A História e as histórias das Escolas de Samba

Por Cláudio Vieira

 
 

Capítulo 3

O encontro dos mestres

O samba avança para o subúrbio pela linha do trem e o Império surge para abalar a Portela

          Nas décadas de 30 e 40, o samba cresce na direção dos trilhos, invadindo os subúrbios do Rio de Janeiro. As velhas composições da Central do Brasil se arrastam, atrasam e irritam os passageiros. Menos os do trem das seis e quatro (18hO4). Diariamente, quando deixavam o trabalho, tinham encontro com o samba. Quanto mais demorado o retomo para casa, melhor. Era oportunidade para encontrar compositores das escolas que se espalhavam ao longo da ferrovia.
          O batuque começava na estação Francisco Sá, junto à Praça da Bandeira, e só terminava na Pavuna. As marmitas serviam para o tamborilar mais leve, enquanto os surdos de marcação eram improvisados nos bancos.
          Um dos freqüentadores assíduos do trem das seis e quatro era o aprendiz Olivério Ferreira, que trabalhava numa fábrica em Del Castilho. Tinha apenas 13 anos e já' se fascinava com as notícias que saiam no jornal sobre um tal Cartola, que fazia sambas muito bonitos em Mangueira. Olivério não sabia explicar os motivos, mas sentia no fundo do peito que nascia carinho todo especial pela Estação Primeira, onde jamais colocara os pés. Tudo por causa do tal Cartola. Que sambas ele fazia! E alguns já eram cantados no trem.
          Olivério nasceu no Hospital do Estácio, na terra de Ismael. Foi morar com os pais - o sitiante Olívio Ferreira e a doméstica Nair de Oliveira - em Éden. Depois mudaram-se para Paracambi, Juiz de Fora e retomaram ao Rio, fixando-se em Rocha Miranda. Pertinho da União de Rocha Miranda, onde o garoto passou a freqüentar os ensaios e não demorou a conseguir vaga na bateria, misturando-se aos tocadores de tamborim.
          Por isso, quando entrava no trem das seis e quatro fazia pose ao empunhar a marmita, como se fosse tamborim de verdade. Enturmou-se com os compositores de Madureira, Terra Nova, Honório Gurgel e por aí afora. Cada um tinha sua escola de samba e trazia para o balanço da composição o talento dos poetas de suas comunidades.
          O menino, como muitos da sua idade, cresceu aprendendo com os mais velhos. De tanto colocar apelidos nos colegas da fábrica, um dia ganhou o troco. Por quem chamava de Macumba, foi chamado de Xangô. O apelido pegou e Xangô não pôde reclamar. Quando foi levado à Portela por seus professores da União de Rocha Miranda, já chegou com o rótulo. O apresentaram a Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela. Ainda adolescente, Xangô começava o mestrado.
          Atento, acompanhava todos os passos de Paulo, procurando aprender os segredos da liderança e da improvisação de versos. Fez os seus.

Já vem rompendo o dia
Na Terra surge a aurora
E a moçada do samba
Ainda não bebeu nada até agora
Já vieram me chamar
Para me avisar
Que assim não dá para continuar.

