Samba: Origens, transformações e indústria cultural (1916 - 1940)

 

Capítulo I - A construção do samba

  1.1. A realidade brasileira do início do século XX

          Desde as últimas décadas do século XIX, mudanças nas atividades econômicas das grandes potências mundiais estavam relacionadas com a nova estrutura de produção, baseada no surgimento de grandes complexos industriais. Tais complexos amparados pelas novidades tecnológicas visavam, antes de tudo, à expansão do mercado para a produção de grande escala.
          Ocorre que a produção passou a se sobrepor ao consumo destas mercadorias, tornando ainda mais necessária a busca de novos mercados a fim de se manter a estabilidade do sistema capitalista. Esta busca por novos mercados não se deu apenas devido à necessidade de escoamento da produção, mas principalmente pela busca de novas fontes de matérias-primas capazes de sustentar a produção em grande escala.
          Os países capitalistas começaram a investir então nos mercados do chamado "desenvolvimento capitalista tardio'', com grande incapacidade estrutural de adequação às exigências que tal processo por si só impunha. Deficiências de infra-estrutura como transporte e meios de comunicação, e principalmente, capital necessário para investir na melhoria das "indústrias de base''e no favorecimento de matérias-primas impediam tais países de uma participação mais efetiva no cenário mundial. O investimento dos países capitalistas nestes novos mercados se deu por meio de "equipamento produtivo necessário para adaptação ao ritmo e ao volume da demanda européia''. (Sevcenko, 1999, p 44)
          O Brasil, enquanto este processo da chamada II Revolução Industrial ocorria, ainda tinha sua produção voltada para o mercado externo e baseada em mão-de-obra escrava. O fim da escravidão se dá ao mesmo tempo em que há um aumento significativo na procura pelo café, quando o país acaba por ser o maior fornecedor do produto no mercado mundial.
          O trabalho da lavoura passa a ser encargo dos colonos, de maioria imigrante, que recebiam seus salários e assim, mesmo ganhando pouco, fez com que passassem da situação de apenas trabalhadores para consumidores. É neste momento que a industrialização no país começa a ganhar forças, já que há também uma discreta dilatação do consumo no mercado interno.
          Durante o período conhecido como República Velha, o país começou a efetivar uma modesta, mas importante, modernização urbano-industrial, "o resultado desta nova expansão européia foi um avanço acelerado sobre as sociedades tradicionais, de economia agrícola, que se viram dragadas rapidamente pelos ritmos mais dinâmicos da industrialização...'' (Sevcenko, 1998, p 12). Tal fato passou a impor uma série de transformações na sociedade brasileira.

"Era necessário transformar o modo de vida das sociedades tradicionais, de modo a instilar-lhes os hábitos e práticas de produção e consumo conformes ao novo padrão da economia de base científico-tecnológica" (Sevcenko, 1998, p. 12).

          No início da República então, a indústria é de caráter local voltada para indústria têxtil e também alguns ramos da indústria leve. Na verdade elas estavam mais ligadas a pequenas fábricas de produtos manufaturados, onde se tinha muito trabalho manual e pouca maquinaria, uma vez que o capital disponível para efetivação de uma industrialização de verdade era restrito.
          Durante os anos da Primeira República, as classes economicamente ativas do país, que sempre priorizavam o mercado externo, estavam receosas de sofrerem represálias do mercado internacional sobre seus produtos, devido à política protecionista adotada pela indústria nacional.
          A base da economia continuava a ser o café e, contraditoriamente, foram exatamente as economias agrárias que deram sustentabilidade para este desenvolvimento industrial no país, que acabou por favorecer em muito o avanço nas áreas de transporte e de fortalecimento de um mercado interno.
          Com a Primeira Grande Guerra (1914 - 1918), a indústria brasileira cresce significativamente já que o mercado internacional, tanto para exportação quanto para importação, estava em crise. Com a utilização de produtos nacionais, a produção industrial interna sofreu um aumento de significância, acarretando um crescimento tanto econômico quanto urbano.
          Transformações políticas e econômicas desencadearam mudanças ainda mais significativas no seio da sociedade brasileira. Mesmo que a industrialização não tenha sido feita de forma "completa'', trouxe aspectos da até então desconhecida ''vida moderna'' que a população começou a incorporar.
          Com a chegada da República e com o efervescente processo de industrialização, o Rio de Janeiro se tornou a própria encarnação do cosmopolitismo. O paradoxo entre campo/cidade e tradição/moderno foi a luta que permeou todo este período.
          Até então, a população brasileira do campo sobrepunha decididamente a das cidades. Estas assistiam, no início do século XX, um inchaço populacional devido principalmente ao êxodo rural e à chegada dos imigrantes. Estas pessoas iam para os grandes centros atraídas pela industrialização.
          Diante desta nova realidade, o que se tinha eram pessoas em precárias condições de vida, já que as estruturas e a economia urbana não tinham condições de atender à demanda. Ocorreu então, uma industrialização incapaz de absorver a força de trabalho que chegava a ela. Como no caso da cidade do Rio de Janeiro:

