A notícia que dá primeira página

 
          O leitor pode muito bem imaginar como os jornalistas constroem a primeira página de um jornal diário. É muito simples. Em primeiro lugar, tem que haver notícia. De posse das principais informações do dia, os editores buscam as mais importantes para compor a capa do jornal. Decididas quais são as que merecem a primeira, deve-se estabelecer uma hierarquia entre elas: qual a principal, aquela que vai virar manchete; qual a imagem mais importante do dia, que repercutirá nas bancas e dará mais uma informação ao leitor; como arranjar as demais notícias de maneira a comportar o conteúdo com impacto, conjunto e graça na página mais nobre do jornal.
          Na capa do domingo passado, primeiro dia de desfile das escolas de samba, a manchete só podia ser de carnaval. O GLOBO tinha uma excelente história de carnaval, um relatório que mostrava as contradições entre as notas e os comentários dos jurados das escolas de samba em 2004. E o jornal dispunha também da foto, a foto síntese do carnaval da Sapucaí, que começaria a eletrizar a cidade naquele domingo. Era a foto da Luma de Oliveira, a rainha das rainhas das escolas de samba. Foi Luma quem transformou as rainhas de bateria em instituição do carnaval.
          Alguma dúvida? Para nós, os editores, a foto era aquela. Luma parecia uma pin-up , um desenho retocado, sem defeito. Como O GLOBO mantém um ambiente aberto, democrático, onde todos opinam e têm voz, a colunista e editora Cora Rónai, ao saber que estávamos dando a foto da Luma, protestou. Ela julgava um absurdo darmos na capa do domingão uma mulher “mentirosa e manipuladora”. Cora concordava que Luma tinha tudo a ver com o carnaval, que era mesmo representante legítima da festa, mas discordava organicamente da sua presença na primeira página do jornal. Argumentou que Luma fora acusada de presenciar o espancamento de um fotógrafo num resort e nada fez para impedir. E quem agia assim com um colega nosso não merecia nossa primeira página.
          Contra-argumentamos lembrando a Cora que o assunto em pauta era o carnaval, não a defesa dos jornalistas. Não podemos fazer jornal pensando em defender uma ou outra categoria, mesmo que seja a nossa. Fazemos jornal, não panfleto. Que se Luma mentira, como de fato mentira no episódio daquela falsa gravidez, isso nada tinha a ver com a questão em pauta. A notícia era o carnaval e a Luma era a melhor imagem do carnaval que dispúnhamos.
          Cora finalmente insistiu que devíamos dar ouvidos a ela porque falava como “perfeita representante das donas de casa da Zona Sul do Rio”. Bom, aí não houve mais o que discutir, caímos na gargalhada, Cora inclusive, e encerramos a conversa.
          Já tinha até mesmo me esquecido do assunto quando me surpreendi com a coluna da Cora no Segundo Caderno de ontem. Concordo com ela que voto vencido não é convencido. E é obrigação dela expor idéias, dar opiniões. Para isso Cora tem uma coluna semanal. O que se espera dela é isso mesmo: idéias. Entendi, contudo, que o tom foi um pouco além dos bons modos que pautou nosso debate durante o fechamento daquela edição dominical. Cora disse que ao promovermos Luma estávamos “tripudiando da nossa profissão e apresentando ao leitor uma escala de valores lastimável”. Ora, Cora. Atribuo esses termos a um arroubo juvenil. Ela sabe muito bem que os seus colegas jamais tripudiariam da sua profissão nem apresentariam ao leitor valores morais menores.
          Se fôssemos negar a Luma a primeira página pelas razões expostas por Cora, teríamos que afugentar da capa outros tantos personagens do nosso cotidiano. Notícia tem que ser publicada. E esse é o principal critério na escolha do que vai para a primeira: ser notícia. E Luma é notícia no carnaval como Romário é no futebol e Bush é no mundo.
          O editor pode até não gostar de Luma, Romário e Bush, mas não pode negar a eles espaço no noticiário por razões alheias à notícia.

Ascânio Seleme é jornalista
(Publicado originalmente na seção Opinião do Jornal O Globo em 11 de fevereiro de 2005)

 

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