Dois carnavais: Rio e Veneza |
|
Há
vários carnavais dentro do carnaval. Inúmeros. Mas aqui me referirei
a dois tipos, quase opostos, embora complementares. O carnaval de Veneza
e o carnaval do Rio. Duas faces da mesma ritualização cósmica: a celebração
erótica da vida e o exorcismo do fantasma da morte. 1. Primeiro o contraste: verão/inverno Num,
os corpos tropicais estão praticamente nus. Expõem-se voluptuosamente
suando seus desejos. O Sol está latejando nas bocas, peitos e coxas.
É o carnaval da exibição narcísica do próprio corpo, onde a pele é exposta
como uma fantasia sedutora. 2. Segundo contraste: movimentação/estaticidade Os
grupos de foliões tropicais movimentam-se em danças vertiginosas. Rodam
as saias das baianas, giram as porta-bandeiras e os passistas. Tudo
é vertigem. 3. Terceiro contraste: quantidade/qualidade O
carnaval carioca (baiano ou pernambucano, entre outros) é o instante
amazônico da multidão. Uma escola de samba, rancho, bloco ou banda pode
ter até seis mil pessoas. E os espectadores na avenida são os caudatários-afluentes
do fluxo dionisíaco. O indivíduo e a multidão se confundem. 4. Quarto contraste: alto/baixo Os
personagens venezianos, embora cubram todo o corpo com requintadíssimas
fantasias, concentram no rosto o máximo de expressão. Talvez aí, a vocação
do retrato. E o rosto passivo, em repouso. E assim se poderia continuar essa análise contrastiva, opondo a ruidosa
bateria das escolas de samba às delicadas músicas venezianas. Opondo até
mesmo a utilização de poucas e harmônicas cores na palheta da fantasia
italiana, à profusa mistura de cores tropicais alheias, às vezes, ao bom
gosto e muito mais presas a um livre exercício do kitsch. Poder-se-ia
falar também de um carnaval da riqueza versus um carnaval da pobreza?
De um carnaval civilizado versus um carnaval primitivo?
Curiosamente, os estudiosos dizem que o carnaval do Rio, a partir do século XX, passou a ser chamado de “veneziano”, e “civilizado”. Como aceitar isto, se acabamos de mostrar as antíteses entre eles ainda hoje? É preciso lembrar que o carnaval brasileiro até os fins do século XIX era extremamente violento. Ele vinha de uma tradição portuguesa — o entrudo, quando se jogava água suja (urina e fezes) nas pessoas. E embora o Brasil tenha amenizado essa barbárie festiva, convertendo o que se jogava em “limões cheios de perfume”, o entrudo foi proibido em 1853. A associação ao estilo veneziano de festas vem da adoção de corsos e carros alegóricos. Contudo, o carnaval de Veneza nem sempre foi tão civilizado. Os textos mais antigos sobre essa festa datam do século XI. E o abuso na utilização das máscaras para “mascarar” exatamente aqueles que seduziam e violentavam pessoas durante as festividades fez com que, em 1608, se proibissem as máscaras. Evidentemente um carnaval sem máscaras contraria o espírito catártico da celebração. Por isto, o carnaval de Veneza quase chegou a se extinguir no fim do século XIX, e, nos últimos anos, a prefeitura da cidade tem investido para que esta festa seja revivida. O carnaval veneziano é uma exceção dentro da própria Itália. Se formos a Viareggio assistiremos a uma celebração moderna, crítica e ruidosa. E em localidades como Schignano e Bagolino, as festividades se aproximam do que ocorre no Peru ou em qualquer aldeia brasileira. As figuras lembram animais selvagens com chifres e pêlo, remetendo para representações ancestrais do urso, ou ao mito do Hallequin e do rei Frotho, que comandavam uma horda selvagem que invadia a cidade durante o solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania) violentando as mulheres e torturando os machos vencidos. Quando as pessoas vão às ruas por três ou quatro dias hoje, não sabem que, em Veneza, o carnaval podia durar até seis meses, e que, no princípio do cristianismo, o carnaval (ou as “liberdades de dezembro”) iam até o princípio da quaresma. Carnaval sempre foi a festa das antíteses, daquilo que tecnicamente se chama de oxímoros: o morto-vivo, o velho-jovem, o sábio-estúpido, o homem-animal, a santa-prostituta, o rei-escravo, o homem-mulher, a mulher-homem, etc. É o espaço da fusão dos limites: a casa e a rua, a pobreza e a riqueza, a festa e a guerra, a vida e a morte. Por isto, àquelas antíteses apontadas inicialmente: verão/inverno, movimentação/estaticidade, quantidade/qualidade e alto/baixo poderíamos adicionar outras como ordem/desordem, considerando não só que existe um carnaval da ordem como existe um carnaval da desordem, um carnaval da paródia e um carnaval da paráfrase, um carnaval da beleza e um carnaval do grotesco, o carnaval do limpo e o carnaval do sujo, sendo que o carnaval, enquanto instituição é, a rigor, um grande esforço para organizar e administrar a desordem permitida. Festa cósmica e profundamente humana, Veneza e Rio são dois cenários de um só drama, onde o cômico e dramático resumem a perplexidade humana diante do eterno recomeço da morte e da vida. |
|
Affonso
Romano de Sant'anna |
Artigos |