"Essa população, extremamente pobre, se concentrava em antigos casarões do início do século XIX, localizados no centro da cidade, nas áreas ao redor do porto. Esses casarões haviam se degradado em razão mesmo da grande concentração populacional naquele perímetro e tinham sido redivididos em inúmeros cubículos alugados a famílias inteiras, que viviam ali em condições de extrema precariedade, sem recursos de infra-estrutura e na mais deprimente promiscuidade" (Sevcenko, 1998, p 21).

          O presidente Rodrigues Alves (1902- 1906), decidido a resolver os problemas da cidade, optou por uma reforma baseada em três frentes. A reforma no porto ficou ao encargo de Lauro Müller, Oswaldo Cruz ficou responsável pelo saneamento e Pereira Passos pelas reformas urbanísticas. Neste momento o que se teve foi uma verdadeira "guerra" contra os casarões da área central da cidade onde residia a grande parcela pobre da população. A elite carioca, assim como a imprensa, em muito apoiaram tais medidas, conhecidas como a "Regeneração''. O centro da cidade, antes do mandato de Pereira Passos, gozava de uma verdadeira mistura de estilos. A abertura da Avenida Central (Rio Branco) acabou por expulsar os moradores que residiam nos casarões, transformados em cortiços, do centro.
          Para o povo, atingido por tais medidas, após sua retirada dos antigos casarões não foi oferecida nenhuma forma de indenização ou ajuda. Sem ter para onde ir, estas pessoas, com as sobras de madeiras de caixas jogadas no porto e restos das demolições dos casarões no centro da cidade, começaram a montar barracões nas encostas dos morros da cidade. É neste momento da expulsão da população do centro da cidade que ocorreu a formação das primeiras favelas cariocas, situação que foi se agravando com a chegada de novos habitantes. Outra alternativa encontrada pelo povo foi o aluguel de quartos em cortiços e hotéis baratos, onde as famílias dormiam amontoadas e em condições muito precárias.
          Começa a haver uma preocupação, por parte das autoridades, perante os riscos de epidemias. Uma campanha forte se inicia pela implementação da vacina obrigatória por meio de uma série de decretos, que foram iniciados por volta de 1903, mas que ainda não se estendiam à obrigatoriedade a todos os cidadãos. Assim, o governo sente necessidade de aprovar leis que obrigassem a vacinação, o que irá desencadear a Revolta da Vacina (1904).
          Havia os opositores da lei de vacinação obrigatória, entre eles alguns políticos, liderados pelo senador Lauro Sodré. Desta forma, com a passagem da nova lei estes políticos começam a fazer "terrorismo ideológico'' (Carvalho, J.M., 1987, p. 98) espalhando que a vacinação causava conseqüências maléficas à saúde. Eles insistiam que o poder público era incompetente para efetivar e fazer cumprir a lei, já que um dos pontos de entrave da lei era justamente a quem competia a aplicação da vacina. Logo, ficou decidido que a vacina deveria ser aplicada tanto pelos médicos do governo quanto por médicos particulares, sob via de atestado registrado. A reação da população foi imediata: até aqueles que apoiavam a obrigatoriedade da vacina se opuseram aos termos impostos pela lei.
          A revolta já estava nas ruas neste momento. Vários estudantes, por exemplo, fizeram uma caminhada pelas ruas em que ficava situada a Escola Politécnica onde pregavam a resistência a vacina. Um delegado chegou ao local intimando o orador do grupo a comparecer à polícia, o que desencadeou uma forte reação popular contra a prisão deste. Este episódio acabou com os estudantes enfrentando a polícia, já na praça Tiradentes aos gritos de: "Morra a polícia! Abaixo a Vacina!'' (Carvalho, J.M., 1987, p. 101). Várias foram as manifestações que se seguiram. Os jornais da época noticiavam a respeito dos revoltosos sempre com termos genéricos como "massa popular" e "povo'' (Carvalho, J.M., 1987, p. 114).
          Há muitas controvérsias a respeito disto. Vários personagens, de Olavo Bilac a Rui Barbosa, se manifestaram de formas diferentes a respeito dos incidentes e levantes contrários à vacinação obrigatória.

