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Resumo:
As matrizes africanas que contribuíram para moldar a cultura e a música
brasileira são aqui examinadas. Das congadas ao samba, passando pelos
afoxés e blocos afro, a presença de elementos musicais e religiosos provenientes
da África é marcante na nossa história, como ainda hoje se evidencia nas
escolas de samba e nos sambas-enredo. Mas atualmente se constata também
uma progressiva desafricanização da música popular brasileira, o que aponta
para o fenômeno da globalização do gosto.
Abstract: African matrixes that helped
to form Brazilian music and culture are examined here. Congada, samba,
afoxés and carnival afro groups indicate the strong influence of religious
and musical elements from Africa. But even though they are present in
Brazil’s history, escolas de samba and sambas-enredo, it is possible to
note a progressive deafricanization in the Brazilian popular music, which
points out the like globalization phenomenon.
Palavras-chave: África; música popular
brasileira; samba.
Key-words: África; Brazilian popular
music; samba.
A cultura
brasileira e, logicamente, a rica música que se faz e consome no país
estruturam-se a partir de duas básicas matrizes africanas, provenientes
das civilizações conguesa e iorubana. A primeira sustenta a espinha dorsal
dessa música, que tem no samba sua face mais exposta. A segunda molda,
principalmente, a música religiosa afro-brasileira e os estilos dela decorrentes.
Entretanto, embora de africanidade tão expressiva, a música popular brasileira,
hoje, ao contrário da afro-cubana, por exemplo, distancia-se cada vez
mais dessas matrizes. E caminha para uma globalização tristemente enfraquecedora.
Das congadas ao samba: a matriz congo
Já nos primeiros anos da colonização, as
ruas das principais cidades brasileiras assistiam às festas de coroação
dos “reis do Congo”, personagens que projetavam simbolicamente em nossa
terra a autoridade dos muene-e-Kongo, com quem os exploradores
quatrocentistas portugueses trocaram credenciais em suas primeiras expedições
à África subsaariana.
Esses festejos, realçados por muita música
e dança, seriam não só uma recriação das celebrações que marcavam a entronização
dos reis na África como uma sobrevivência do costume dos potentados bantos
de animarem suas excursões e visitas diplomáticas com danças e cânticos
festivos, em séqüito aparatoso. E os nomes dos personagens, bem como os
textos das cantigas entoadas nos autos dramáticos em que esses cortejos
culminavam, eram permeados de termos e expressões originadas nos idiomas
quicongo e quimbundo.
Esses cortejos de “reis do Congo”, na forma
de congadas, congados ou cucumbis (do quimbundo kikumbi, festa
ligada aos ritos de passagem para a puberdade), influenciados pela espetaculosidade
das procissões católicas do Brasil colonial e imperial, constituíram,
certamente, a velocidade inicial dos maracatus, dos ranchos de reis (depois
carnavalescos) e das escolas de samba – que nasceram para legitimar o
gênero que lhes forneceu a essência.
Sobre as origens africanas do samba veja-se
que, no início do século XX, a partir da Bahia, circulava uma lenda, gostosamente
narrada pelo cronista Francisco Guimarães, o Vagalume, no clássico Na
roda do samba, de 1933 [1], segundo a qual o vocábulo teria nascido
de dois verbos da língua iorubá: san, pagar, e gbà, receber.
Depois de Vagalume, muito se tentou explicar a origem da palavra, alguém
até lhe atribuindo uma estranha procedência indígena. Mas o vocábulo é,
sem dúvida, africaníssimo. E não iorubano, mas legitimamente banto.
Samba, entre os quiocos (chokwe)
de Angola, é verbo que significa “cabriolar, brincar, divertir-se como
cabrito”. Entre os bacongos angolanos e congueses o vocábulo designa “uma
espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito do outro”. E
essas duas formas se originam da raiz multilinguística semba, rejeitar,
separar, que deu origem ao quimbundo di-semba, umbigada – elemento
coreográfico fundamental do samba rural, em seu amplo leque de variantes,
que inclui, entre outras formas, batuque, baiano, coco, calango, lundu,
jongo etc.
Buscando comprovar essa origem africana do
samba – nome que define, então, várias danças brasileiras e a música que
acompanha cada uma delas –, veremos que o termo foi corrente também no
Prata como samba ou semba, para designar o candombe, gênero
de música e dança dos negros bantos daquela região.
