A História e as histórias das Escolas de Samba

Por Cláudio Vieira

 
 

Capítulo 4

Uma escola diferente

Escolas do morro do Salgueiro se unem e revolucionam o carnaval com o negro.

          O resultado do carnaval de 1953 foi a redenção portelense. Finalmente, a águia conseguiu vencer a rival de Madureira, obtendo todas as notas máximas. O Império Serrano ficou em segundo, a Mangueira em terceiro, a Aprendizes de Lucas em quarto e a Unidos da Tijuca em quinto. Para as três agremiações do Morro do Salgueiro foi uma catástrofe. A Unidos do Salgueiro chegou em sexto, a Depois Eu Digo em décimo-terceiro e Azul e Branco em vigésimo-primeiro lugar!
          Sábado, depois de anunciada a classificação geral, o compositor Geraldo Babão desceu o morro cantando um samba que fizera no ano anterior, pregando a união das forças salgueirenses. Haroldo Costa, em seu Salgueiro, Academia de Samba, relembra a letra:

Vamos embalançar a roseira
dar um susto na Portela, no Império, na Mangueira
Se houver opinião, o Salgueiro apresenta
Uma só união
Vamos apresentar um ritmo de bateria
pro povo nos classificar em bacharel
bacharel em harmonia
Na roda de gente bamba
Freqüentadores do samba
Vão conhecer o Salgueiro
Como primeiro em melodia
A cidade exclamará, em voz alta
Chegou, chegou a Academia!

