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Poucas
pessoas podem se orgulhar de conhecer tão bem o Morro de Mangueira quanto
Devanir Ferreira, o Tantinho. Negro baixo, forte, de voz imponente e bom
humor contagiante, ele é considerado por muitos, aos 59 anos, a memória
viva do morro. Mascote da geração de ouro da escola de Cartola, Nelson
Cavaquinho e Padeirinho, Tantinho é cria da Mangueira, onde já saiu na
bateria, ganhou samba-enredo, puxou samba na quadra e atuou até como um
tesoureiro informal, guardando dinheiro dos ensaios embaixo do colchão.
Grande versador das rodas de partido alto, ele ganha, hoje, no Centro
Cultural Carioca, um show dedicado à sua vivência no mundo do samba.
Em “Um Tantinho de samba”, ele conta suas primeiras
lembranças do morro, seu convívio com os mestres e, principalmente, as
transformações sofridas pela escola e pela comunidade ao longo dos anos.
O roteiro de Lefê Almeida começa com um samba pouco lembrado e profético
de Zé Kéti, de 1964, “Favelado” (“Cuidado, o morro tem sede/ O morro tem
fome/ O morro sou eu, o favelado”) e termina com a atual “O dia em que
o morro descer e não for carnaval”, de Wilson das Neves e Paulo César
Pinheiro.
— Certo dia eu reencontrei o Tantinho, com quem cruzei
muito nos anos 60, e conversamos sobre música, sobre Mangueira. Saí dali
com essa idéia na cabeça — conta Almeida, um dos grandes responsáveis
pela reestruturação da Lapa boêmia. — Cheguei a conclusão de que essa
história tinha que ser cantada e contada por alguém que tivesse vivido
as transformações do morro.
Tantinho é mesmo testemunha de uma outra realidade
em Mangueira. Nascido pelas mãos de uma parteira no próprio morro, filho
de família pobre, desde cedo circulava pelas vielas do morro e almoçava
de favor na casa de Alfredo Português, pai de criação de Nelson Sargento,
e de Dona Neuma, de quem era um dos protegidos. Aos 6 anos, a mãe, baiana
da escola, sem ter onde deixá-lo, arrumou uma maneira de incluí-lo na
bateria da escola.
— Ela falou com o Tinguinha, presidente da bateria,
que não tinha com quem me deixar. Ele mesmo construiu um tamborim para
mim — lembra Tantinho.
Tornou-se figura popular no morro mas gostava mesmo
era de cantar. Para conseguir seu espaço, começou a compor sambas aos
11 anos. Agradou em cheio e ganhou o respeito dos notáveis da escola.
Passou a ajudar Jamelão a puxar sambas na quadra e, desde então, e até
os anos 90, era o único em quem Jamelão confiava.
Pelas mãos de Cartola, de quem havia defendido o samba
“Tempos idos” na quadra em 1962, chegou às noitadas de samba do Teatro
Opinião, onde se apresentavam Clementina de Jesus, Xangô e outros. Acompanhou
Paulinho da Viola e Zé Kéti como instrumentista, integrou o Originais
do Samba, grupo que fez muito sucesso nos anos 70, mas a situação do sambista
e da própria escola, a partir do fim desta década, fez com que ele deixasse
o samba em segundo plano.
— A partir desta época, malandro começou a invadir
as favelas. Gente de outras comunidades. Chegaram uns caras lá e me estranharam.
Ameaçaram-me com uma arma. Logo eu, que sempre falei o que queria na Mangueira.
Então eu fui embora e botei na cabeça que precisava trabalhar em outras
coisas para poder comprar uma casa para a minha família.
Trabalho com fotografia para sustentar a família
Foi
trabalhar de contínuo no “Jornal do Brasil” e, pelas mãos do jornalista
esportivo Oldemário Touguinhó, conseguiu um trabalho na fotografia como
laboratorista. De lá foi trabalhar em uma agência de publicidade.
Há
alguns anos, vida arrumada, Tantinho resolveu voltar para os braços do
samba. Para sua surpresa reencontrou um outro ambiente:
—
Monarco e Noca da Portela tiveram que vender muito peixe na feira. Cartola
lavou carros. Hoje o sambista tem uma vida um pouco mais digna. Eu sustento
minha família com o que eu ganho cantando na noite.
E
nesta noite ele vai contar essas e outras histórias, além de cantar clássicos
da sua verde-e-rosa, como “Semente do samba” e “A mais querida”, e falar
dos amigos que fez pela sua longa jornada no samba.
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