Responsáveis pela introdução, no continente
americano, de múltiplos instrumentos musicais, como a cuíca ou puíta,
o berimbau, o ganzá e o reco-reco, bem como pela criação da maior parte
dos folguedos de rua até hoje brincados nas Américas e no Caribe, foram
certamente africanos do grande grupo etnolingüístico banto que legaram
à música brasileira as bases do samba e a grande variedade de manifestações
que lhe são afins.
Dentre as danças do tipo batuque ou samba
listadas pela etnomusicóloga Oneyda Alvarenga [2], com exceção
da tirana e da cachucha, de origem européia, todas elas trazem, no nome
e na coreografia, evidências de origem banta, apresentando muitas afinidades
com a massemba ou rebita, expressão coreográfica muito apreciada
nas regiões angolanas de Luanda, Malanje e Benguela, e que teve seu esplendor
no século XIX.
No Rio de Janeiro, a modalidade mais tradicional
do samba é o partido-alto, um samba cantado em forma de desafio por dois
ou mais participantes e que se compõe de uma parte coral e outra solada.
Essa modalidade tem raízes profundas nas canções do batuque angolano,
em que as letras são sempre improvisadas de momento e consistem geralmente
na narrativa de episódios amorosos, sobrenaturais ou de façanhas guerreiras.
Segundo viajantes como o português Alfredo Sarmento [3], nos
sertões angolanos, no século XIX, havia negros que adquiriam fama de grandes
improvisadores e eram escutados com o mais religioso silêncio e aplaudidos
com o mais frenético entusiasmo. A toada que cantavam era sempre a mesma,
e invariável o estribilho que todos cantavam em coro, batendo as mãos
em cadência e soltando de vez em quando gritos estridentes.
Segundo Oneyda Alvarenga, a estrofe solista
improvisada, acompanhada de refrão coral fixo, e a disposição coro-solo
são características estruturais de origem africana ocorrentes na música
afro-brasileira. Tanto elas quanto a coreografia revelam, no antigo samba
dos morros do Rio de Janeiro, a permanência de afinidade básicas com o
samba rural disseminado por boa parte do território nacional. Observe-se,
ainda, que os batuques festivos de Angola e Congo certamente já
se achavam no Brasil havia muito tempo. E pelo menos no século passado
eles já tinham moldado a fisionomia do nosso samba sertanejo.
Mas até aí, o batuque e o samba a que os
escritores se referem são apenas dança. Até que Aluísio Azevedo, descrevendo,
no romance O cortiço [4], um pagode em casa da personagem
Rita Baiana, nos traz uma descrição dos efeitos do “chorado” da Bahia,
um lundu, tocado e cantado. Esse lundu a que o romancista se refere foi
certamente o ancestral do samba cantado, herdeiro que era das canções
dos batuques de Angola e do Congo.
Com a estruturação, na cidade do Rio de Janeiro,
da comunidade baiana na região conhecida historicamente como “Pequena
África” – espaço sóciocultural que se estendia da Pedra do Sal, no morro
da Conceição, nas cercanias da atual Praça Mauá, até a Cidade Nova, na
vizinhança do Sambódromo, hoje –, o samba começa a ganhar feição urbana.
Nas festas dessa comunidade a diversão era geograficamente estratificada:
na sala tocava o choro, o conjunto musical composto basicamente de flauta,
cavaquinho e violão; no quintal, acontecia o samba rural batido na palma
da mão, no pandeiro, no prato-e-faca e dançado à base de sapateados, peneiradas
e umbigadas. Foi aí, então, que ocorreu, entre o samba rural baiano e
outras formas musicais, a mistura que veio dar origem ao samba urbano
carioca. E esse samba só começou a adquirir os contornos da forma atual
ao chegar aos bairros do Estácio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde
foi empurrada a população de baixa renda quando, na década de 1910, o
centro do Rio sofreu sua primeira grande intervenção urbanística. Nesses
núcleos, para institucionalizar seu produto, então, foi que, organizando-o,
legitimando-o e tornando-o uma expressão de poder, as comunidades negras
cariocas criaram as escolas de samba.
Daí que, em conclusão, todos os ritmos e
gêneros existentes na música popular brasileira de consumo de massa, quando
não são reprocessamento de formas estrangeiras, se originam do samba ou
são com ele aparentados.