          A premonição de Babão sugeria o nome da escola que estava por surgir. As três baterias uniram-se e foram arrastando o povo em direção à Praça Saens Pena, somando cores e corações de um mesmo lugar, da mesma comunidade. A fusão das três agremiações parecia fato consumado, mas as exigências de Calça Larga, presidente da Unidos do Salgueiro, começaram a complicar as coisas.
          Após sucessivas reuniões na Confederação das Escolas de Samba, no Centro, ficou acertada a fusão entre a Azul e Branco e a Depois Eu Digo, concretizada dia 3 de abril daquele ano. Foram apresentadas várias sugestões de nome. Mário José da Silva, o Totico, propôs Academia do Salgueiro; alguém sugeriu Catedráticos do Salgueiro; o compositor Noel Rosa de Oliveira pediu a palavra e foi objetivo: "Por que não Acadêmicos do Salgueiro?".
          A proposta foi aprovada na hora. Francisco Assis Coelho, o Gaúcho, sugeriu que a nova escola adotasse o vermelho e branco, pois não havia nenhuma com essas cores. Aprovado também. A primeira diretoria foi constituída com Paulino de Oliveira na presidência, Olímpio Correia da Silva, o Mané Macaco, na vice, e Pedro Ceciliano, o Peru, na tesouraria.
          Calça Larga e os sambistas da Unidos do Salgueiro mantiveram-se arredios e desceram no carnaval de 1954 para disputar contra a vizinha. Em seu primeiro desfile, a Acadêmicos do Salgueiro ficou em terceiro lugar, chegando na frente da Portela, e atrás do Império Serrano e da Mangueira, vencedora daquele carnaval. A colocação foi muito festejada no morro. Primeiro, porque a vermelho e branco estreou furando o bloqueio das três grandes; em segundo, porque deu um vareio na Unidos do Salgueiro, que chegou em sétimo lugar.
          Ao contrário do que acontecera com o Império Serrano, a luta salgueirense em busca de um título seria bem mais árdua. Nos carnavais de 1955 e 1956, vencidos pelo Império Serrano, 1957 e 1958, pela Portela, a vermelho e branco chegou em quarto lugar. Em 1959, no tri da águia, o Salgueiro conseguiu o vice-campeonato. Em 1960, a Portela foi tetra e a vermelho e branco ficou em terceiro. Em 196 1, a Mangueira interrompeu a série de vitórias da azul e branco e o Salgueiro chegou logo atrás, em segundo. Em 1962, deu Portela novamente, e mais uma vez o contingente vermelho e branco sentiu a vitória escapar por entre os dedos, ficando em terceiro. Parecia coisa feita, praga de mãe, urucubaca. Era muito azar para uma escola só.
          Ao mesmo tempo em que perseguia a vitória, a Acadêmicos do Salgueiro ia se transformando em verdadeira academia, sob a direção do competente Nelson de Andrade, presidente inovador. Ele percebeu que o desfile das escolas de samba, cada vez mais despertando o interesse do público e da mídia, precisava de novos contornos. Para dar essa roupagem vanguardista à vermelho e branco tijucana, convidou um talentoso professor da Escola de Belas Artes, que se revelava para o carnaval carioca assinando a decoração dos bailes do Teatro Municipal.
          Era o cenógrafo Fernando Pamplona, que ficou assustado com o convite, feito em 1958. Pediu tempo para pensar. Ao dar a resposta, foi intransigente: aceitaria, desde que a escola montasse a equipe sugerida por ele. Manteria o casal Dirceu e Marie Louise Nery, responsável pelos últimos desfiles, além de trazer excelente figurinista que despontava na época, Arlindo Rodrigues, e criativo aderecista e desenhista, Nilton Sá, também da Belas Artes. O presidente topou.
          Em 1959, o Salgueiro começou a dar uma guinada na história dos desfiles, apresentando temas que mostravam a participação do negro na vida nacional. Naquele ano exibiu o audacioso Quilombo dos Palmares. No ano seguinte, mergulhou nas cidades históricas de Minas, com Vida e obra do Aleijadinho. Em 1962 voltou ao cordão umbilical de nossa História, remontando o Descobrimento do Brasil. A comunidade salgueirense amargava a injustiça dos resultados e quase sempre retornava da apuração cabisbaixa e revoltada. A vitória estava sempre próxima, mas parecia inatingível.
          Em maio de 1962, Pamplona viajou à Alemanha desfrutando prêmio concedido pelo Museu de Arte Moderna, graças aos cenários criados para o balé Romeu e Julieta, no Teatro Municipal. Dias antes da viagem, encontrou-se com Arlindo Rodrigues e este lhe pediu opinião sobre um enredo em que estava pensando, a vida de uma escrava que vivera em Minas e se chamava Chica da Silva. Pamplona confessou que jamais ouvira falar de tal personagem.
          Nelson de Andrade afirma que pensara antes em Chica da Silva, chegando a oferecer o tema A Portela quando de sua passagem pela azul e branco. O enredo só não foi feito porque houve resistência dos integrantes da comissão de carnaval. Segundo Arlindo, a idéia de fazer Chica da, Silva no Salgueiro surgiu numa visita A figurinista Kalma Murtinho, que tinha loja de artesanato brasileiro, em Copacabana, com o nome da escrava. Kalma deu as primeiras informações ao carnavalesco, que passou a pesquisar a vida da primeira mulher que viraria enredo de escola de samba.
          Quando retornou da Europa no fim do ano, Pamplona encontrou o Salgueiro fervendo na disputa do samba-enredo, com duas composições na finalíssima. Uma assinada por Bala e uma revelação, um menino que fazia parte da ala de compositores, chamado Luís Fernando Ribeiro do Carmo, o Laíla. A outra era de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho. Parada duríssima. Conta Haroldo Costa que, numa noite, Arlindo convidou um grupo de pessoas para ir à sua casa, perto da Praça Saens Pena, Para ouvir e decidir qual seria o samba. Entre elas estavam o então presidente Osmar Valença e sua mulher Isabel, a coreógrafa Tatiana Leskova e Fernando Pamplona. Foram feitas três votações e todas terminaram empatadas.
          Arlindo, então, pediu que Pamplona escolhesse o de sua preferência e o resultado seria acatado pelo grupo. A principio, o cenógrafo recusou. Depois concordou, desde que tivesse a oportunidade de ouvir os dois sambas na quadra. Como não havia mais tempo, foi convocada uma disputa para a noite seguinte. Chovia muito, mas mesmo assim a quadra estava repleta. Sob um guarda-chuva emprestado pelo compositor Djalma Sabiá e uma garrafa de branquinha na outra mão, Pamplona ouviu os dois sambas cantados pelas pastoras, das 22h a meia-noite e meia.
          Em seguida, desceram todos para a Praça Saens Pena e cercaram o bar onde Pamplona se reunira com Arlindo Rodrigues, Osmar Valença e Fábio Melo (relações públicas da escola). Todos ansiosos para saber a decisão. Pamplona colocou o resultado num envelope lacrado, entregou-o a Arlindo e disse que só poderia ser aberto dois dias depois, quando retomasse à Europa.
          No dia 3 de janeiro de 1963, O governador Carlos Lacerda criou a Secretaria de Turismo e Superintendência do IV Centenário da Cidade. Para o posto foi nomeado Vitor Bouças, que transferiu o desfile para a. Avenida Presidente Vargas, no trecho entre a Avenida Rio Branco e a Rua Regente Feijó, ficando a concentração na Praça Pio X, atrás da Candelária.
          O desfile estava meio momo até o momento em que o Salgueiro começou a despontar na avenida. Passavam poucos minutos das cinco da manhã. O sol dava os primeiros tons laranjas, recortando a silhueta da igreja. Era um mar vermelho e branco que, lentamente, ia preenchendo o espaço da avenida. O samba de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho, consagrado no envelope aberto por Arlindo, saia da voz das pastoras para o coração do público, que se emocionava.

