O samba na sala de aula e a defesa do patrimônio cultural nacional

 

          Boa parte dos projetos de inclusão social hoje desenvolvidos nas grandes cidades brasileiras tem como apoio a música. E essa música, eleita entre aqueles gêneros ou estilo com os quais, supostamente o público-alvo, preferencialmente jovem, mais se identifica, ou quase nunca é o samba ou é um subproduto do gênero, como no caso das onipresentes orquestras de tambores, popularizadas a partir da Bahia pelo bloco-afro Olodum.
          A Estética Olodum - Nascido em 1979 (seis anos depois do afoxé Badauê e cinco anos depois do bloco Ilê Aiyê, precursores da moderna africanização do carnaval baiano), como simples agremiação carnavalesca, o Olodum transformou-se numa organização múltipla, envolvida em diversas áreas da cultura e desenvolvendo bem-sucedidos projetos políticos e sociais em beneficio principalmente da comunidade do Pelourinho, no antigo centro degradado e hoje restaurado da cidade de Salvador. E no momento em que ele nascia e se organizava, as escolas de samba da capital baiana, tentando espelhar-se no modelo carioca, eram já suplantadas pelos chamados "blocos de índios", para logo em seguida chegarem a um ocaso melancólico.
          A partir da visibilidade conquistada através do cantor americano Paul Simon que, empenhado em um projeto de world music em 1990, incluiu um seção rítmica do bloco em um de seus discos, o Olodum, ou pelo menos seu nome, ganhou fama internacional. Essa fama, muito bem capitaneada pelo militante João Jorge Rodrigues, líder sindical com formação universitária, levou o Olodum a fóruns internacionais, o que logo o transformou de simples entidade carnavalesca em uma organização não governamental firmemente apoiada por corporações e entidades de fora do País.
          No rastro do sucesso do Olodum, outros blocos, uns bem outros mal organizados e intencionados, foram surgindo, inclusive no Rio de Janeiro, sempre tendo como base aquele tipo de orquestra de tambores com que o músico Neguinho do Samba, mestre da bateria, seduziu Paul Simon e mais tarde o polêmico megastar Michael Jackson.
          Observe-se que a orquestra percussiva do Olodum tocava, a princípio, uma espécie de samba de cadência ralentada, bem próximo do produzido pelas baterias das escolas de samba cariocas até a década de 1950. Mas essa "levada" rítmica acabou por produzir um híbrido chamado às vezes de "samba-reggae", já que foi incorporando influências caribenhas, depois aproximando-se do funk, ao modo das bandas escolares norte-americana, e, assim, cada vez mais se internacionalizando. Tanto que, em 1993, os compositores Ythamar Tropicália, Alberto Pita e Moço faziam grande sucesso com a canção Alegria Geral, cuja letra diz: "Olodum tá hippie, Olodum tá pop / Olodum tá reggae, Olodum tá rock / Olodum pirou de vez...". E essa internacionalização é patente em outras canções, algumas até com letras totalmente em inglês, constantes de um songbook do bloco, o livro Olodum: carnaval, cultura, negritude, 1979-2005, organizado por João Jorge Rodrigues e Nelson Mendes e lançado em 2006.
          Mas a "piração" do Olodum era consciente e rendia frutos igualmente importantes como, no Rio, na comunidade favelada de Vigário Geral, o grupo cultural sintomaticamente intitulado Afro-Reggae.
          De trajetória bastante semelhante à do seu antecessor baiano, o Afro-Reggae só não foi, pelo que sabemos, um bloco carnavalesco. Nasceu logo com o estatuto de grupo cultural, mas também estabelecendo importantes parcerias internacionais, além de receber a unção de estrelas do segmento mais prestigiado da música popular brasileira, da principal rede de televisão do País e, pelo trabalho social que propaladamente desenvolve, de lideranças estelares no âmbito das ações ditas de cidadania e contra a exclusão social.