Afoxés e blocos afro: a matriz iorubá
As condições históricas da vinda maciça de
iorubanos para o Brasil, do fim do século XVIII aos primeiros anos da
centúria seguinte, fizeram com que a língua desse povo se transformasse
numa espécie de língua geral dos africanos na Bahia e seus costumes gozassem
de franca hegemonia. Esse fato, aliado, posteriormente, ao trabalho de
reorganização das comunidades jeje-nagôs empreendido principalmente pela
ialorixá Mãe Aninha, Obá Biyi (1869-1938) e pelo babalaô Martiniano do
Bonfim, Aji Mudá (1858-1943), na Bahia, em Recife e no Rio de Janeiro,
fez com que os iorubás passassem a ser vistos como a principal referência
no processo civilizatório da diáspora africana no Brasil. Mas mesmo antes
das ações concretas daquelas duas grandes lideranças, as tradições iorubanas
já faziam presença na música. Tanto assim que, a partir do carnaval de
1897, saía às ruas de Salvador, encenando, com canto, danças e alegorias,
temas da tradição nagô, o clube Pândegos d’África, considerado o primeiro
afoxé baiano.
O afoxé, cordão carnavalesco de adeptos
da tradição dos orixás, e por isso outrora também chamado “candomblé de
rua”, apresenta-se cantando cantigas em iorubá, em geral relacionadas
ao universo do orixá Oxum. Esses cânticos são tradicionalmente acompanhados
por atabaques do tipo “ilu”, percutidos com as mãos, além de agogôs e
xequerês, no ritmo conhecido como “ijexá”.
Observe-se que a etimologia dos nomes dos
instrumentos citados remete sempre ao iorubá (ìlu, agogo,
sèkérè). Da mesma forma que o vocábulo “afoxé” se origina em àfose
(encantação; palavra eficaz, operante) e corresponde ao afro-cubano afoché,
o qual significa “pó mágico”; enfeitiçar com pó. E aí está a origem histórica
do termo: os antigos afoxés procuravam “encantar” os concorrentes.
Os afoxés experimentam um período de vitalidade
até o final da década de 1890, para declinarem até o término dos anos
de 1920 e ressurgirem na década de 1940. O grande remanescente desses
grupos é, hoje, o afoxé Filhos de Gandhi, fundado na cidade de Salvador
em 18 de fevereiro de 1948. Criado “para divulgação do culto nagô, como
forma de afirmação étnica”, segundo seus estatutos, e originalmente constituído
por estivadores, no final da década de 1990, gozando do respaldo oficial,
reunia mais de 4 mil associados, entre os quais um grande número de pais-de-santo.
Em 12 de agosto de 1951 era fundado no Rio de Janeiro, no bairro da Saúde,
seu homônimo carioca.
Nos anos de 1980, no bojo do movimento pelos
direitos dos negros, surgem em Salvador os blocos afro, com o objetivo
explícito de reafricanizar o carnaval de rua da capital baiana. Usando
temas que buscam uma conexão direta com a África e a afirmação da negritude,
essas agremiações criaram uma nova estética. Como acentua João José Reis,
eles reinventaram as ricas tradições da cultura negra local, “para exaltar
publicamente a beleza da cor, celebrar os heróis afro-brasileiros e africanos,
para contar a história dos países da África e das lutas negras no Brasil,
para denunciar a discriminação, a pobreza, a violência no dia-a-dia do
negro” [5]. Além disso, foram responsáveis pela estruturação
de uma nova linguagem musical, que se expressa no estilo comercialmente
conhecido como axé music, transformado em produto de domínio
nacional.
A atuação de vários blocos afro, transcendendo
o âmbito do carnaval, materializou-se dentro de um projeto estético-político
e estendeu-se ao trabalho de recuperação, preservação e valorização da
cultura de origem africana e de desenvolvimento comunitário. Nesse sentido,
o trabalho, por exemplo, do Olodum e do Ilê Aiyê ganhou dimensão e reconhecimento
internacionais.
Visto isso, examinemos, agora, o ponto de
interseção entre as matrizes bantas e sudanesas na música brasileira,
que se verifica, exatamente, através da religiosidade.
Música popular e religiões africanas
A origem banta (bantu) do samba, como vimos,
já está devidamente comprovada. Da mesma forma, é também banta a origem
dos vocábulos “umbanda”, “macumba” “mandinga” etc, pertencentes ao universo
dos cultos bantos do Brasil. Antes, porém, de entrarmos no cerne do nosso
objetivo, façamos o seguinte esclarecimento.
O registro mais antigo que se conhece de
cultos bantos em nosso país é o da cabula, denunciado numa pastoral do
bispo D. João Corrêa Nery no Espírito Santo, no fim do século retrasado.
Congregando, entre 1888 e 1900, mais de 8 mil pessoas, a comunidade dos
cabulistas, entretanto, e certamente também em função da repressão, não
dispunha de templo organizado em espaço físico exclusivo. Suas reuniões
de culto eram secretas, realizando-se ora em casa de um adepto ora no
meio da mata, mas com práticas, vestimentas e paramentos – segundo o famoso
relato do bispo Nery, divulgado por Nina Rodrigues [6] – bastante
semelhantes aos da umbanda.
