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Capítulo 4
Uma escola diferente
Escolas do morro do Salgueiro
se unem e revolucionam o carnaval com o negro.
O resultado do carnaval de 1953 foi a redenção portelense. Finalmente,
a águia conseguiu vencer a rival de Madureira, obtendo todas as notas
máximas. O Império Serrano ficou em segundo, a Mangueira em terceiro,
a Aprendizes de Lucas em quarto e a Unidos da Tijuca em quinto. Para as
três agremiações do Morro do Salgueiro foi uma catástrofe. A Unidos do
Salgueiro chegou em sexto, a Depois Eu Digo em décimo-terceiro e Azul
e Branco em vigésimo-primeiro lugar!
Sábado, depois
de anunciada a classificação geral, o compositor Geraldo Babão desceu
o morro cantando um samba que fizera no ano anterior, pregando a união
das forças salgueirenses. Haroldo Costa, em seu Salgueiro, Academia
de Samba, relembra a letra:
Vamos embalançar a roseira
dar um susto na Portela, no Império, na Mangueira
Se houver opinião, o Salgueiro apresenta
Uma só união
Vamos apresentar um ritmo de bateria
pro povo nos classificar em bacharel
bacharel em harmonia
Na roda de gente bamba
Freqüentadores do samba
Vão conhecer o Salgueiro
Como primeiro em melodia
A cidade exclamará, em voz alta
Chegou, chegou a Academia! |
A premonição de Babão sugeria o nome da escola que estava por surgir.
As três baterias uniram-se e foram arrastando o povo em direção à Praça
Saens Pena, somando cores e corações de um mesmo lugar, da mesma comunidade.
A fusão das três agremiações parecia fato consumado, mas as exigências
de Calça Larga, presidente da Unidos do Salgueiro, começaram a complicar
as coisas.
Após sucessivas
reuniões na Confederação das Escolas de Samba, no Centro, ficou acertada
a fusão entre a Azul e Branco e a Depois Eu Digo, concretizada dia 3 de
abril daquele ano. Foram apresentadas várias sugestões de nome. Mário
José da Silva, o Totico, propôs Academia do Salgueiro; alguém sugeriu
Catedráticos do Salgueiro; o compositor Noel Rosa de Oliveira pediu a
palavra e foi objetivo: "Por que não Acadêmicos do Salgueiro?".
A proposta foi
aprovada na hora. Francisco Assis Coelho, o Gaúcho, sugeriu que a nova
escola adotasse o vermelho e branco, pois não havia nenhuma com essas
cores. Aprovado também. A primeira diretoria foi constituída com Paulino
de Oliveira na presidência, Olímpio Correia da Silva, o Mané Macaco, na
vice, e Pedro Ceciliano, o Peru, na tesouraria.
Calça Larga e os
sambistas da Unidos do Salgueiro mantiveram-se arredios e desceram no
carnaval de 1954 para disputar contra a vizinha. Em seu primeiro desfile,
a Acadêmicos do Salgueiro ficou em terceiro lugar, chegando na frente
da Portela, e atrás do Império Serrano e da Mangueira, vencedora daquele
carnaval. A colocação foi muito festejada no morro. Primeiro, porque a
vermelho e branco estreou furando o bloqueio das três grandes; em segundo,
porque deu um vareio na Unidos do Salgueiro, que chegou em sétimo lugar.
Ao contrário do
que acontecera com o Império Serrano, a luta salgueirense em busca de
um título seria bem mais árdua. Nos carnavais de 1955 e 1956, vencidos
pelo Império Serrano, 1957 e 1958, pela Portela, a vermelho e branco chegou
em quarto lugar. Em 1959, no tri da águia, o Salgueiro conseguiu o vice-campeonato.
Em 1960, a Portela foi tetra e a vermelho e branco ficou em terceiro.
Em 196 1, a Mangueira interrompeu a série de vitórias da azul e branco
e o Salgueiro chegou logo atrás, em segundo. Em 1962, deu Portela novamente,
e mais uma vez o contingente vermelho e branco sentiu a vitória escapar
por entre os dedos, ficando em terceiro. Parecia coisa feita, praga de
mãe, urucubaca. Era muito azar para uma escola só.
