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Mangueira foi melhor. Devo alertar: melhor na televisão. E na televisão
o desfile é outro. Perde-se a visão de conjunto, a empolgação (ou não) que
independe do foco das câmaras, o calor da arquibancada. E até muitas outras
coisas quando a cobertura é muito ruim, como foi a deste ano. Só um rematado
canastrão como Mário Cardoso pôde tirar meio ponto da comissão de frente
de Carlinhos de Jesus que mesmo roçando no limite da presepada circense,
convenceu. O samba da Mangueira era melhor. O enredo, embora conservador,
fazia mais sentido. O Mar Vermelho se abrindo na avenida foi um grande achado.
Dito isso, é preciso dizer que Laíla, diretor de Carnaval da Beija-Flor,
merecia ganhar. Aliás, há muito tempo. Se o título de Cidadão Samba ainda
fizesse algum sentido, seria de Laíla. Ele é uma enciclopédia viva das escolas
de samba. Sabe tudo. Foi diretor de Harmonia do Salgueiro nos bons tempos
de Fernando Pamplona. Mudou-se para a Beija-Flor com Joãosinho Trinta. Saiu.
Passou uns tempos na Grande Rio. Voltou para Nilópolis. Não para ser carnavalesco,
mas para ser diretor de Carnaval. Faz mais sentido. Não é figurinista, arquiteto,
museólogo. É um homem-samba. Samba-enredo.
Conversamos uma vez por duas horas em 1999. Laíla ri pouco. É duro. Mas
esbanja sabedoria nas frentes mais variadas. Mede passistas do joelho para
baixo. "Com a bunda todo mundo samba. Quero ver no pé". No teste
para novos integrantes da bateria, sem que ninguém veja, desafina antes
os instrumentos. Quem tocar sem se dar conta, dança. Não desenha, mas sabe
imaginar carros e, mais do que isso, conceber a idéia do desfile que quer
fazer. Por isso criou a tal comissão de carnavalescos. Encomenda a artistas
o que lhe vai pela cabeça.
Tem um cronômetro na cabeça capaz de medir a evolução de cada ala e a velocidade
de andamento dos carros alegóricos. Não canta, mas é afinadíssimo. Vê-lo
em operação na mesa de gravação do disco dos sambas-enredo é impressionante.
Ouviu pouco, às vezes nada, dos 14 sambas do ano. Mas pilha desafinações
dos puxadores. É implacável com os novatos. Grava dezenas de vezes, e separadamente,
cada trecho do samba, até ficar satisfeito. Para cada samba combina bases
rítimicas apropriadas. Ninguém jamais o acusou de favorecer a Beija-Flor
no disco.
Laíla faz o que acha mais certo, sem concessões. Fere muita gente, com certeza.
Não briga com os Abraão por bobagem, mas diz o que pensa. Até para amigos
do peito. Levou para Beija Flor um "compadre" do mundo do samba
– o mestre de bateria Odilon – com quem trocava receitas de peixe. Odilon
merece mesmo o título de mestre. Motorista de táxi, marcou época à frente
da bateria da União da Ilha. Criou um estilo próprio. Foi imitado. Sabe
ensinar. Toca todos os instrumentos e como poucos tem o dom de harmanizá-los
com criatividade. Nos últimos tempos formou a bateria da Grande Rio (não
está mais lá) que este ano tirou quatro notas 10. Logo que foi para a Beija-Flor,
Laíla o chamou. A amizade só resistiu um ano. Um desentendimento insolúvel
expeliu Odilon.
Diz-se que a Beija-Flor ganhou porque lulou. Aliás, desbragadamente. Pode
ser. Mas lulou ainda no escuro. Quando escolheu o enredo, Lula ainda estava
naquela situação em que as pesquisas indicavam sua derrota no segundo turno,
primeiro para Roseana Sarney, depois para Ciro Gomes. O enredo é demagógico?
É. Infantiliza a luta de classes? Também. Viaja por fabulações às vezes
despropositadas? Sem dúvida. Mas, diga-se de passagem, foi no enredo que
a Beija-Flor perdeu décimos.
Vascaíno doente, Laíla encasquetava um enredo, digamos, "social"
há algum tempo. Teve de adaptá-lo ao decoro religioso, coma retirada do
Cristo armado com um trezoitão. Mas foi em frente. A Beija-Flor de Laíla
não é a de Joãosinho Trinta. Na de Joãosinho, Nilópolis prestava-se ao belo
papel de encenar seus fabulosos e resplandescentes delírios. Tio Laíla (como
o chamou a garota de 14 anos, nova madrinha de bateria), grato ao Pai Oxalá,
ao Pai Xangô, parece mais com a Nilópolis que pulsa em torno da escola.
A Nilópolis de uma digníssima velha guarda – isso mesmo, a Beija Flor foi
fundada em 1953 – de Soninha Capeta, de Selminha Sorriso. Do samba.
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