Apesar
de não possuir grande beleza
Chica da Silva
surgiu no seio
da mais alta nobreza
O contratador
João Fernandes de Oliveira
a comprou
para ser a sua companheira
E a mulata que era escrava
sentiu forte transformação
trocando o gemido da senzala
Pela fidalguia do salão

          O próprio Noel Rosa de Oliveira puxava o samba. Com 200 homens, a bateria sacudia o povo das arquibancadas. Cerca de 2.300 componentes evoluíam com graça e emoção. O Salgueiro investira 40 milhões e 200 mil cruzeiros naquele desfile. Só a fantasia de Chica da Silva, usada por Isabel Valença, custara 1 milhão e 300 mil. A peruca, criação de Paulo Carias, media um metro e dez de altura, ornada de pérolas. A roupa tinha uma cauda de sete metros de comprimento e anáguas com armação de aço, quando o normal seria arame.
          Chica seria representada pela atriz Zélia Hoffman, famosa vencedora de concursos de fantasias do Teatro Municipal. Mas, ao ver o figurino, desistiu, optando por fantasia mais leve. Osmar tinha pensado na atriz porque sua mulher, Isabel, primeiro destaque da escola, tinha feito obrigação para Iansã e Omulu, não podendo sair no carnaval. Devido à insistência de Arlindo, Isabel consultou seu pai-de-santo e este permitiu que fizesse nova obrigação. Foi assim que Isabel passou a ser conhecida como Chica da Silva.
          Outro destaque do desfile foi a Ala dos Importantes, que representava 12 pares de nobres dançando polca em ritmo de samba, com coreografia de Mercedes Batista. Não faltou quem acusasse Arlindo e Mercedes de estarem violentando o samba. O povo, no entanto, aplaudia, delirava, sacudia as arquibancadas ao som da bateria comandada por Tião da Alda. O Salgueiro nunca estivera tão perto de um título.
          Dia 1° de março, aniversário da cidade, a apuração apontou o Salgueiro como campeão, com 95 pontos, oito à frente da Mangueira, em segundo lugar. Ao contrário do que acontecera há 10 anos, quando desceu para protestar e formar nova escola, o Morro do Salgueiro agora descia para festejar, finalmente. A Praça Saens Pena foi pequena para conter tanta alegria.
          O carnaval carioca ganhava novo charme. Agora, além da força da Portela, da Mangueira e do Império Serrano, tinha uma escola que não era melhor, nem pior. Apenas diferente.