Os acadêmicos de Padre Miguel

 

Quase um século após a sua criação, o samba invade as universidades e, na esteira da aproximação entre letrados e partideiros, faz com que a Mocidade Independente também brilhe nas salas de aula

          Os sambistas do velho Estácio, talvez, nem imaginassem a importância da guerra cultural encabeçada por eles no início do século passado. Empunhando armas que estancariam qualquer faísca bélica contemporânea – poesia, pandeiros e o amor incondicional pelo nascente ritmo – defenderam com unhas e dentes a bandeira do samba, considerado uma manifestar marginal naquele tempo. E “marginal”, na pior das conotações, era o adjetivo designado pelas autoridades a quem se “perdia” no batuque que fez despontar Dongas, Ismaéis, e incontáveis outros bebedores na fonte criativa dos recém-alforriados. O restante do enredo todos conhecemos. Nestes quase cem anos, o samba desceu o morro e preencheu de vida o asfalto, ganhou voz e espaço, e fez do carnaval carioca o maior espetáculo da Terra. Além de tantas conquistas, ainda demonstrou força para extravasar uma fronteira que parecia intransponível: a da Academia. Seja através da criação do Instituto do Carnaval, seja como tema de dissertações e monografias, nunca o popular e o erudito, em outrora nomeados incongruentes, estiveram em tão fina sintonia. E a Mocidade Independente, que sedimentou as suas características em signos de ousadia e vanguarda, não poderia passar ao largo deste quadro.
          Morador de Bangu, o jornalista Vicente Magno, de 31 anos, está às voltas com noites mal dormidas, micro-computador, permanentemente, ligado, incontáveis autores, e as conversas quinzenais com o orientador e o co-orientador, respectivamente, os professores da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Ronaldo Helal e Felipe Ferreira – este último um dos jurados do prêmio Estandarte de Ouro, e autor de inúmeras publicações relacionadas à folia, como “O livro de ouro do carnaval brasileiro” (2005). Em março, um mês após as cinzas, deixa de lado as últimas lembranças de mais um desfile pela ala Bons Amigos do Ararê, para defender a sua dissertação de mestrado na área de comunicação e cultura, que traz a verde-branco de Padre Miguel como objeto analítico. Em “Pedimos passagem à imprensa escrita, falada e televisada – um estudo sobre a midiatização das escolas de samba do Rio de Janeiro”, título ainda provisório, o jornalista analisa, historicamente, a relação da Mocidade com os veículos de mídia, e como se desenvolveu a sua construção imagética junto à opinião pública.
          “Cresci ouvindo que o sambista havia tido a sua manifestação roubada, apropriada, sobretudo pela televisão, que teria transformado as escolas de samba à sua revelia. Vivendo a agremiação e a sua gente de perto, percebi que o sambista é um cara esperto, diferentemente daquilo que sempre colocaram na minha cabeça. E quis, justamente, investigar como esse cara entende os meios de comunicação e, por conseguinte, lida com as ferramentas informativas”, diz ele, o criador da comunidade oficial da Mocidade Independente de Padre Miguel no site de relacionamentos Orkut, que abrange cerca de 25 mil membros.
          Em 2001, a musicista Mariana Carneiro da Cunha, de 35 anos, escolheu falar da lendária bateria nota 10 de Mestre André, quando concluiu o Programa de Pós-graduação em música da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Sua dissertação de mestrado, “Transmissão de saberes na bateria da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel”, discorreu sobre o processo de troca de conhecimentos entre ritmistas mais antigos e novatos no seio da natural “passagem de bastão”, ocorrida de ano em ano. “A dicotomia entre tocar e estudar é causadora de desconforto e desprazer durante o processo de aprendizagem de um instrumento musical. Na bateria de uma escola de samba parece não existir essa separação entre fazer música e aprender a tocar. Tudo se dá num só ato, ao mesmo tempo”, diz. Como todo estudioso que se preza deve estar a léguas do encastelamento em torre de Marfim, decidiu tornar-se uma aprendiz na bateria de Mestre Coé, o então comandante da orquestra de percussão independente, que, em princípio, torceu o nariz para a aproximação daquela “branquinha no samba”, como ela mesmo se define.
