A tal dicotomia do samba

 

          Interessante a análise entre o novo e o tradicional. Assim como a vertiginosa e galopante supressão de valores sobre as agremiações cariocas, nos deparamos com uma realidade “cruel”. Segundo uma visão, diria, conservadora, sob uma ótica centrada em elementos culturais. Ao interlocutor ou analista, cabe emitir opiniões e/ou conclusões, conforme sua visão, e posicionamento acerca da conservação do que é tradicional e da necessidade de modernização. Eu sou parte do grupo daqueles que concluem que o moderno e o tradicional embora sendo valores antagônicos e paralelos, podem caminhar juntos e “de mãos dadas”, em muitos aspectos.
Seria mais ou menos a realidade da atual administração da Beija-Flor, muito embora, ter tomado conhecimento dos métodos utilizados para obter os resultados desejados, lembrando que o povo não pode servir única e exclusivamente como massa de manobra e muito menos tratado como gado. Talvez, essa incoerência em menos tempo que se pensa trará conseqüências desastrosas, para não dizer indesejáveis, pois, como todo e qualquer processo de repressão, com o passar do tempo por si mesmo desgasta, corrói, e haverá sempre quem se rebele! Basta uma organização bem articulada e pimba! Haverá de aparecer os corajosos de plantão reivindicando mudanças. Vamos ver se a “dinastia dos “David`s”" substirá às rebeliões. As colocações mencionadas no texto têm o intuito justamente de levar a uma reflexão mais profunda, pois, vejo que as Escolas precisam, de certo, adequar-se às mudanças. O problema é que esse desenvolvimento ou crescimento está ferindo preceitos institucionalizados dentro da própria comunidade. Vejo como um ato vil, que de forma substancial deflora o núcleo cultural das comunidades. É como se o novo (pessoas, conceitos etc.) dessem um “chute no traseiro” de quem no momento seja um empecilho. Claro que são fatores determinantes, que nem eu e nem toda a torcida de uma “Vila Isabel da vida” pode barrar, e cabe-nos, portanto, intermediar para que os que de fato monitoram e manipulam as decisões, venham à pelo menos se permitirem uma avaliação à luz da razão e em nome do bom senso e preservação do gênero desfile de Escolas de Samba.
          Numa diagnose particular, permitam-me algumas conclusões:

  1. As regras vigentes na entidade organizadora do Evento (LIESA); em que este órgão, arrola na maioria de seus documentos a necessidade de “varrer” do mapa escolas que não venham a apresentar grandiosos espetáculos, de impacto visual principalmente, a qualidade plástica que as Escolas de Samba deste cada vez mais seleto grupo devem exibir. Isso implica luxo e criatividade. Criatividade nem tanto, mais luxo é sinônimo de capital, se por um lado esse posicionamento “enche os olhos” daqueles que compõe uma pequena, porém lucrativa faixa do mercado (gringos, empresários, globais etc.) tolhe e afasta “Impérios Serranos” e com a ausência de escolas tradicionais, mas não bem sucedida financeiramente no momento, implica num prejuízo de certa forma toda uma geração de sambistas e torcedores e simpatizantes. Evidentemente, o fascínio é muito grande, e há quem pague realmente o que pedem, os lucros financeiros só tendem aumentar mais o prejuízo digamos sócio-cultural é “n” vezes maior, infelizmente. Aí o povo cai no carnaval de rua, porque é muito mais viável e menos sofrível, e este público “novo” não sabe absolutamente nada da Escola que passa, não sabe quem são seus baluartes, não leva em conta a qualidade do samba, tanto faz, nem se preocupa em saber, se balança à passagem da bateria, acena pra uma gostosa na avenida, bebe sua cerveja gelada, come seu caviar e tudo acaba com o fim do desfile da escola que passou, sem associação nenhuma com o samba. Triste né?, preparemo-nos pro pior!. Não se surpreendam se daqui a alguns anos as escolas tiverem um contingente enorme de estrangeiros em alas e entre passistas, baianas, mestres-sala, porta-bandeira, compositores. Esse é meu maior pavor, que um dia “sitiem” o carnaval brasileiro e o brasileiro, vá apenas servir para empurrar os carros, perder incontáveis noites de sono nos barracões. Será demasiadamente surrealista essa tese?