Observe-se ainda que toda a literatura que
se ocupou de comparar as concepções religiosas dos povos bantos de Angola
e Congo com as dos iorubás apontou uma falta de substância daquelas em
relação a estas outras. Mas o que é certo é que elas guardam entre si
diferenças estruturais. Uma delas é a não existência de divindades intermediárias
de forma humana, e sim gênios da natureza criados por Nzambi (este nome
ocorre, com pequenas variantes, em quase todas as línguas bantas), mas
sem relação alguma com formas corporais humanas; outra é a não existência
de templos, como vimos; e ainda outra é a não fixação de datas certas
para a celebração de cultos.
Até a virada dos séculos XIX e XX, parece
que essas diferenças eram bem compreendidas, como ocorre, hoje, em Cuba.
E as informações de que dispomos sobre a cabula nos parecem bastante esclarecedoras
a esse respeito.
No entanto, com o estabelecimento das primeiras
comunidades baianas no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX,
começa a se verificar, ao que parece, uma supremacia iorubana (nagô),
como vemos, por exemplo, nos textos de João do Rio [7] sobre
as religiões africanas na antiga capital federal. Essa prevalência é que
vai, talvez, determinar o surgimento dos candomblés chamados “de Angola”
e “de Congo” e a iorubanização da linha ritual conhecida como “Omolocô”,
os quais, ao que consta, já não exprimem o sentido original das concepções
religiosas dos povos bantos, mas apenas adaptam os princípios jeje-nagôs
a um sonhado universo angolo-conguês.
Feito o esclarecimento, vamos ver que a matriz
principal da umbanda nos parece ser essa cabula capixaba, a qual deu origem
ao omolocô, cuja expansão se verificou particularmente no Rio de Janeiro,
na primeira metade do século XX.
Pouco antes dessa expansão, a partir da segunda
metade do século XIX, o processo gradativo que vai levar à abolição da
ordem escravista traz, para a terra carioca, milhares de negros livres
em busca de trabalho, que vêm juntar-se aos africanos, crioulos e mestiços
que já ganhavam a vida na antiga capital do Império, principalmente nas
zonas central e portuária. Esses negros livres é que vão constituir a
já citada “Pequena África” e os outros núcleos dinamizadores do samba
no Rio de Janeiro.
Examinemos, agora, um significativo texto
do sambista Aniceto do Império. Nascido e falecido no Rio (1912-1993),
Aniceto de Menezes e Silva Jr., um dos fundadores da escola de samba Império
Serrano, destacou-se como exímio partideiro pela facilidade com que improvisava
versos nas rodas de samba. Seu texto, letra de um samba ainda inédito
[8], é o seguinte: “Assumano, Alabá, Abaca, Tio Sanin/ e Abedé me
batizaram/ na lei de muçurumim...”. Vejamos quem são esses personagens
a quem o partideiro se refere.
“Assumano”, algumas vezes erroneamente grafado
como “Aço Humano”, foi o nome através do qual se fez conhecido Henrique
Assumano Mina do Brasil, famoso alufá radicado no Rio de Janeiro e pertencente
à comunidade da Pequena África, na virada do século XIX para o XX. Residiu
no nº 191 da Praça Onze e tinha como freqüentadores de sua casa, entre
outros, o célebre sambista Sinhô e o jornalista Francisco Guimarães, o
Vagalume, fundador da crônica de samba no Rio. O nome “Assumano” é o abrasileiramento
do antropônimo Ansumane ou Ussumane (do árabe Othman ou Utmân), usual
entre muçulmanos da antiga Guiné Portuguesa.
No mesmo contexto, João Alabá, falecido em
1926, foi um famoso babalorixá, certamente baiano, radicado no Rio de
Janeiro. Um dos mais prestigiados de seu tempo, sua casa era no número
174 da rua Barão de São Félix, nas proximidades do terminal da Estrada
de Ferro Central do Brasil. Seu nome marca sua origem nagô (alagba,
chefe do culto de Egungun; pessoa venerável, de respeito; ou antropônimo
dado ao segundo filho que nasce depois de gêmeos). Era pai de santo da
legendária Tia Ciata, também mãe-pequena de sua comunidade religiosa.
Da mesma forma, Cipriano Abedé, falecido
em 1933, foi um famoso babalorixá do Rio de Janeiro, no princípio do século
XX, com casa, primeiro na rua do Propósito e depois na rua João Caetano,
próximo à Central do Brasil. O nome Abedé, redução de Alabedé, designa
uma das manifestações ou qualidades do orixá Ogum.
