O lugar da crônica carnavalesca

 

           Passado o carnaval, ocorre-nos que ainda não se escreveu o devido necrológio do antigo cronista carnavalesco. É que parece ter perdido sua função na imprensa aquele tipo de repórter-comentarista que observava os bastidores do chamado tríduo momesco, comunicando esporadicamente ao grande público seus resultados. São vários os grandes nomes de referência . Vagalume, no começo do século 20; depois, Jota Efegê, Eneida e outros que escreviam em jornais e em livros, mas também os cronistas de menor repercussão, tanto no Rio de Janeiro quanto em outras capitais.
           O antigo cronista ainda olhava o carnaval como aquilo que o pesquisador Édison Carneiro chamava de "folguedo tradicional", resultante da fusão da música popular urbana, do samba-de-roda da Bahia e dos ranchos de Reis. Junto com essa morfologia mais simples havia toda a movimentação dos mais ricos: os corsos, os bailes nos clubes, as inspirações européias para as alegorias dos ranchos etc. Mas o núcleo popular da festa mantinha uma reserva de singularidade cultural das classes subalternas, dos negros em especial.
           Disso foi também observadora e cronista no Diário de Notícias a grande poeta Cecília Meireles: "Dentro do carnaval carioca, inegavelmente licencioso e grosseiro, como em toda parte, na expansão das pessoas habitualmente civilizadas o carnaval dos negros guarda um aspecto único de respeito, elegância e, digamos mesmo, distinção artística espantosa. O que eles chamam orgia, palavra tão freqüente nas canções de carnaval dos últimos tempos, é a longa passeata com cantorias e luzes, estandartes e feras de papelão, do subúrbio ao centro da cidade, horas e horas, com descanso nas rodas de samba, copos de cerveja ou refresco e um extenuamento completo, pela madrugada, estendidos nas calçadas entre brilhos de sedas e colares, à espera da condução que os transporte à casa".
           Apenas uma longa corda (daí a palavra "cordão" para designar as passeatas dançantes) costumava separar os foliões dos meros observadores. A convergência entre os bairros e as classes sociais em que se dividia a cidade era mais territorial ou física do que simbólica. Entre eles, oscilava o cronista, podendo ocupar uma ou outra posição, como mediador privilegiado.

Efeitos especiais

           Bem, tudo isso mudou, embora em certos lugares nem tanto quanto se possa pensar. Em Salvador, no Recife, multidões incalculáveis e radicalmente alegres fazem as ruas estremecerem com seus passos. Os cordões são zelosamente guardados, mas sempre entusiasticamente assediados pelos foliões. Em dezenas de pequenas cidades, a festa mantém suas singularidades transculturais.
           No Rio de Janeiro, entretanto, é patente a grande mudança. Não poderia deixar de ser. Afinal, para a realização do megaespetáculo em que se transformou o desfile das escolas de samba, exibem-se com suas fantasias cerca de 65 mil pessoas e só na apresentação das escolas do Grupo Especial. Este é o resultado de uma organização e uma economia que se mantêm ativos durante todo o ano, gerando empregos para algumas centenas de milhares de pessoas. Carnaval, como dizia o editorial de O Globo em pleno domingo da folia, "é coisa séria".            Seriedade, como se percebe, é algo que aí se mede monetariamente, algo que se depreende dos supostos 8 milhões de dólares que cerca de cem mil turistas deixam na cidade.
           Evidentemente, quando uma festa envolve tanto dinheiro falam mais alto os interesses consolidados das indústrias, do turismo, dos patrocinadores e da televisão. Sem comando sobre o espetáculo, o povo assiste ao desfile da mídia na avenida. Uma foto na primeira página de O Globo, no sábado de carnaval, dava a medida simbólica da mutação: a estrelíssima Luana Piovani ensaiava passos de samba sob as vistas admirativas de populares. Em nome da seriedade monetária, as moças podem agora desfilar completamente nuas, sem sombra de tapa-sexo. 
           No que diz respeito às alegorias, é bastante provável que o norte-americano Steven Spielberg possa vir a ser um dia chamado como carnavalesco. Efeitos eletrônicos especiais, homens-voadores, cobras-robôs, profissionais de circo e outros substituem gradativamente os tradicionais sambistas. Na avenida, o carnaval é um mix de Hollywood e TV Globo.

Vigor comunitário

           Nesse quadro social em que o dinheiro, a tecnologia e a mídia já controlam por inteiro o núcleo espetacular da festa, não poderia mais sustentar-se a visão mediadora do cronista carnavalesco, especialmente já que não se sabe mais o que é "carnaval" em tudo isso. A mídia por inteiro encarrega-se de reportar o acontecimento, tratado ora como uma espécie de vertigem global, ora como orgia em sua mais rasteira dimensão sexual, enquanto na academia se produzirão teses sobre a mutação. 
           À margem desse núcleo poderoso, entretanto, abre-se um espaço de observação para o revigoramento dos blocos, que retomam com alegria a tradição popular. É a clara demonstração de que existe uma linha de força transtemporal, resistente à lei de bronze da economia, no "adeus à carne" pré-Quaresma, implícito no rito de calendário da celebração carnavalesca. Talvez se possa chamar isto de "espírito comum", nome dado pela professora Raquel Paiva (cf. O Espírito Comum, comunidade, mídia e globalismo, Ed. Vozes) à persistência do vigor comunitário na sociedade contemporânea, inclusive no âmbito da mídia. Um novo tipo de cronista carnavalesco, vinculado ao jornalismo comunitário, poderá surgir daí. 

 
Muniz Sodré
(Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ)

 

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