Dois carnavais: Rio e Veneza

 

          Há vários carnavais dentro do carnaval. Inúmeros. Mas aqui me referirei a dois tipos, quase opostos, embora complementares. O carnaval de Veneza e o carnaval do Rio. Duas faces da mesma ritualização cósmica: a celebração erótica da vida e o exorcismo do fantasma da morte.
          Um em plena ardência do verão tropical.
          Outro celebrando o término do inverno e o advento da primavera por vir.
          Como se dão essas antíteses entre o carnaval do Rio e o carnaval de Veneza?

1. Primeiro o contraste: verão/inverno

          Num, os corpos tropicais estão praticamente nus. Expõem-se voluptuosamente suando seus desejos. O Sol está latejando nas bocas, peitos e coxas. É o carnaval da exibição narcísica do próprio corpo, onde a pele é exposta como uma fantasia sedutora.
          Por sua vez, no carnaval veneziano, os corpos estão cobertos, denunciando uma ligação com o inverno. Corpos cobertos, recobertos. A máscara é total. Mesmo os olhos e a boca estão pintados. O indivíduo desapareceu atrás de seu disfarce.

2. Segundo contraste: movimentação/estaticidade

          Os grupos de foliões tropicais movimentam-se em danças vertiginosas. Rodam as saias das baianas, giram as porta-bandeiras e os passistas. Tudo é vertigem.
          Já os mascarados venezianos caminham lentamente ou se deixam fotografar imóveis na ponte, na praça, como se fossem estátuas na paisagem. É quase um museu de cera do maravilhoso.

3. Terceiro contraste: quantidade/qualidade

          O carnaval carioca (baiano ou pernambucano, entre outros) é o instante amazônico da multidão. Uma escola de samba, rancho, bloco ou banda pode ter até seis mil pessoas. E os espectadores na avenida são os caudatários-afluentes do fluxo dionisíaco. O indivíduo e a multidão se confundem.
          Em Veneza predomina o indivíduo fazendo um solo ou monólogo com sua fantasia. O requinte das roupas e da maquiagem solicita uma detida averiguação por parte do espectador, como se estivesse examinando um exemplar da espécie e não a espécie toda.

4. Quarto contraste: alto/baixo

          Os personagens venezianos, embora cubram todo o corpo com requintadíssimas fantasias, concentram no rosto o máximo de expressão. Talvez aí, a vocação do retrato. E o rosto passivo, em repouso.
          Já as representações tropicais não só desnudam o corpo todo, expondo a fantasia da pele, mas exibem os peitos e bundas exuberantemente. É o louvor sobretudo do baixo-ventre, das partes ocultas o ano inteiro numa desrepressão rabelaisiana.

          E assim se poderia continuar essa análise contrastiva, opondo a ruidosa bateria das escolas de samba às delicadas músicas venezianas. Opondo até mesmo a utilização de poucas e harmônicas cores na palheta da fantasia italiana, à profusa mistura de cores tropicais alheias, às vezes, ao bom gosto e muito mais presas a um livre exercício do kitsch. Poder-se-ia falar também de um carnaval da riqueza versus um carnaval da pobreza? De um carnaval civilizado versus um carnaval primitivo?
          Curiosamente, os estudiosos dizem que o carnaval do Rio, a partir do século XX, passou a ser chamado de “veneziano”, e “civilizado”. Como aceitar isto, se acabamos de mostrar as antíteses entre eles ainda hoje?
          É preciso lembrar que o carnaval brasileiro até os fins do século XIX era extremamente violento. Ele vinha de uma tradição portuguesa — o entrudo, quando se jogava água suja (urina e fezes) nas pessoas. E embora o Brasil tenha amenizado essa barbárie festiva, convertendo o que se jogava em “limões cheios de perfume”, o entrudo foi proibido em 1853. A associação ao estilo veneziano de festas vem da adoção de corsos e carros alegóricos.
          Contudo, o carnaval de Veneza nem sempre foi tão civilizado. Os textos mais antigos sobre essa festa datam do século XI. E o abuso na utilização das máscaras para “mascarar” exatamente aqueles que seduziam e violentavam pessoas durante as festividades fez com que, em 1608, se proibissem as máscaras. Evidentemente um carnaval sem máscaras contraria o espírito catártico da celebração. Por isto, o carnaval de Veneza quase chegou a se extinguir no fim do século XIX, e, nos últimos anos, a prefeitura da cidade tem investido para que esta festa seja revivida.
          O carnaval veneziano é uma exceção dentro da própria Itália. Se formos a Viareggio assistiremos a uma celebração moderna, crítica e ruidosa. E em localidades como Schignano e Bagolino, as festividades se aproximam do que ocorre no Peru ou em qualquer aldeia brasileira. As figuras lembram animais selvagens com chifres e pêlo, remetendo para representações ancestrais do urso, ou ao mito do Hallequin e do rei Frotho, que comandavam uma horda selvagem que invadia a cidade durante o solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania) violentando as mulheres e torturando os machos vencidos.
          Quando as pessoas vão às ruas por três ou quatro dias hoje, não sabem que, em Veneza, o carnaval podia durar até seis meses, e que, no princípio do cristianismo, o carnaval (ou as “liberdades de dezembro”) iam até o princípio da quaresma.
          Carnaval sempre foi a festa das antíteses, daquilo que tecnicamente se chama de oxímoros: o morto-vivo, o velho-jovem, o sábio-estúpido, o homem-animal, a santa-prostituta, o rei-escravo, o homem-mulher, a mulher-homem, etc. É o espaço da fusão dos limites: a casa e a rua, a pobreza e a riqueza, a festa e a guerra, a vida e a morte.
          Por isto, àquelas antíteses apontadas inicialmente: verão/inverno, movimentação/estaticidade, quantidade/qualidade e alto/baixo poderíamos adicionar outras como ordem/desordem, considerando não só que existe um carnaval da ordem como existe um carnaval da desordem, um carnaval da paródia e um carnaval da paráfrase, um carnaval da beleza e um carnaval do grotesco, o carnaval do limpo e o carnaval do sujo, sendo que o carnaval, enquanto instituição é, a rigor, um grande esforço para organizar e administrar a desordem permitida.
          Festa cósmica e profundamente humana, Veneza e Rio são dois cenários de um só drama, onde o cômico e dramático resumem a perplexidade humana diante do eterno recomeço da morte e da vida.

Affonso Romano de Sant'anna
(Publicado originalmente no Jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, em 05 de fevereiro de 2005)

 

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