          A grande contradição, entretanto, no trabalho tanto do Olodum quanto do Afro-Reggae é que, talvez pelas parcerias e compromissos que estabeleceram, essas duas entidades - e principalmente a segunda, que tem sede no Rio, exatamente na fronteira entre a zona suburbana da Leopoldina e a Baixada Fluminense - em seus projetos musicais privilegiam outras linguagens em detrimento do samba. O que provavelmente se possa explicar pela seguinte ordem de idéia.
          O Samba, no Contexto - Desde a consolidação, no Brasil, da chamada "Era do Rádio" e do surgimento, aqui, das primeiras sociedades arrecadadoras de direitos autorais musicais, sob influência de grupos editoriais estrangeiros e da industria fonográfica internacional, o fazer do samba foi desdobrado, à sua revelia, em "samba de morro" e "do asfalto". O samba do asfalto freqüentou o legendário Café Nice - espécie de feira permanente da música popular de então, local onde se acertavam parcerias e gravações e se faziam negócios -, subiu aos palcos do teatro de revista e dos cassinos, de terno, gravata e sapatos de verniz. O do morro, negro em sua grande maioria, ficou nos botequins, de chapéu palheta, lenço no pescoço e tamancos; e freqüentemente se vendia ao do asfalto ou aos editores em troco de um café, um almoço, uma ajuda no aluguel.
          Evidente que, vez por outra, um sambista classificado como "do morro" transpunha os umbrais do Nice, muitas vezes levado por criadores de olhar arguto e coração aberto, como foi o caso de Noel Rosa, que intercambiou experiências decisivas com sambistas do porte de Ismael Silva, Cartola, Heitor dos Prazeres etc. Mas a regra era o domínio do "asfalto", que, do rádio e do palco, chegou às boates, ao cinema e, na década de 1950, à nascente televisão.
          Na televisão, a partir do movimento da Jovem Guarda, a que seguiu a Era dos Festivais e, numa seqüência, o tropicalismo e o chamado "Rock Brasil", o velho mas prolífico samba, tachado de imobilizado e passadista, quando não acusado de "alienado", não-afinado com o discurso inconformado e rebelde da juventude , foi sendo deixado para trás e excluído. Mesmo no conjunto da música de extração africana privilegiada pelos movimentos em prol dos Direitos Civis dos negros, que aqui se consolidaram a partir da década de 1970, ele - a não ser no sonho do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, iniciativa do compositor e líder Candeia, infelizmente falecido em 1878 - não teve vez.
          Injustamente acusado de alienado, o samba, mesmo o "do asfalto", sempre deu e continua dando lições de inconformismo e engajamento político. Obras como Sapato de Pobre (Jota Júnior e Luís Antônio, 1951); Lata D'água (idem, 1952); Salário Mínimo (Ernâni Alvarenga, c. 1950 ) Dia de Graça (Candeia, c. 1975 ), Zé Marmita (Brasinha e Luís Antônio, 1953), Zelão (Sérgio Ricardo, 1960), O Morro Não Tem Vez (Tom e Vinicius, 1963), O Pequeno Burguês (Martinho da Vila, 1969), Acender as Velas, (Zé Kéti, 1965), Lamento da Lavadeira (Monsueto, Nilo Chagas e João do Violão, 1956), Na Casa de Corongondó (Monsueto e Arnaldo Passos), para citar apenas alguns, são provas evidentes do que queremos demonstrar.
          Na produção mais recente, chamamos a atenção para alguns sambas do Trio Calafrio (Barbeirinho do Jacarezinho, Luiz Grande e Marcos Diniz) gravados por Zeca Pagodinho, como Comunidade Carente e Parabólica. E transcrevemos, com intuito puramente didático as letras de dois sambas gravados pelo jovem conjunto da periferia paulistana Quinteto e Branco e Preto, que são as seguintes:

Nova Psicologia
(Magno de Souza, 2000)

Eu olho o Brasil e aponto o erro:
chama-se aristocracia.
O povo perdido acredita demais
na ira da demagogia.
Tem mais de dez mil querendo um coração
na fila da cirurgia.
Por isso a doença não sara
porque o seu nome é burocracia.
(...) Nas paradas de sucesso
ninguém mais se liga na filosofia
é só abobrinha
Bons poetas não se ouve mais
como Chico e Gonzaguinha (...)
Hoje tudo liberado,
o Sistema predomina
Sem contar a CPMF
Seu destinatário até Deus duvida...

Fetiche Real
(Magno, Maurílio de Oliveira, Everson Pessoa, Edvaldo Galdino, 2000)

O meu pão na padaria
já não dá mais pra comprar
(...)
É um país sem comando
é o país sem polícia
tudo pra eles gostoso
tudo pro povo carniça
(...)
Eles moram em bairro nobre
e nós na periferia
(...)
No bolso nem pra sanduíche
salário ficou só no disse-me-disse.
Não há país de Fernando
em que Cardoso não enrique...

          Na Sala de Aula - A partir do exposto, como então trabalhar o samba na sala de aula?
          Acreditamos que o primeiro passo seria, historicamente, mostrar o sistema de dominação transnacional a que estão submetidos a indústria do entretenimento e a mídia no Brasil, o que faz com que produtos com algum traço distintivo de nacionalidade não interessem às grandes corporações, as quais, por exemplo, sob a trilha sonora da cultura hip-hop, inundam o mercado com suas marcas e logotipos através de bonés, camisetas, tênis etc.
          Depois, seria mostrar, através da análise das letras das obras acima indicadas e outras mais, que o samba, principalmente através da crônica de costumes que sempre foi sua marca registrada, também denunciou e denuncia os desmandos do Sistema, mostrando também que, hoje, obras como a do citado Quinteto em Branco e Preto não chegam ao grande público porque artistas jovens com a proposta deles, de fazer samba tradicional, são sistematicamente barrados pelas grandes gravadoras e, conseqüentemente, não têm acesso a uma difusão mais ampla.
          Também achamos interessante mostrar como as escolas de samba cariocas, que nasceram para legitimar a cultura das comunidades basicamente negras onde surgiram, a partir de um determinado momento foram-se desvinculando dessa cultura. E isto, apesar de os sambas-enredo, durante um bom tempo, terem sido legítimas aulas de História do Brasil, até mesmo revelando aspectos ocultos dessa História, como o enredo sobre Delmiro Gouveia, apresentado pela Unidos da Tijuca, em 1980; ou como o "61 Anos de República" do Império Serrano em 1950, no qual são listados, em rigorosa ordem cronológica, os presidentes do Brasil, de Deodoro a Getúlio Vargas; ou ainda como os revolucionários "Chica da Silva" (Salgueiro, 1963); "História da Liberdade no Brasil" (Salgueiro, 1967), em plena ditadura; ou "Heróis da Liberdade" (Império Serrano, 1969), também sob o tacão da opressão militar.
          Finalmente, seria oportuno esclarecer porque as escolas de samba, hoje, no geral, pertencentes mais ao mundo do show-business do que ao de suas comunidades de origem, trilham caminho cada vez mais divergente daquele que é trilhado por compositores e intérpretes efetivamente engajados num trabalho de afirmação e defesa do samba como patrimônio cultural brasileiro, tal como é definido no art. 216 da Constituição Federal, que diz:

          "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores d referência à identidade, à ação, á memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; (...)"

          No nosso modesto entender, nenhum dos gêneros importados, a partir da Segunda Guerra Mundial pela indústria musical atuante Brasil, mesmo os aqui aclimatados, constitui patrimônio cultural do povo brasileiro. Portanto, as ações pedagógicas que os quiserem utilizar, que o façam; mas pensando no perigoso potencial de desnacionalização e colonização cultural que essas formas representam.

Nei Lopes
(Palestra proferida em janeiro de 2007 no campus Guarujá, SP, da Universidade de Ribeirão Preto)

 

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