Ao mesmo tempo
em que perseguia a vitória, a Acadêmicos do Salgueiro ia se transformando
em verdadeira academia, sob a direção do competente Nelson de Andrade,
presidente inovador. Ele percebeu que o desfile das escolas de samba,
cada vez mais despertando o interesse do público e da mídia, precisava
de novos contornos. Para dar essa roupagem vanguardista à vermelho e branco
tijucana, convidou um talentoso professor da Escola de Belas Artes, que
se revelava para o carnaval carioca assinando a decoração dos bailes do
Teatro Municipal.
Era o cenógrafo
Fernando Pamplona, que ficou assustado com o convite, feito em 1958. Pediu
tempo para pensar. Ao dar a resposta, foi intransigente: aceitaria, desde
que a escola montasse a equipe sugerida por ele. Manteria o casal Dirceu
e Marie Louise Nery, responsável pelos últimos desfiles, além de trazer
excelente figurinista que despontava na época, Arlindo Rodrigues, e criativo
aderecista e desenhista, Nilton Sá, também da Belas Artes. O presidente
topou.
Em 1959, o Salgueiro
começou a dar uma guinada na história dos desfiles, apresentando temas
que mostravam a participação do negro na vida nacional. Naquele ano exibiu
o audacioso Quilombo dos Palmares. No ano seguinte, mergulhou nas
cidades históricas de Minas, com Vida e obra do Aleijadinho. Em
1962 voltou ao cordão umbilical de nossa História, remontando o Descobrimento
do Brasil. A comunidade salgueirense amargava a injustiça dos resultados
e quase sempre retornava da apuração cabisbaixa e revoltada. A vitória
estava sempre próxima, mas parecia inatingível.
Em maio de 1962,
Pamplona viajou à Alemanha desfrutando prêmio concedido pelo Museu de
Arte Moderna, graças aos cenários criados para o balé Romeu e Julieta,
no Teatro Municipal. Dias antes da viagem, encontrou-se com Arlindo Rodrigues
e este lhe pediu opinião sobre um enredo em que estava pensando, a vida
de uma escrava que vivera em Minas e se chamava Chica da Silva. Pamplona
confessou que jamais ouvira falar de tal personagem.
Nelson de Andrade
afirma que pensara antes em Chica da Silva, chegando a oferecer o tema
A Portela quando de sua passagem pela azul e branco. O enredo só não foi
feito porque houve resistência dos integrantes da comissão de carnaval.
Segundo Arlindo, a idéia de fazer Chica da, Silva no Salgueiro surgiu
numa visita A figurinista Kalma Murtinho, que tinha loja de artesanato
brasileiro, em Copacabana, com o nome da escrava. Kalma deu as primeiras
informações ao carnavalesco, que passou a pesquisar a vida da primeira
mulher que viraria enredo de escola de samba.
Quando retornou
da Europa no fim do ano, Pamplona encontrou o Salgueiro fervendo na disputa
do samba-enredo, com duas composições na finalíssima. Uma assinada por
Bala e uma revelação, um menino que fazia parte da ala de compositores,
chamado Luís Fernando Ribeiro do Carmo, o Laíla. A outra era de Noel Rosa
de Oliveira e Anescarzinho. Parada duríssima. Conta Haroldo Costa que,
numa noite, Arlindo convidou um grupo de pessoas para ir à sua casa, perto
da Praça Saens Pena, Para ouvir e decidir qual seria o samba. Entre elas
estavam o então presidente Osmar Valença e sua mulher Isabel, a coreógrafa
Tatiana Leskova e Fernando Pamplona. Foram feitas três votações e todas
terminaram empatadas.
Arlindo, então,
pediu que Pamplona escolhesse o de sua preferência e o resultado seria
acatado pelo grupo. A principio, o cenógrafo recusou. Depois concordou,
desde que tivesse a oportunidade de ouvir os dois sambas na quadra. Como
não havia mais tempo, foi convocada uma disputa para a noite seguinte.