          Desfilou na Ala dos Malandros e já estava pegando simpatia pela azul e branca, quando o mestre aborreceu-se com a diretoria e desligou-se, indo para a Lira do Amor, de Bento Ribeiro. Xangô também foi, mas precisava definir seu destino. Abriu-se com Paulo e pediu ao mestre que o indicasse a alguém na Mangueira. O pedido foi atendido. Paulo encaminhou seu aprendiz a um grande amigo, Cartola.
          A essa altura, Xangô concretizava dois sonhos num só: estava na escola de seu coração e em contato com seu maior ídolo. Foi integrado ao terceiro escalão da Ala de Compositores da Verde e Rosa, que tinha Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo da Pedra e Arturzinho como maiores expoentes. Aos poucos foi galgando espaços na direção de harmonia e não demorou muito para assumi-la, em 1946.
          Cordial com todos os componentes, respeitador e extremamente dedicado à escola, Xangô sempre exerceu liderança fantástica sobre o contingente verde e rosa. Nunca foi de falar muito. Sua linguagem é o apito. Um toque, com as pastoras formadas, indica que o ensaio vai começar; dois toques determinam a entrada da bateria e do puxador do samba; três apitos, ao contrário da música de Noel, é repreensão braba. No mínimo, um cartão amarelo para quem esteja fazendo coisa errada.
          Cada campeonato é motivo de intensa alegria e comemoração. Xangô tem muitos em sua galeria. Quando começou, dirigia 300 componentes na avenida; hoje, lidera mais de cinco mil. Tem 20 diretores para auxiliá-lo e 120 homens de apoio, cuidando de pequenos detalhes.
          Xangô da Mangueira está com 70 anos. Compõe, canta, dança, toca. Enfim, é completo em todos os fundamentos do samba. É o único mestre ainda na ativa. E com o direito de afirmar que foi iniciado pelas mãos de Cartola e Paulo da Portela.

 

Dissidência do Prazer

E por falar em Império, é hora de entrar no trem da história e partir para o carnaval de 1948.

          Dissidentes do Prazer da Serrinha, que não aceitavam mais as imposições do presidente Alfredo Costa, se reuniram dia 23 de março de 1947 na casa de Tia Eulália, na Rua Balaiada, em Vaz Lobo, para decisão histórica. Envergonhados com o desempenho da escola no desfile anterior, que lhe valeu o 11° lugar, Elói Antero Dias, Fuleiro, Molequinho, João Gradim, Mano Décio e Hugo Mocorongo decidiram criar nova escola de samba no Morro da Serrinha. E ela se chamou Império Serrano.
          A estréia, no carnaval de 1948, era aguardada com ansiedade. Rachel e Suetônio Valença, no livro Serra, Serrinha, Serrano - o Império do Samba contam que, no dia do desfile, Mestre Fuleiro surpreendeu-se com o grande contingente que apareceu para reforçar a escola. Os fundadores, todos trabalhadores do Cais do Porto, estavam impecáveis, vestindo ternos brancos. A escola estava toda fantasiada, fato inédito na história do carnaval.
          A apresentação da verde e branca foi perfeita. Mas, embora tivesse todos os méritos para conseguir a vitória, poucos se davam conta desta possibilidade por tratar-se de estreante. Quando chegaram os mapas com os resultados, conferindo a vitória ao Império Serrano, o representante no júri do Departamento de Turismo, Alfredo Pessoa, sugeriu alterar a ordem de classificação. Propôs dar o primeiro lugar à Mangueira, o segundo à Portela e o terceiro à Depois Eu Digo, que eram mais antigas. Ari Barroso, presidente do júri, mostrou-se revoltado com a proposta e não permitiu a manobra. O resultado foi mantido. O Império era campeão. Festança na Serrinha.
          A verde e branca retomou com corda toda em 1949. Com o enredo Exaltação a Tiradentes e samba memorável de Mano Décio, Penteado e Estanislau Silva, chegou ao bicampeonato. Os dois anos consecutivos de glória imperiana incomodaram a vizinha Portela, que prometera batizar a novata e na hora H recuou. Cantaram os portelenses:

Portela
despida de vaidade
vitória para Portela é banalidade.

          Responderam os poetas da Serrinha:

Este é o Império Serrano
campeão de quatro anos
quem disse que vitória é banalidade
para o Império não é novidade.

          Em vez de um batizado, instalou-se a rivalidade em Madureira. O tira-teima aconteceria na avenida, no carnaval de 1950. Caberia a Irênio Delgado a missão de explicar aos jurados o enredo Batalha Naval do Riachuelo, apresentado pelo Império. Na concentração, no entanto, Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela, aprontava das suas. Pagou a um rapaz para sabotar o último carro da rival, belíssima escuna.