Já “Abaca” é provavelmente corruptela de
Abu Bacar, nome muçulmano, mas o personagem não foi por nós identificado.
“Tio Sanim”, por sua vez, parece ser o mesmo Babá Sanin, morador na rua
dos Andradas, e mencionado no já referido livro de João do Rio.
O universo dos sambistas pioneiros não se
restringiu, porém, apenas à comunidade baiana e muitos menos ao povo de
muçurumim (linha ritual de influência islâmica), já que, quando essa arte
começa a se expressar nas escolas de samba, grande parte dos fundadores
era oriunda do Vale do Paraíba e adjacências (zona de irradiação cultural
bantu), como foi o caso do principal fundador da escola de samba Império
Serrano, o legendário Mano Elói.
Mano Elói foi o nome pelo qual se fez conhecido
Elói Antero Dias, sambista nascido em Engenheiro Passos, RJ, em 1888,
e falecido na cidade do Rio, para onde viera com 15 anos de idade, em
1971. Em 1936 foi eleito “cidadão samba” [9] em concurso promovido
pela União Geral das Escolas de Samba do Brasil. E em 1947 ajuda a fundar
a escola de samba Império Serrano, da qual foi presidente executivo e,
depois, presidente de honra. Em 1930, Mano Elói tornou-se o pioneiro do
registro em disco de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com
o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã.
Seu companheiro nessa empreitada foi outro sambista pioneiro, o legendário
“Amor”, sugestivo apelido de Getúlio Marinho da Silva, nascido
em Salvador, em 1889 e falecido no Rio, onde viveu desde os 6 anos de
idade, em 1964. Exímio bailarino, foi mestre-sala de vários ranchos carnavalescos.
De 1940 a 1946 foi o “cidadão-samba” do carnaval carioca. Compositor,
foi co-autor da marcha junina “Pula a fogueira”, até hoje executada.
O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói
deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos
rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba,
com atabaques etc. Mas, antes deles, outros artistas da música popular
já tinham criado obras baseadas nessa tradição, como foi o caso de Chiquinha
Gonzaga com “Candomblé” (batuque composto em parceria com Augusto de Castro
e lançado em 1888, provavelmente em comemoração à Lei Áurea, já que Chiquinha
era ativa abolicionista), de “Pemberê” (de Eduardo Souto e João da Praia,
lançado em 1921) e de “Macumba jeje” (lançada por Sinhô em 1923).
Depois de Mano Elói e Amor, vamos ter, entre
muitas outras, “Xô, curinga” (Pixinguinha, Donga e João da Baiana),
lançada em 1932 com a rubrica “macumba”, “Yaô” (Pixinguinha e Gastão Viana,
1938), “Uma festa de Nana” (Pixinguinha, 1941); “Macumba de Iansã” e “Macumba
de Oxossi” (de Donga e Zé Espinguela, sambista e pai-de-santo, gravadas
em 1940) e “Benguelê” (Pixinguinha, 1946) etc.
Contemporâneo de Amor e Mano Elói, e um verdadeiro
elo entre o mundo do samba e o dos cultos afro, foi o tata Tancredo Silva
Pinto. Compositor de “Jogo proibido”, de 1936, tido por muitos como o
primeiro samba de breque, e co-autor de “General da banda”, grande sucesso
do carnaval de 1949, além de autor de vários livros sobre a doutrina umbandista,
Tancredo foi um grande líder do samba e da umbanda. Tanto que em 1947
ajudava a fundar a Federação Brasileira das Escolas de Samba e, logo depois,
criava a Confederação Umbandista do Brasil.
Sobre a criação da Federação, Tata Tancredo
(como era conhecido) contava um fato interessante, narrado no livro Culto
omoloko:
... esse episódio passou-se na
casa da minha tia Olga da Mata. Lá arriou Xangô, no terreiro São Manuel
da Luz, na Avenida Nilo Peçanha, 2.153, em Duque de Caxias. Xangô falou:
– Você deve fundar uma sociedade para proteger os umbandistas,
a exemplo da que você fundou para os sambistas, pois eu irei auxiliá-lo
nesta tarefa. Imediatamente tomei a iniciativa de fazer a Confederação
Umbandista do Brasil, sem dinheiro e sem coisa alguma. Tive uma inspiração
e compus o samba General da banda, gravado por Blecaute
[10], que me deu algum dinheiro para dar os primeiros passos
em favor da Confederação Umbandista do Brasil [11].