Chovia muito, mas mesmo assim a quadra estava repleta. Sob um guarda-chuva
emprestado pelo compositor Djalma Sabiá e uma garrafa de branquinha na
outra mão, Pamplona ouviu os dois sambas cantados pelas pastoras, das
22h a meia-noite e meia.
Em seguida, desceram
todos para a Praça Saens Pena e cercaram o bar onde Pamplona se reunira
com Arlindo Rodrigues, Osmar Valença e Fábio Melo (relações públicas da
escola). Todos ansiosos para saber a decisão. Pamplona colocou o resultado
num envelope lacrado, entregou-o a Arlindo e disse que só poderia ser
aberto dois dias depois, quando retomasse à Europa.
No dia 3 de janeiro
de 1963, O governador Carlos Lacerda criou a Secretaria de Turismo e Superintendência
do IV Centenário da Cidade. Para o posto foi nomeado Vitor Bouças, que
transferiu o desfile para a. Avenida Presidente Vargas, no trecho entre
a Avenida Rio Branco e a Rua Regente Feijó, ficando a concentração na
Praça Pio X, atrás da Candelária.
O desfile estava
meio momo até o momento em que o Salgueiro começou a despontar na avenida.
Passavam poucos minutos das cinco da manhã. O sol dava os primeiros tons
laranjas, recortando a silhueta da igreja. Era um mar vermelho e branco
que, lentamente, ia preenchendo o espaço da avenida. O samba de Noel Rosa
de Oliveira e Anescarzinho, consagrado no envelope aberto por Arlindo,
saia da voz das pastoras para o coração do público, que se emocionava.
Apesar
de não possuir grande beleza
Chica da Silva
surgiu no seio
da mais alta nobreza
O contratador
João Fernandes de Oliveira
a comprou
para ser a sua companheira
E a mulata que era escrava
sentiu forte transformação
trocando o gemido da senzala
Pela fidalguia do salão |
O próprio Noel Rosa de Oliveira puxava o samba. Com 200 homens, a bateria
sacudia o povo das arquibancadas. Cerca de 2.300 componentes evoluíam
com graça e emoção. O Salgueiro investira 40 milhões e 200 mil cruzeiros
naquele desfile. Só a fantasia de Chica da Silva, usada por Isabel Valença,
custara 1 milhão e 300 mil. A peruca, criação de Paulo Carias, media um
metro e dez de altura, ornada de pérolas. A roupa tinha uma cauda de sete
metros de comprimento e anáguas com armação de aço, quando o normal seria
arame.
Chica seria representada
pela atriz Zélia Hoffman, famosa vencedora de concursos de fantasias do
Teatro Municipal. Mas, ao ver o figurino, desistiu, optando por fantasia
mais leve. Osmar tinha pensado na atriz porque sua mulher, Isabel, primeiro
destaque da escola, tinha feito obrigação para Iansã e Omulu, não podendo
sair no carnaval. Devido à insistência de Arlindo, Isabel consultou seu
pai-de-santo e este permitiu que fizesse nova obrigação. Foi assim que
Isabel passou a ser conhecida como Chica da Silva.
Outro destaque
do desfile foi a Ala dos Importantes, que representava 12 pares de nobres
dançando polca em ritmo de samba, com coreografia de Mercedes Batista.
Não faltou quem acusasse Arlindo e Mercedes de estarem violentando o samba.
O povo, no entanto, aplaudia, delirava, sacudia as arquibancadas ao som
da bateria comandada por Tião da Alda. O Salgueiro nunca estivera tão
perto de um título.
Dia 1° de março,
aniversário da cidade, a apuração apontou o Salgueiro como campeão, com
95 pontos, oito à frente da Mangueira, em segundo lugar. Ao contrário
do que acontecera há 10 anos, quando desceu para protestar e formar nova
escola, o Morro do Salgueiro agora descia para festejar, finalmente. A
Praça Saens Pena foi pequena para conter tanta alegria.
O carnaval carioca
ganhava novo charme. Agora, além da força da Portela, da Mangueira e do
Império Serrano, tinha uma escola que não era melhor, nem pior. Apenas
diferente.
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