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Eu acho muito
importante que o samba procure resgatar sua memória. Acho a idéia de trazer
sambas antigos para a avenida é excelente, ainda mais ao completar vinte
anos de Sapucaí e vinte anos de LIESA, entidade que, mesmo cometendo alguns
erros, trouxe inúmeros benefícios para o desfile.
Mas acho que fazer as escolas desfilarem oficialmente com sambas antigos
é um sério golpe nas próprias escolas e no futuro do carnaval. Existem vários
fatores a serem questionados, mas o principal deles é a continuidade artística
dos desfiles. O processo evolutivo de criação do carnaval sofrerá uma grave
interrupção que abrirá um questionamento sobre o que pode acontecer a partir
do próximo ano.
Se a experiência for aprovada e os dirigentes resolverem repeti-la, qual
será o futuro das escolas ? Até quando teremos sambas "antológicos"
para repetir ? E porque duvidar dessa repetição ? Com o atual rumo das coisas,
nada mais é surpresa.
É uma questão histórica. Nunca houve um ano sem músicas novas no carnaval.
A atualidade da trilha sonora é essencial para refletir o momento artístico
e as novas tendências culturais. Resgatar sambas antigos é trazer de volta
uma estética ultrapassada que não serve mais aos atuais desfiles. Não foi
à toa que os sambas mudaram seu andamento, seu estilo de letra e melodia.
Eles mudaram para se adaptar a todo um modelo artístico que também mudou.
É a constante renovação que mantêm vivas as escolas de samba. Onde foram
para as marchinhas de tanto sucesso no passado ? Elas não se renovaram e
acabaram esquecidas. Hoje, fora da Sapucaí, o que se escuta no carnaval,
infelizmente, é o funk.
Não adianta reclamar dos sambas de hoje em dia e imaginar que esta é uma
discussão que se desprende do resto da festa. Para que as músicas atuais
façam sucesso é preciso repensar o modelo de escola de samba que se tem.
É preciso primeiro resgatar as camadas populares - o que, felizmente, algumas
escolas estão tentando fazer. É preciso criar enredos que permitam aos compositores
a criação de letras que tenham o que dizer e não viagens "maionésicas".
É preciso deixar de escolher sambas por amizade ou dinheiro. É preciso fazer
um CD mais bem produzido em todos os sentidos e divulgar este CD com maior
profissionalismo.
Resgatar sambas antigos é uma solução para encobrir a realidade, não para
resolver o problema. Estão querendo tapar o sol com a peneira ao invés de
resolver a questão de verdade, o que parece ser muito mais complicado. Todos
querem ver o povo cantando, com os sambas na ponta da língua. Todos querem
ver enredos bem pensados e criativos. Mas será que eles só podem existir
no passado? Será que a inventividade e o talento se esgotaram ? Ou será
que eles estão sendo cada vez mais "podados" por dirigentes que
não querem ou não conseguem enxergar a realidade?
As disputas de samba-enredo são de fundamental importância para a existência
das escolas. É neste momento que elas se afirmam como agremiações. No burburinho
das quadras a vida social e política ganha corpo quando se formam grupos
para defender uma ou outra composição. Ali existe uma integração entre os
diferentes setores, interligados pela vontade de cada um de desfilar com
o samba que julga melhor para a sua escola. É um exercício de democracia,
mesmo que ela não defina o vencedor, porque há debate, há comunhão entre
compositores, baianas, bateria, harmonia, velha-guarda,...
Acabar com essas disputas é acabar com a alma das escolas. É deixar os ensaios
sem motivação por quase todo o ano. Só em janeiro chegam os "estrangeiros"
que simplesmente se interessam pelo "show". O que fazer até lá?
Nenhum tipo de festival de samba de quadra vai substituir a adrenalina da
escolha de um samba enredo.
Outras questões importantes devem ser levadas em consideração. Muitas escolas
que hoje fazem parte do Grupo Especial não têm sambas antológicos para reeditar.
Será uma afronta fazê-las cantar sambas de escolas que hoje estão no Grupo
de Acesso. Uma afronta a elas mesmas e às escolas que não poderão reeditar
suas próprias obras. É quase um crime fazer isso, é praticamente acabar
com a identidade de uma escola. É transferir uma obra artística de um autor
para outro.
Carnaval é uma grande brincadeira, mas Martinho da Vila foi muito feliz
no samba que compôs para o desfile da Unidos do Mundo, onde dizia : "sei
que os sambistas desfilam não é só para se divertir". As escolas de
samba são representantes de uma cultura muito importante para a identidade
carioca e brasileira. Não se pode jogar valores que nortearam a história
dessas agremiações no lixo por conta de vaidades pessoais ou tentativas
equivocadas de trazer de volta emoção e alegria aos desfiles. Vamos repensar
o que há de errado no carnaval para atingir este objetivo.
Voltando ao que disse no início, acho saudável que se tente resgatar sambas
antológicos. Deixo aqui uma sugestão. Poderíamos criar uma escola que congregasse
componentes de todas as agremiações para encerrar o desfile das campeãs
numa grande apoteose do carnaval carioca. A Liga destinaria uma verba para
a confecção das alegorias e as fantasias seriam vendidas como as de qualquer
escola. Pode se fazer uma grande eleição popular através de jornais ou da
Internet para definir qual será o samba a ser cantado.
A bateria seria formada pelos diretores e melhores
ritimistas de cada uma
das agremiações e a cada ano um carnavalesco consagrado seria responsável
por projetar alegorias e fantasias. Os melhores intérpretes regravariam
o samba escolhido que entraria como faixa bônus no CD. Seria uma grande
festa de congraçamento do samba carioca que não mancharia os desfiles oficiais
e poderia se repetir a cada ano para encerrar a maior festa do mundo.
Ficam registrados o protesto e a sugestão.
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