Quase vinte anos depois desse sucesso de
Tancredo e do cantor Blecaute, em 1965, surge para o disco Clementina
de Jesus, cantora nascida em Valença, RJ, em 1901, e falecida no
Rio, onde vivia desde menina, em 1987. Descoberta para a vida artística
já sexagenária, afirmou-se como uma espécie de “elo perdido” entre a ancestralidade
musical africana e o samba urbano. Seu trabalho de maior expressão fez-se
através da interpretação de jongos, lundus, sambas da tradição rural e
cânticos rituais recriados, como o já mencionado “Benguelê”, de Pixinguinha.
Logo depois do surgimento de Clementina,
outra importante interseção entre a música popular brasileira e a religiosidade
africana ocorre com os “afro-sambas” (“Canto de Ossanha”, “Ponto do Caboclo
Pedra Preta” etc) lançados por Baden Powell e Vinícius de Moraes em 1966.
E é o mesmo Vinícius que, agora em parceria com Toquinho, vai lançar um
“Canto de Oxum”, em 1971, e um “Canto de Oxalufã”, em 1972.
Daí em diante, a vertente começa a se rarefazer,
com raras incursões, como a do cantor e compositor Martinho da Vila, que,
em um de seus discos do final dos anos 70, registrou uma seqüência de
cantigas rituais da umbanda.
As escolas de samba e os sambas-enredo
Com relação às escolas de samba cariocas
– cujos terreiros (terreiros e não “quadras”, como hoje) até os anos de
1970 obedeciam a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé,
com acesso à roda permitido somente às mulheres, por exemplo –, veja-se
que elas, hoje, são, ainda, um veículo em que a temática africana é recorrente.
Muito embora seus enredos e sambas enfoquem a África por uma perspectiva
meramente folclorizante.
O samba-enredo – esclareçamos – é uma modalidade
de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do
tema elaborado como enredo de uma escola de samba. Os primeiros sambas-enredo
eram de livre criação: falavam da natureza, do próprio samba, da realidade
dos sambistas. Com a oficialização dos concursos, na década de 1930, veio
a exaltação dirigida de personagens e fatos históricos. Os enredos passaram
a contar a história do ponto de vista da classe dominante, abordando os
acontecimentos de forma nostálgica e ufanística. A reversão desse quadro
só começou a vir em 1959, quando a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro
apresentou, com uma homenagem ao pintor francês Debret, e com grande efeito
visual, o cotidiano dos negros no Brasil à época da colônia e do Império,
o que motivou uma seqüência de enredos sobre Palmares, Chica da
Silva, Aleijadinho e Chico Rei, voltados para o continente africano.
Mas, se a ingerência governamental já não era tão forte, pelo menos enquanto
cerceamento da liberdade na criação dos temas, um outro tipo de interferência
começava a nascer: a dos cenógrafos de formação erudita ou treinados no
show-business, criadores desses enredos, os quais imprimiram ao carnaval
das escolas a feição que ele hoje ostenta e que, direta ou indiretamente,
selaram o destino dos sambas-enredo. Tanto que, no final do século XIX,
o samba-enredo é um gênero em franca decadência. Em cerca de 60 anos de
existência, no entanto, a modalidade mostrou sua força em dezenas de obras
antológicas.
Entre os enredos apresentados pelas escolas
de samba cariocas das várias divisões, a partir de 1948, muitos fazem
referência mais direta à África, como, por exemplo: “Navio negreiro” (Vila
Isabel, 1948, e Salgueiro, 1957), “Quilombo dos Palmares” (Salgueiro,
1960, Viradouro, 1970, e Unidos de Padre Miguel, 1984), “Chico Rei” (União
de Vaz Lobo, 1960, Salgueiro, 1964, e Viradouro, 1967), “Ganga Zumba”
(Unidos da Tijuca, 1972), “Valongo” (Salgueiro, 1976, e Unidos de Padre
Miguel, 1988), “Galanga, o Chico Rei” (Unidos de Nilópolis, 1982), “Ganga
Zumba, raiz da liberdade” (Engenho da Rainha, 1986). Isso sem falar em
outros tantos temas como “Porque Oxalá usa ekodidé”, “Oju Obá”, “Logun,
príncipe de Efan”, “O mito sagrado de Ifé”, “Oxumará, a lenda do arco-íris”,
“Alafin Oyó”, “Príncipe Obá, rei dos descamisados”, “Ngola Djanga”, “De
Daomé a São Luiz, a pureza mina-jeje”, “Império negro, um sonho de liberdade,
“Kizomba, festa da raça”, “Preito de vassalagem a Olorum” etc. [12]
De alguns desses títulos, selecionamos, como
exemplo de abordagens, e sem maiores comentários, alguns trechos:
África... misteriosa África/ Magia, no
rufar dos tambores se fez reinar/ Raiz que se alastrou por este imenso
Brasil/ Terra dos santos que ela não viu... (“Os santos que a África
não viu”, Grande Rio, 1996 – Mais Velho, Rocco Filho, Roxidiê, Helinho
107, Marquinhos e Pipoca); África encanto e magia/ Berço da sabedoria/
Razão do meu cantar/ Nasceu a liberdade a ferro e fogo/ A Mãe Negra abriu
o jogo/ Fez o povo delirar... (“Quando o samba era samba”, Portela,
1996 – Wilson Cruz, Cláudio Russo, Zé Luiz); Vem a lua de Luanda/ Para
iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua...