"A composição da multidão variou de acordo com o desenrolar da revolta. De início era um leque amplo, incluindo, como dizia o Correio da Manhã, operários, comerciantes, estudantes, militares, pivetes." (Carvalho, J.M., 1987, p. 124).

          Enfim, a Revolta da Vacina contou com a participação de populares que visaram defenderem seus direitos de cidadãos por estarem cansados de serem tratados de forma arbitrária por parte do governo. Um certo jornal da época, chamado A Tribuna, publicou uma reportagem onde um "preto" expressava o orgulho e seus sentimentos justificando a revolta: "era para não andarem dizendo que o povo é carneiro. De vez em quando é bom a negrada mostrar que sabe morrer como homem... mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo" (Carvalho, J.M., 1987, p. 139).
          Neste mesmo ano, a nova Avenida, símbolo da Regeneração promovida pelo governo, já tinha seu projeto arquitetônico caracterizado pelos estilos de "art nouveau'' com mármores e cristais, bem como lampiões a luz elétrica. Torna-se reduto dos principais cafés e cinemas da cidade, onde desfila a nova sociedade burguesa carioca com suas vestes ao melhor estilo ''chic e smart'' (Sevcenko, 1999, p.31).

"O resultado mais concreto deste processo de aburguesamento intensivo da paisagem carioca foi a criação de um espaço público intensivo, completamente remodelado, embelezado, ajardinado e europeizado, que se desejou garantir com exclusividade para o convívio dos 'argentários'" (Sevcenko, 1999, p 34).

          Nas primeiras décadas do século XX, a cidade do Rio de Janeiro mantinha liderança da produção industrial, o que colabora para seu desenvolvimento urbano e comercial. Como maior cidade brasileira da época, cerca de 1 milhão de habitantes, e capital do país, o Rio passou a ser o grande centro retentor e propulsor de cultura do Brasil.
          Os jornais da época comentavam que o Rio finalmente estava se civilizando, "a noção de civilização, nessa época, já se confundia com uma idéia de conquista da modernidade'' (Vianna, 2002. p 22). Toda e qualquer forma de representação que lembrasse os "antigos'' costumes eram desprezados.
          Hábitos comuns ao cotidiano das famílias cariocas, como serenatas e as próprias vestimentas passavam por uma transformação face à condenação que sofriam da nova sociedade burguesa que se formava.
          O carnaval se transmutara para os salões parisienses com muitas colombinas e as fantasias sofriam censuras para não se aproximarem demais do popular. Enquanto isso, no próprio dia-a-dia, a cartola dava lugar ao chapéu, normalmente de palha e o violão das noites de boemia e serenatas, por ser deveras popular, já era visto como símbolo de vadiagem e malandragem.
          Como a política de urbanização visava expulsar as camadas mais pobres do centro e, ao mesmo tempo, incentivar a modernização da cidade com parques e avenidas, começa a ter maior força uma repressão e negação de tudo ligado à cultura popular. Esta, considerada muito atrasada, atravancava os ideais "modernizantes'' pelos quais tanto se lutava.
          Tentava-se na verdade apagar, ou ao menos diminuir, os costumes vinculados ao nosso passado colonial, buscando um maior entrosamento com o novo modelo social.
          Tal processo exigia, principalmente por parte dos republicanos, um maior desenvolvimento crítico perante as dificuldades que o novo regime enfrentava.

"Não penso ser uma afirmação arriscada dizer que o samba não é apenas a criação de grupos de negros pobres moradores dos morros do Rio de Janeiro, mas que outros grupos, de outras classes e outras raças e outras nações, participaram deste processo, pelo menos como 'ativos' espectadores e incentivadores das performances musicais" (Vianna, 2002, p. 35).

          Esta nova dinâmica social também trás com ela um aumento significativo da esfera pública, reforçada pelo alargamento de contatos interpessoais e de novas oportunidades de convívio cultural. Tantas mudanças marcam significativamente o samba e a sua transformação em música nacional.

