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Segundo
Eneida de Moraes, em sua pioneira obra sobre a história do carnaval
carioca, a prefeitura, na longínqua década de 10, alterou
a data do carnaval por recomendações médicas. Acreditava-se
que o inverno seria uma época mais saudável para a realização
de uma festa que aglomerava tanta gente. A polícia até que
tentou impedir que as pessoas festejassem no verão, mas não
conseguiu conter o povo. Na prática, aquele ano teve dois carnavais:
um em fevereiro, extra-oficial, e outro em julho, oficial.
Ao conhecer esta história, lembrei-me de Montesquieu,
que há muito tempo já dizia que não se deve mexer
nas festas populares. Este fato se apresentava como um exemplo irrefutável
de que hábitos e costumes enraizados na população
não se apagam por decretos.
Por estes dias, quando soube que a Liga Independente
das Escolas de Samba (Liesa) — a entidade que organiza os famosos
desfiles do principal grupo do carnaval carioca — proporá
que o carnaval, por questões financeiras para suas afiliadas, seja
realizado todo ano na primeira semana de março, lembrei-me novamente
de Montesquieu, assim como do fato relatado por Eneida.
Uma primeira pergunta torna-se inevitável:
são as escolas de samba que devem se adaptar ao mundo, ou o mundo
que precisa se adaptar às escolas? Talvez a busca por mais alguns
dias de temporada pré-carnavalesca, o que geraria mais receita
para as escolas, possa tornar irrelevante o calendário lunar, o
solstício de verão, a data da páscoa e tudo mais
que hoje atrapalha o lucro imediato, inclusive o coitado do Montesquieu...
Todavia, não podemos ignorar que o carnaval
é um período ritual. Mesmo aqueles que se opõem à
festa não podem ser indiferentes. O ritmo da vida muda. O trabalho
cede lugar ao lazer ou à ociosidade. Mesmo quem se enclausura num
retiro está alterando seu dia-a-dia, e é exatamente esta
mudança no quotidiano a essência do carnaval, independentemente
da forma que a pessoa escolhe para viver esta data: no bloco, no baile,
fantasiado, atrás do trio elétrico, viajando, na praia,
rezando, penitenciando-se, protestando contra o governo ou desfilando
em escola de samba.
Não são seus organizadores que decidem
se escola de samba e carnaval são coisas diferentes. Em primeiro
lugar, sem carnaval nem existiriam escolas de samba, tendo em vista que
estas são um processo de outras manifestações carnavalescas,
como grandes sociedades, blocos e ranchos. Mas, sinceramente, isso é
o que menos importa agora.
O mais importante é que, ao longo dos anos,
as pessoas se acostumaram a desfilar em escolas de samba como parte desta
alteração do quotidiano provocado pelo carnaval. Em outras
palavras, não é a Liesa quem vai extrair do imaginário
popular a relação entre escola de samba e carnaval.
Então, se está no imaginário
popular, as escolas de samba são apenas uma das múltiplas
formas de aproveitar o carnaval. É inútil buscar rupturas
com o carnaval de rua, tendo em vista que este também é
apenas uma forma particular.
São aspectos que correm paralelamente. É
significativa a visão da Igreja Católica. Se a visão
é anacrônica e atrapalha o espetáculo, sua perseguição
à associação entre imagens sagradas e profanas serve,
ao menos, para entender como o público comum, que não vive
o dia-a-dia das escolas de samba, encara a relação entre
as escolas e o carnaval. É um bom exemplo do imaginário
popular.
É certo que, por seus elementos, o desfile
carnavalesco pode ser realizado em qualquer época. Certamente isso
passa aos carnavalescos e dirigentes a falsa impressão de que a
solução é marcar uma semana fixa para o carnaval,
sempre em março. Não se preocupam em refletir sobre o impacto
que teria nas pessoas que comprariam fantasias ou ingressos nas arquibancadas.
O carnaval é a alma das escolas de samba. É
a proximidade da festa, tendo como ápice a mudança dos hábitos
corriqueiros, que fornece a motivação necessária
para as pessoas participarem dos desfiles.
Defender a idéia de que o desfile é
uma “ópera popular”, independentemente do carnaval,
é pensar no desfile desprovido de qualquer subjetividade, ignorando
sua representação simbólica para a população.
Outras questões carecem de respostas: E o carnaval
de rua? Seria junto com os desfiles das escolas de samba ou em sua data
real? E os desfiles dos grupos de acesso, que não são geridos
pela Liesa? Seriam no carnaval de verdade? Se forem, o sambódromo
estaria pronto faltando duas ou três semanas para o desfile principal?
E seria feriado nas novas datas de desfile? E o trânsito da cidade?
E quem trabalha nos novos dias de desfiles? Claro, talvez a proposta seja
mudar logo a data do carnaval, não apenas o dia dos desfiles do
Grupo Especial, de forma que teríamos apenas uma interrupção
na rotina de trabalho. Assim sendo, o feriado seria apenas no Rio. E como
ficariam as outras cidades e os outros estados?
A Liesa também vai convencer baianos, paulistas,
pernambucanos e outros brasileiros, que possuem carnavais conhecidos,
a também estabelecerem uma data fixa para o evento? Sinceramente,
o que o mundo tem a ver com as ambições financeiras das
escolas de samba cariocas?
Mais difícil ainda vai ser convencer os potenciais
turistas, que guardam dinheiro para brincar o carnaval, a ficarem em suas
casas num feriado prolongado e faltarem ao trabalho para assistirem aos
desfiles do Rio.
Quer saber, acho que fica mais fácil convencer
a lua que, após o solstício de verão, ela só
deve ficar cheia no final de abril... Diz para ela que é um pedido
da Liesa.
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