativas. De uma parte, compositores já atirados no limbo das “velhas guardas” (não apenas Silas, incluam-se aí Dedé, Norival Reis e Nilo Mendes) mostraram-se não apenas “vivos” no sentido histórico, mas donos de sambas que permanecem atuais e, o que é mais importante, queridos.
Por outro lado, foi um ano de inferno astral para os carnavalescos. Apesar do deslumbrante trabalho da Mangueira, da Imperatriz e da Beija-Flor, e da magnífica revelação de Paulo Barros, da Unidos da Tijuca, nenhum dos nomes consagrados acrescentou muita coisa ao prestígio já conquistado.
Como corolário dessa situação, o nome-símbolo dos carnavalescos, Joãosinho Trinta, erguido como o ícone-mor de todas essas mudanças de mais de trinta anos, viu escorrerem para as cinzas da quarta-feira tudo o que foi construído para alimentar ainda mais o seu mito. Foi enredo da Acadêmicos da Rocinha, que investiu 1,8 milhão no desfile, mas não passou do terceiro lugar – e não passou por que, suprema ironia, o samba não estava à altura do barracão.
Joãosinho foi tema também do maior camarote da Sapucaí, o da “Rio Samba e Carnaval”, que recebeu seus convidados VIPs com uma decoração chamada “Viva o rei”, em torno do maranhense. E, finalmente, Joãosinho aproveitava nova oportunidade de arrostar autoridades, com as conotações homoeróticas do enredo dedicado à camisinha pela Grande Rio. Só que a escola foi mal – inclusive por que os componentes davam nítida impressão de não compactuarem com o que a escola estava “dizendo” na pista.
Para culminar, Joãosinho foi demitido e, nos bastidores, fala-se que na verdade estavam inacabados os carros que passaram cobertos, sob a alegação de “censura” (quando o Brasil vai acabar com essa frescura que só existe aqui de que regulamentar o que quer que seja é censura?).
Ora, até semanas antes do carnaval, o que se pensava é que os carros do Império é que iam passar precariamente. O revival dos sambas antigos corria o risco de se transformar em fiasco por que o Império vivia séria crise política e financeira. A presidente Neide Coimbra estava sendo argüida na justiça a largar o cargo. Conseqüentemente, nenhum patrocinador iria se arriscar a investir numa escola nessa situação.
O retorno de “Aquarela brasileira”, nessas circunstâncias, poderia ser o argumento definitivo. O Império fracassaria, em função dessa conjuntura – e as aves de rapina logo sentenciariam: tá vendo?, é impossível fazer um carnaval hoje com um samba desses, longo, lento. Só que o Império passou e exorcizou o vudu.
Que coisa linda, o Império. O samba trazido na boca. A arquibancada cantando como em nenhum outro momento do desfile – a ponto de despertar inveja em Farid Abrahão, presidente da Beija-Flor, a escola que trouxe o melhor samba inédito de 2004. Silas redivivo, pairava sobre a Sapucaí, a verdade eterna da música triunfando sobre a beleza fugaz das alegorias.
Tal como acontece na cena lírica. O espectador vai ao teatro e julga cenografia, alegorias e adereços. Mas só sai de casa por causa da música. O que ele quer é ouvir “Nessum dorma”, “Vesti la giuba”, a “Habanera” da Carmen de Bizet. Oxalá a cena se repita na Sapucaí – há muitas “óperas de rua” à espera de uma remontagem, ocultas à sombra do ego desmesurado dos carnavalescos.
Resumo da ópera: não sei se devo intitular este artigo “a vingança de Silas de Oliveira” ou se caio no chavão de Nelson Sargento e entro no coro de que “o samba agoniza mas não morre.”
1 SADIE, Stanley – Dicionário Grove de Música (supervisão da edição brasileira: Luiz Paulo Horta e Luiz Paulo Sampaio). RJ: Jorge Zahar Editor, 1994. |