Por que se 'compra' um enredo
Beija-Flor e Poços de Caldas assinam acordo de patrocínio

 

          A semana, que termina com a notícia da assinatura do acordo que transformará Poços de Caldas em enredo da Beija-Flor, começou com uma manchete pouco festiva para a cidade mineira: "Polícia Federal prevê que Poços de Caldas será maior exportadora de clandestinos" foi o título de uma das reportagens da edição do domingo passado do jornal "O Globo". O enredo nas páginas do jornal mostrava a imigração ilegal para o Estados Unidos. E não era letra de samba exaltação. O texto dizia: "Cidade com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Minas deve desbancar Governador Valadares" (município conhecido como maior "exportador" de brasileiros para a América do Norte).Algo parece estar fora da ordem, fora da ordem no mundo do samba. A mercantilização dos desfiles evolui sem muita harmonia. Não se sabe se o êxodo vai ser abordado no enredo patrocinado por Poços de Caldas. "Coiotes", desemprego, imigrantes ilegais, fluxo de dólares no sentido EUA-Brasil e outdoors com a frase "Nova York, um sonho brasileiro" parecem não se encaixar no projeto de se cantar as belezas de uma cidade: os bosques, as cachoeiras, o clima, a vocação turística. Só com a sinpose na mão é que saberemos a Poços de Caldas que passará na Sapucaí, claro. Mas, aos poucos, a lógica econômica que (agora) preside o samba vai ficando mais clara. É mais uma ação de marketing - e menos uma roda de samba. Menos a inspiração da musa, ou os sonhos de reis, de pirata e jardineira. Portanto, é um negócio. Há quem contrata; há o contratado. E há os interesses dos dois. O site da prefeitura de Poços de Caldas já lista uma série de matérias e notas de colunas, publicadas em jornais desde que Nilópolis anunciou o enredo. Numa delas, intitulada "Beija-flor escolhe Poços para enredo", datada de 26 de abril, informa-se que o vice-prefeito da cidade, Paulo Cesar Silva (PPS), ao voltar de uma reunião em Nilópolis,
levava na bagagem o "relatório de mídia da Beija-Flor". A reportagem diz ainda que ele ficou "impressionado com os valores e o tempo de exposição da escola nos veículos de comunicação". Ainda segundo a reportagem, em 2005 foram publicadas 728 matérias sobre a Beija-Flor em jornais e revistas, "o equivalente a 240 páginas de jornal do tamanho standard, que somariam a quantia de R$ 10.622.811" (pelo que se entende, seria o custo comercial, se esse número de páginas tivesse sido ocupado por anúncios, e não por reportagens). "Na tevê, a Beija-Flor apareceu 153 vezes. Em valores reais de comercialização isso custaria R$ 98.562.408", prossegue a notícia, que tem como fonte o "Jornal da Cidade". O total, em mídia, seria de R$ 109.185.209.
          Não foi possível confirmar esses números com a escola, cujos dirigentes se encontravam nesta quinta-feira em Poços de Caldas. Se confirmados, poderíamos concluir que a "eficácia" da ação de marketing de uma escola como a Beija-Flor, a favor do patrocinador, está resumida na seguinte equação: o patrocinador entra com R$ 1,2 milhão (valor que Poços de Caldas aplicará no desfile de 2006) e recebe em troca "espaço na mídia" no valor de R$ 100 milhões. Será isso mesmo?!! A checar. Mas, independentemente dos números, note um detalhe: não se fala do carnaval propriamente dito (prazer, alegria, celebração, integração, arte etc etc). Será que isso quer dizer que a exposição na mídia, sozinha, já satisfaz o patrocinador? Ok, a pergunta é uma provocação. Publicidade. Marketing. Negócios. Samba???? Não se pode negar a profissionalização do espetáculo, se os números (e o que eles retratam) forem mesmo dessa ordem. E ninguém em sã consciência pode ser contra alguma profissionalização - alguma ordem, na desordem; alguma conversão, na inversão primordial da festa. Afinal, ela já foi da rua, e hoje é do Sambódromo (nos referimos aqui, é claro, aos desfiles das grandes escolas). O problema é quando isso joga para segundo ou terceiro plano os fundamentos do samba - prazer, alegria, celebração, integração, arte...
          O problema, recolocando a questão e sem resolvê-la, é quando o interesse de uma das partes (a que entra com o dinheiro) é a escola como outdoor, como suporte publicitário de campanha turística ou empresarial ou política ou pessoal, e não como expressão de uma cultura e de uma cidade. Sim, as escolas criam seus mecanismos de proteção; sim, nem todo patrocinador enxerga as agremiações assim, com um olhar tão pragmático. A questão é polêmica e está em aberto. O argumento principal utilizado pelas escolas que buscam enredos patrocinados é que as fontes habituais de recursos não são mais  suficientes para "bancar" o espetáculo. Para alguém rebater na ponta do lápis, precisaria ter acesso às planilhas de receitas e de custos das escolas.
          Mas como se explica que escolas sem patrocínio - ainda existem - consigam organizar seu carnaval apenas com os recursos habituais (subvenção, direito de imagem, venda de cds e ingressos, além do movimento na quadra), conseguindo realizar o espetáculo? A bi- vice-campeã Unidos da Tijuca é um exemplo. Se ela consegue, por que outras não? Se uma escola é vice com R$ 2 milhões e uns quebrados, e outra fica em sexto com cerca de R$ 4 ou R$ 5 milhões, a necessidade de patrocínio não pode ser apresentada como uma verdade irrefutável.

Aloy Jupiara
Aloy é jornalista e presidente do júri do Estandarte de Ouro
(Publicado originalmente no O Globo Online em 08/05/2005)

 

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