Ópera popular ou arte moderna?

 

Obras dispersas, mas preciosas, quebram pouco a pouco o tradicional desinteresse acadêmico pelo Carnaval brasileiro

          Há exatos 22 anos, no dia 13 de fevereiro de 1988, Zero Hora publicava um importante artigo do jornalista Luiz Pilla Vares que posicionava o Carnaval brasileiro – mais especificamente o desfile das escolas de samba – na condição não de “festa”, mas de arte: “Vejo, acima de tudo, a escola de samba como arte moderna, como uma das mais autênticas expressões da contemporaneidade”. Pilla, assim, não aceitava também a designação (generosa) que trata o desfile das escolas de samba como uma “grande ópera popular”: ele seria portador de uma outra linguagem, mais específica, com seus próprios signos.
          A primeira impressão que se tem é de que um tema como esse, que dá conta da nossa maior festa popular – e símbolo do sentido de “brasilidade” dentro e fora do país – teria grande interesse acadêmico. Afinal, passados 88 anos da Semana da Arte Moderna, do Manifesto Antropófago e do nacionalismo exacerbado da Escola da Anta, seria de se supor que a nossa academia abrisse seus horizontes para toda a diversidade da cultura popular brasileira. No entanto, a situação é bem diferente: poucos são os estudos disponíveis sobre o Carnaval brasileiro, em especial sobre o desfile de escolas de samba – ainda mais dimensionando-o em outras perspectivas sociológicas, antropológicas e literárias – como arte moderna, autêntica e genuína. E muito do que se tem (monografias, teses) está parado nas bibliotecas e departamentos universitários, distantes da publicação.
          Resolvi encarar o desafio e pesquisar o nosso Carnaval, concentrando-me no samba-enredo, a canção do desfile das escolas de samba, e utilizando como corpus os sambas das escolas de Porto Alegre. A pesquisa me fez notar que, apesar (ou seria por causa?) da pouca formulação téorica existente, as possibilidades são imensas.
          De história das escolas de samba, principalmente as do Rio de Janeiro, a quantidade de publicações não deixa de ser razoável. Na década de 1990, a antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, para sua tese de doutoramento, vivenciou durante um ano o cotidiano de uma escola de samba (a Mocidade), lançando posteriormente Carnaval Carioca – Dos Bastidores ao Desfile (Editora UFRJ/Funarte, 1994). A autora refuta a matriz conceitual romântica, que, a seu ver, vê a cultura do povo como “primitiva, comunal e pura”, sempre sujeita a uma “degradação das tradições”. Essa visão seria metodologicamente insustentável, já que “o acesso a uma tradição popular pura é humanamente impossível”. Maria Laura parece seguir os ideais modernistas brasileiros, inclusive sua “antropofagia”: a assimilação das diferenças, que acaba por gerar a comercialização, por exemplo, seria inevitável, já que o Carnaval, sendo uma manifestação cultural de um povo, não fica inerte.
          Uma boa análise e caracterização das diferentes músicas de Carnaval é feita pela crítica literária e professora da USP Walnice Nogueira Galvão, em Ao Som do Samba – Uma Leitura do Carnaval Carioca (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009). O livro, no entanto, dá ao samba o protagonismo merecido no estudo da festa maior da nossa cultura. “Sem samba, como poderia haver escola de samba?”, pergunta a autora. A partir dessa interrogação, Walnice explica como o samba tornou-se “o gênero musical carioca e brasileiro”, fazendo analogias com a criação do fado em Lisboa, do tango em Buenos Aires e Montevidéu e do jazz em Nova Orleans. Os novos gêneros, através da canção popular, seriam definidores de uma “identidade cultural nacional”. Mostra como se construiu o samba-enredo, o subgênero musical das escolas de samba, e explicita as suas diferentes linhas. Walnice aponta Exaltação a Tiradentes (Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau), de 1949, como o samba-enredo “inaugural”. O samba do Império Serrano foi pioneiro ao fazer uma canção relacionada a um tema, contando uma história previamente concebida (o enredo) – mas a autora ressalva que ele ainda não continha todos os elementos do samba-enredo moderno.
          Já o recente Samba de Enredo – História e Arte, de Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas (Civilização Brasileira, 2010), mergulha no tema escolhido e faz um resgate do samba das escolas de samba cariocas, dos seus primórdios nos anos 30 aos dias de hoje. Levam em consideração as temáticas adotadas, os efeitos sonoros decorrentes do encontro ou repetição de fonemas e até aspectos métricos. Inovam ao defender a tese de que o samba-enredo é um gênero épico, o único “genuinamente” brasileiro. Acreditam que, assim, ele “contraria uma tendência universal da música popular urbana”, que é de ser lírica.
          Em Porto Alegre, onde o Carnaval de rua importou o modelo carioca de desfiles de escolas de samba, também há muito por ser feito. O primeiro estudo do Carnaval da Capital de que se tem conhecimento é Carnaval Porto-alegrense no Século XIX (Livraria do Globo, 1970), de Athos Damasceno, que, como o próprio nome diz, disserta sobre as festas do século retrasado, muito tempo antes das escolas de samba tornarem-se hegemônicas.
          A partir de buscas feitas em bibliotecas públicas e universitárias, e com a ajuda do professor Luís Augusto Fischer, localizei duas importantes publicações que falam do Carnaval de Porto Alegre “moderno”: Carnavais de Porto Alegre (Secretaria Municipal da Cultura, 1992) , de Flávio Krawczyk, Iris Germano e Zita Possamai, e Conversas entre Confetes (organização de Luís Augusto Fischer e Mariângela Sedrez, SMC, 2000). A primeira é um resgate histórico do Carnaval da Capital, com dezenas de fotos ilustrativas de diferentes épocas. Já a segunda é uma coletânea de textos que reuniu grandes nomes do nosso Carnaval, personalidades da cidade, intelectuais (foi aí que descobri o maravilhoso texto de Pilla Vares). Na internet, além das informações de enciclopédias virtuais (nem sempre confiáveis), foi possível achar a publicação Escolas de Samba e Tribos do Carnaval de Porto Alegre (SMC, 2000), da pesquisadora Sandra Maia.
          Para aprofundar o estudo do corpus (o samba-enredo de Porto Alegre), a maior dificuldade: raros são os anos em que as letras dos sambas estão disponíveis na internet, ou mesmo em publicação impressa. Qual foi a solução? Procurar nos jornais da Capital as composições. Assim, foi possível constatar o quanto de produção literária está subvalorizado ou simplesmente esquecido.

Jackson Raymundo é Acadêmico de Letras da UFRGS e pesquisador do tema samba-enredo
(Publicado Originalmente no Jornal Zero Hora em 20 de fevereiro de 2010)

 

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