          A chegada da pesquisadora à agremiação aconteceu por intermédio de uma antiga baiana –  Guiomar – que trabalhara para a sua família e a quem, carinhosamente, se refere pelo apelido de “Mãe preta”. Aprovada para assumir um dos disputados chocalhos, e logo demonstrando entrosamento com os novos colegas, coletou depoimentos de boa parte dos cerca de 300 ritmistas, gravou uma longa entrevista em vídeo com Quirino da cuíca, o mais antigo entre os cuiqueiros de Padre Miguel e, como não poderia deixar de ser, estreou na Sapucaí em pleno processo de produção da dissertação. “As principais conclusões a que cheguei apontam para o aprendizado, a transmissão de saberes na bateria, como parte da socialização naquela comunidade. É peça do todo. Do convívio, do cotidiano, do dia-a-dia”, explica Mariana, que teve entre os seus avaliadores a professora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, cuja tese de doutorado em antropologia social também traz à tona questões, especialmente, ligadas à Mocidade Independente, tendo sido concebida durante os preparativos visando ao desfile de 1992, “Sonhar não custa nada”.
          O trabalho de Maria Laura, aliás, tornou-se referência para todos os que se dedicam a pesquisar o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro e a verde-branco. Desta sua imersão no saudável delírio de Renato Lage e Lilian Rabello, derrotado para “Paulicéia Desvairada”, da Estácio Sá, resultou o livro “Carnaval carioca – dos bastidores ao desfile”, de 1994, relançado no ano passado. A obra foi bibliografia de cabeceira para o jornalista e cineasta Daniel Targueta, de 26 anos, outro que foi buscar na estrela de Padre Miguel a inspiração para compor um trabalho acadêmico – sua monografia de graduação no curso de cinema da UFF (Universidade Federal Fluminense). “Luzes da folia: tecnologia, arte e néon no carnaval carioca”, de 2003, é, acima de tudo, o mergulho de um dito “folião apaixonado”, na bem-sucedida relação entre o carnavalesco Renato Lage e a Mocidade Independente, que proporcionou a conquista de três títulos e inesquecíveis carnavais.
          “Durante as aulas de “Estética e Cultura de Massas”, entramos numa discussão sobre a relação entre tecnologia e arte, e me remeti, imediatamente, a alguns trabalhos do Lage, em especial, a uma alegoria: a do coração, parte do desfile “De corpo e alma na avenida”, em 1997. A partir de então, decidi abraçar este tema, e me sinto, de certa forma, tendo ajudado a encurtar a distância entre a chamada ópera popular e o universo acadêmico”, conta ele. Tal aproximação, claro, não exclui a incontestável máxima de que a poesia do samba prescinde de cartilhas. Entretanto, se viva estivesse, a precursora Tia Ciata se orgulharia destes novos frutos originados pela semente primeira que plantou no adocicado quintal de seu tempo. E a Mocidade, filha assumida do pioneirismo, não deixa de fazer continuar esta história de conquistas.

Trabalhos acadêmicos com especial enfoque no G.R.E.S. Mocidade Independente de Padre Miguel:

  • “Carnaval Carioca – dos bastidores ao desfile” (1994), tese de doutorado em antropologia social de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (UFRJ).

  • “Transmissão de saberes na bateria da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel” (2001), tese de mestrado em música de Maria Carneiro da Cunha (UNIRIO).

  • “Pedimos passagem à imprensa escrita, falada e televisada – um estudo sobre a midiatização das escolas de samba do Rio de Janeiro” (2008), tese de mestrado em comunicação e cultura de Vicente Magno (UERJ).

  • “Luzes da folia: tecnologia, arte e néon no carnaval carioca” (2003), monografia de graduação em cinema de Daniel Targueta (UFF).

  • Internet e carnaval: o grupo “Salve a Mocidade” como pólo de encontro de interesses comuns e de reafirmação local” (2006), monografia de graduação em jornalismo de Fábio Fabato (UFF).

Fábio Fabato
(Publicado originalmente na Revista da Mocidade Independente de Padre Miguel – 2007)

 

Artigos