(“Kizomba, festa da raça”, Vila Isabel, 1988 – Rodolfo, Jonas e Luiz
Carlos da Vila); Vivia no litoral africano/ Uma régia tribo ordeira/
Cujo rei era símbolo/ De uma terra laboriosa e hospitaleira/ Um dia essa
tranquilidade sucumbiu/ Quando os portugueses invadiram/ capturando homens/
para fazê-los escravos no Brasil/ na viagem agonizante/ Houve gritos alucinantes/
Lamentos de dor/ Ô ô ô, adeus baobá, ô ô ô/ Ô ô ô, adeus meu Bengo, eu
já vou... (“Chico Rei”, Salgueiro, 1965 – Geraldo Babão, Djalma Sabiá
e Binha); Ilu Aiê, Ilu Aiê, odara! / Negro cantava na nação nagô/ Depois
chorou lamento de senzala/ Tão longe estava de sua Ilu Aiê... (“Ilu
Aiê, terra da vida”, Portela, 1972 – Cabana e Norival Reis); Bailou
no ar/ O ecoar de um canto de alegria/ Três princesas africanas/ Na sagrada
Bahia/ Ia Kalá, Iá Adetá, Iá Nassó/ Cantaram assim a tradição nagô/ Olorum,
senhor do infinito/ Ordena que Obatalá/ faça a criação do mundo/ ele partir,
despreando bará/ E no caminho adormecendo/ Se perdeu/ Odudua,
a divina senhora chegou... (“A criação do mundo segundo a tradição
nagô”, Beija-Flor, 1978 – Neguinho da Beija-Flor, Mazinho e Gilson); Conta
a lenda que a deusa Oiá/ Foi aconselhar Ifá/ A buscar a cura em Sabadã/
Pra Obaluaiê se levantar... (“O bailar dos ventos, relampejou mas
não choveu”, Salgueiro, 1980 – Ala dos Compositores); Lá da África
distante/ Trouxeram o misticismo da magia/ maçons e mestres alufás/ Usavam
estratégia e ousadia... (“Salamaleikun, a epopéia dos insubmissos
malês”, Unidos da Tijuca, 1984 – Carlinhos Melodia, Jorge Moreira e Nogueirinha);
Esta negra caprichosa/ Convidou o rei da Costa do Marfim/ E o recebeu
de forma suntuosa/ A festa parecia não ter fim... (“O rei da Costa
do Marfim visita Xica da Silva em Diamantina”, Imperatriz, 1983 – Matias
de Freitas, Carlinhos Boemia e Nelson Lima); Lua alta/ Som contante/
Ressoam os atabaques/ lembrando a África distante... (“Misticismo
da África ao Brasil”, Império da Tijuca, 1971 – Marinho da Muda).
Sobre a predominância, nesses sambas, de
temas ligados ao universo iorubano, observe-se que isso ocorre pela maior
visibilidade que essa matriz tem no Brasil, notadamente através da Bahia.
A Bahia, graças principalmente à sua capital, é internacionalmente conhecida
pela riqueza de suas tradições africanas, apropriadas como verdadeiros
símbolos nacionais brasileiros. Segundo algumas interpretações, a visibilização
desse precioso acervo cultural teria ocorrido pela presença histórica,
em Salvador e no Recôncavo Baiano, de diversas “nações” africanas organizadas,
e muitas vezes adversárias, cada uma ciosa de sua identidade étnica. E
isto teria feito com que, lá, no combate ao racismo, os afro-descendentes
se destacassem mais fortemente através da afirmação de suas expressões
culturais específicas do que através da luta política, como em São Paulo,
por exemplo. Entretanto, veja-se que personagens como Chico Rei, Ganga
Zumba, Zumbi e Rainha Jinga, pertencentes ao universo banto, são também
bastante freqüentes nos enredos que relacionamos.