  2. A competitividade - A ânsia por ser campeã, já é um objetivo nato da maioria dos grêmios, e creio que faz muito tempo que isso ocorra, só que agora vencer um carnaval é um desafio maior ainda. Analisemos os dois campeonatos da querida Vila, 1988-Kizomba e 2006-Chavez. Deu pra sentir a diferença de cara? 1988 uma vitória limpa, um desfile referencial, após a passagem e antes da apuração esperado (apesar de contextualizações diferentes), só para analisarmos como a coisa piora a cada ano. Não que eu questione o título em si!. Como a maioria, gostei muito de ver a Vila campeã, um bom desfile. No entanto, prefiro mil vezes a Vila de 88, é uma opinião particular, mas, quero ver uma Escola disputando títulos, porque isso conseqüentemente fortalece o carnaval, soma e conseqüentemente contribui para uma equiparação de forças. Gostaria de uma Vila competitiva, mas jamais “virando” as costas para quem ajudou a mantê-la viva e respeitada no “mundo do samba”, ou seja, sua comunidade, seu bairro e seus incansáveis e notáveis sambistas.

          O grande problema que perdura entre os grêmios é justamente quanto à dificuldade de ostentar o “luxo”. Temos uma empresarial e bem-sucedida Beija-Flor, a Vila Isabel e a Viradouro a caminho (emergentes), a estável Mangueira e a Grande Rio que hoje pode se dizer que é uma escola de ponta. Portela, Salgueiro, Mocidade e Imperatriz, atualmente menos competitivas. Pois bem, neste panorama de altos e baixos, algo preocupa, porque os apreciadores do carnaval vêem literalmente descer pelo ralo (descenso) escolas queridas, tradicionais, que há bem pouco tempo compunha a elite, partindo do pressuposto que todas se expõem à competição. Claro que haverá ganhadores e perdedores, isso é inteiramente normal, contudo, aceitáveis são as mudanças que o carnaval experimenta ano-a-ano, existem as mutações naturais (necessidade de verbas, contratação de bons profissionais, tecnologia, criatividade etc.), que dão uma nova roupagem nos desfiles, mas, há as mudanças provocadas pela manipulação de regras, decisões, que somadas, causam efeitos colaterais enormes, como também é comum a toda causa. Não gostaria de inocentar os grêmios por total, colocá-los como vítimas indefesas, das muitas e muitas atrocidades principalmente no campo político-financeiro, não se pode dizer que só alguém ou algo é responsável por atitudes irresponsáveis, visto que, a LIESA é composta pelos 12 presidentes, que formam uma espécie de “parlamento”, portanto, todas as escolas têm o tratamento que merecem, supervalorizadas ou prejudicadas.
          O presidente de uma determinada Escola de Samba em si deve honrar o compromisso com a comunidade que o elegeu, honrar o cargo que lhe proporcionaram, a legítima ação de defender e lutar por interesses comuns. O grande problema é que os valores intrínsecos nas comunidades (cultural, social) estão em baixa e a maximização dos lucros em alta, o povo=comunidade, em sua maioria não tem condições de colaborar decisivamente ($$$) para que sua escola ponha um bom carnaval na avenida. Dentro da comunidade, chega alguém que chama a responsabilidade para si (patrono), banca a escola, ou corre atrás da captação de recursos (patrocínio), note-se que o povo continua impotente também nesta situação, sob o julgo, a relação do poder de decisão desse processo que pode-se dar a alcunha de “coronelismo”, quando não, há presidentes, carnavalescos e/ou comissões de carnaval que se encarregam de alocar recursos para por o carnaval de sua escola na rua. Paralelo a isso, e apoiando-me à premissa de que “o carnaval é do povo e para o povo”, neste processo diagnóstico, identifica-se de que mal sofre o carnaval, enquanto as pessoas que ocupam cargos majoritários não retrocederem em algumas decisões, ou implementarem mudanças nas regras dos desfiles, o carnaval vai estar em baixa constante e toda essa incompatibilidade (comunidades x escolas x LIESA), causarão danos irreparáveis. É necessária em primeiro lugar a conscientização em massa, depois, a elaboração de planos diretores que visem a reaproximação das comunidades e do povão para que em alguns anos vindouros, o carnaval não seja como as baleias, que tende a se tornarem vistas somente em velhos filmes, fitas de arquivo. Exagero, equívoco? Palavras apocalípticas?
          Vem aí, em 2008, um “remake” que lembra os áureos tempos do “carnaval-alegria”, “É Hoje o Dia”, com a União da Ilha do Governador, no Acesso A, simultaneamente, cito, propositalmente, outro famoso refrão que é uma prova da dicotomia existente no carnaval atual:

"Diga Espelho meu,
se há na Avenida alguém mais feliz que Eu?”

          ou deve-se entoar como os portelenses:

“Perguntei ao espelho meu
Qual delas é mais linda do que eu?”

Afonso Fonsêca

 

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