Ao mendigo Joãosinho Beija-Flor

 
           Mesmo antes de sua Vila Isabel pisar a avenida, quase de manhã, no epílogo da primeira metade do desfile das grandes escolas, Joãosinho Trinta ofereceu um presente aos amantes do carnaval — e do Brasil todo. O melhor refrão da fornada de 2005 dos sambas-enredo tem como semente o pensamento conceitual do mestre. “Caravela, leve a Vila, ‘oriente’/ O paraíso é aqui, vem descobrir/ O ‘feitiço’ dessa gente”, ensina o samba, traduzindo em paticumbum um axioma do mestre — não há lugar neste mundo como o Brasil, a terra do mais perfeito dos povos.
          Nem o microscópio avistaria ufanismo no raciocínio. “Afirmo que o Brasil será o coração do mundo, temos todos os ingredientes para isso”, apostou ele de novo, numa entrevista ano passado. “Eu tenho certeza de que aqui está sendo realizada a mais formidável experiência da natureza com o gênero humano”, arrematou, referindo-se à mistura que é o DNA dos brasileiros. À época, ainda na Grande Rio, parecia adivinhar o refrão que surgiria mais adiante.
          O trecho do samba serve ainda de resumo ao maranhense pequeno e inquieto, impaciente e polemista, que cruzou a vida cantando o país na festa que inventou. Sua maior obra é, de novo, o conceito. O carnaval contemporâneo, no formato gigante que enfeitiça platéias mundo afora, saiu da cabeça de Joãosinho (lapidada por seu mentor, Fernando Pamplona), em ensaios no Salgueiro e, anos mais tarde, na plenitude da Beija-Flor da segunda metade dos anos 70. O formato foi seguido por todos, imitado por muitos, até aperfeiçoado por um ou outro — mas a invenção é dele.
          O compromisso de Joãosinho Trinta com o carnaval foi muito além. Aos privilegiados que o ouviam contar a própria história, exibia o raciocínio de, nascido em novembro, ter sido concebido na folia. “Sou fruto de uma boa transa carnavalesca de minha mãe”, garantiu a vida toda, rindo do destino traçado na concepção. O Rio, onde desembarcou num sábado de carnaval (nada é por acaso), abrigou seus delírios em ritmo de samba, décadas de momentos inesquecíveis.
          Por exemplo, “A Lapa de Adão e Eva”, na Beija-Flor vice-campeã de 1985, versão carioca da criação do mundo; “Gentileza, o profeta do fogo” (2001), na Grande Rio, quando ele salvou um carnaval tedioso ao incendiar a avenida com um homem voador. Num ano órfão de desfiles memoráveis, Joãosinho tirou da cartola o momento de antologia. A escola que veio atrás do astronauta não manteve o padrão, mas quem se importa? Gênios, por vezes, se exibem num átimo. Quem perdeu, perdeu.
          Pois o homem de carnavais inesquecíveis, da mais perfeita tradução da alma brasileira, da defesa intransigente da liberdade criativa — sempre pronto a duelar com inimigos os mais poderosos — padece numa cama de hospital, dependente da caridade alheia para o tratamento de um acidente cerebral. Fosse americano, Joãosinho teria US$100 milhões no banco — brasileiro, lembra Garrincha no desamparo da falta até de um banal plano de saúde. Passional, irremediavelmente apaixonado pelo próprio trabalho, empenhou recursos, engoliu traições, absorveu calotes. Mago do luxo, envelheceu pobre.
          O povo vai sambar no seu reino, a Sapucaí, e não poderá reverenciá-lo, como virou tradição só quebrada no breve exílio do desfile de 1993. Será prova de decência, por enquanto improvável, lembrar a trajetória do mestre na festa que começa hoje à noite. Ex-escolas e manda-chuvas do samba preferem fazer de conta que não é com eles o drama do maior protagonista da festa. Ingratos, esquecem que devem a Joãosinho o tamanho do espetáculo, que trombeteiam — com razão — ser o maior da Terra.
          Até agora, além da Vila Isabel e da Vale do Rio Doce — grata pela homenagem de dois anos atrás, “O nosso Brasil que vale”, na Grande Rio —, ninguém se coçou para ajudar o carnavalesco em sua agonia. Joãosinho teve de mudar de hospital, uma aventura no delicado estado em que o segundo AVC o deixou. Este, aliás, não deu para tirar de letra, como o primeiro, em 1996, que limitou os movimentos do lado direito do corpo e virou bem-humorada lição de vida. “Antes de ter a isquemia, diziam que eu devia procurar um médico, comer, descansar... Não ouvia. Hoje eu não dou conselhos. Só desejo uma coisa a todo mundo que está nos meus antigos padrões: ter uma boa isquemia”.
          Do primeiro revés, Joãosinho saiu para o campeonato surpreendente com a Viradouro, o do big bang, em 1997. Agora, vive o drama da recidiva, enquanto o desfile concebido por ele, e executado por auxiliares, conduz a Vila na sua volta ao Grupo Especial. Possivelmente, será o último capítulo da trajetória de 31 carnavais, alguns erros, muitos acertos e definitivas revoluções.
          Só da cabeça de Joãosinho sairia, mais do que qualquer momento, o maior desfile de todos, “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, da Beija-Flor em 1989. O Cristo mendigo, coberto pela censura da igreja, e o carro dos miseráveis, maltrapilhos em plena festa milionária, estão tatuados na memória dos apaixonados por carnaval. A escola foi vice, numa injustiça que terminou por eternizar ainda com mais força a genialidade de seu carnavalesco.
          Melhor ficar com a reverência de Caetano Veloso, na magistral “Reconvexo”: “Quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor” não sabe o que perdeu.

Aydano André Motta é jornalista
(Publicado originalmente na seção Opinião do Jornal O Globo em 06 de fevereiro de 2005)

 

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