A África distante, cada vez mais
A presença africana na música brasileira,
pelo menos em referências expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita.
Aparece, via Jamaica, no carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas-enredo
das escolas cariocas e paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades.
Mas nada de modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba
e em outros países do Caribe.
Mesmo com a explosão comercial da chamada
salsa, a partir de Porto Rico e via Miami, na música afro-caribenha
de hoje é raro um disco que não contenha pelo menos uma cantiga inspirada
em temas da religiosidade africana e interpretada com fervor apaixonado.
Tito Puente, Mongo Santamaría, Célia Cruz, Rubén Bladez e muitos outros
são exemplos fortes, o mesmo não acontecendo no Brasil, pelo menos na
música mais largamente consumida.
No Brasil, o samba, a partir da década de
1990, apesar da voga inicial de grupos cujos nomes, mas só os nomes, evocavam
a ancestralidade africana (Raça Negra, Negritude Júnior, Suingue da Cor,
Os Morenos etc.), entendemos que foi se transformando em um produto cada
vez mais fútil e imediatista para se preocupar com etnicidade. E isto
talvez por conta do conjunto de estratégias de desqualificação que ainda
hoje sustentam as bases do racismo antinegro no Brasil. É esse racismo
que, no nosso entender, vai cada vez mais separando coisas indissociáveis,
como o samba e a macumba, a ginga e a mandinga, a música religiosa e a
música profana, desafricanizando, enfim, a música popular brasileira.
Ou “africanizando-a” só na aparência, ao sabor de modas globalizantes
made in Jamaica ou Bronx.
Desafricanização, como sabemos, é o processo
por meio do qual se tira ou procura tirar de um tema ou de um indivíduo
os conteúdos que o identificam como de origem africana. À época do escravismo,
a principal estratégia dos dominadores nas Américas era fazer com que
os cativos esquecessem o mais rapidamente sua condição de africanos e
assumissem a de “negros”, marca de subalternidade. Isto para prevenir
o banzo e o desejo de rebelião ou fuga, reações freqüentes, posto que
antagônicas.
O processo de desafricanização começava ainda
no continente de origem, com conversões forçadas ao cristianismo, antes
do embarque. Depois, vinha a adoção compulsória do nome cristão, seguido
do sobrenome do dono o que representava, para o africano, verdadeira e
trágica amputação. Então, vinham as distinções clássicas entre “da costa”
e “crioulo”, entre “boçal” e “ladino”.
Acreditamos que a música popular brasileira,
de raízes tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo de
desafricanização ainda em curso. Senão, vejamos. Quando a bossa-nova resolveu
simplificar a complexa polirritmia do samba e restringir sua percussão
ao estritamente necessário, não estaria embutido nesse gesto, tido apenas
como estético, uma intenção desafricanizadora? E quando a indústria fonográfica
procura modernizar os ritmos afro-nordestinos (de maracatu para mangue-beat,
por exemplo), não estará querendo fazer deles menos “boçais” e mais “ladinos”,
pela absorção de conteúdos do pop internacional?
Pois esse pop milionário, sem pátria
e sem identidade palpável (mesmo quando pretende ser “étnico”), é exatamente
aquela parte da música dos negros americanos que a indústria do entretenimento
desafricanizou.
Notas:
- GUIMARÃES, Francisco (Vaga-lume).
Na roda do samba. 2. ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
- ALVARENGA, Oneyda. Música popular
brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950.
- SARMENTO, Alfredo. Os sertões
d’África. Lisboa: Ed. Francisco Artur da Silva, 1880.
- AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Rio
de Janeiro: Ediouro, s/d.
- REIS, João José. Aprender a raça.
Veja, São Paulo, Abril Cultural, 1993, p. 189-195.
- RODRIGUES, Nina. Os africanos
no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1932.
-
JOÃO DO RIO. As religiões do Rio.
Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 1904.
- Interpretado em espetáculo que cumpriu
temporada na Sala Funarte, no Rio de Janeiro, em 1980.
- Título de grande importância no mundo
dos sambistas, conferido aos mais talentosos e representativos.
- Pseudônimo de Otávio Henrique de
Oliveira (1919-1983), cantor popular brasileiro.
- SILVA, Ornato José da. Culto
omoloko. Rio de Janeiro: Rabaço, s/d.
- Cf. Memória do carnaval.
Rio de Janeiro: Riotur, 1991, onde pode ser encontrada uma extensa
listagem de sambas-enredo com motivos africanos.
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