1.2. O surgimento do samba

          A maioria dos escravos negros trazidos ao Brasil é, ao que se sabe, de origem banto ou bantu cujo significado "designa cada um dos membros da grande família etnolingüística à qual pertenciam os escravos no Brasil chamados angolas, congos, benguelas...'' (Lopes, 2003. p 13). Estes negros foram os primeiros a chegar no Brasil como escravos e contribuíram até o fim do Império com sua força de trabalho, seja no Nordeste do açúcar, seja no vale do Paraíba com o café e provém deles as matrizes para aquilo que seria o samba brasileiro (Lopes, 2003, p. 14).
          É quase consenso entre os especialistas que a palavra samba é tomada a partir do termo semba - que significa rejeitar, separar - origem de uma dança chamada umbigada. A umbigada era nada mais que uma dança, em forma de roda. Com um número irrestrito de dançantes, sendo homens ou mulheres, no centro deste círculo e ao som de palmas, coro e objetos de percussão, o dançarino solista, em requebros, dá uma umbigada em outro companheiro a fim de convidá-lo a dançar, sendo substituído então por esse participante (Lopes, 2003, p. 14).
          Com os bantos se dará a inserção dos instrumentos - ganzá, cuíca, reco-reco - de primordial importância para o samba enquanto ritmo, dos dias de hoje. Também são grandes as variações no que se refere ao uso de instrumentos para a expressão de canto e dança da época. Instrumentos de percussão, como tambor e coco, são característicos das batucadas nas áreas rurais de vários estados brasileiros como Minas Gerais e Rio de Janeiro, enquanto no Recôncavo Baiano há a característica de acompanhamento por violão, pandeiro, prato e faca. Já que no fim do século XIX se observa a grande variação enquanto ritmo do que viria a ser o samba. (Lopes, 2003, p. 15).
          O lundu é considerado o mais remoto ancestral do samba cantado, um ritmo característico das senzalas onde se cantava e dançava a umbigada e de onde surge o elo musical entre a casa-grande e a senzala. Sua principal característica, estruturalmente africana, estava na estrofe solo com um refrão em coral fixo como resposta.
          Enquanto o lundu era um derivado direto das batucadas que os escravos faziam, o maxixe, estilo rítmico que foi de grande importância para o surgimento do samba, surge com a chegada da polca por volta de 1844 ao Brasil. O maxixe era então, na década de 80 do século XIX, comum nos repertórios de vários grupos de choro na cidade do Rio de Janeiro. Assim, pode-se dizer que o maxixe foi uma versão da polca em território nacional. (Vianna, 2002, p. 50). Abrindo um parêntese a respeito deste ritmo, Fenerick pontua em sua tese, Nem do Morro, Nem da Cidade: As Transformações do Samba e a Indústria Cultural, que no inicio do século XX o maxixe figurou como um importante ritmo no Brasil:

"No início dos anos 1920 o maxixe, juntamente com outras músicas latino-americanas como o tango argentino ou os ritmos caribenhos, por exemplo, se faziam presentes na Europa, particularmente em Paris, a capital européia mais cosmopolita do período. Entretanto, o nosso maxixe de 'exportação' era um maxixe 'manso' um pouco polido em seu ritmo e em seus passos sensuais e sedutores" (Fenerick, 2002, p. 43)

          Os negros que vieram ao Vale do Paraíba atraídos pelo apogeu do café acabaram sendo jogados como mão de obra ociosa na cidade do Rio de Janeiro, quando a lavoura cafeeira do Vale entra em declínio, por volta de 1860. O grande fluxo de negros expulsos das lavouras, principalmente após o fim da escravidão, que chega em busca de trabalho começa a se juntar a outros que, no Rio de Janeiro, já residiam na zona portuária e central da cidade.

"Sem os controles que o domínio senhorial ou a moderna fábrica impuseram aos segmentos subalternos, o imenso contingente de pobres cariocas pôde desenvolver uma cultura vivaz e enérgica, a contrapelo das referências européias que seguiam conformando o clima espiritual predominante entre os brasileiros ricos" (Carvalho, M.A.R., 2004, p. 40).

          O samba surge, na cidade do Rio, em uma área geográfica claramente delimitada, que fica conhecida como a Pequena África, e mais especificamente a Cidade Nova.
          A Cidade Nova, neste tempo, abrange uma área grande situada às margens do eixo compreendido pela Avenida Presidente Vargas e pelo canal do Mangue, onde seus extremos confinavam com a zona do Porto, Centro tradicional e o bairro do Estácio. Neste momento, observa-se que há as primeiras formações de ranchos carnavalescos e manifestações tradicionais da cultura baiana no Rio de Janeiro, especialmente da região da Pedra do Sal, no morro da Conceição, até a Cidade Nova.

"A Praça Onze e o bairro da Saúde eram os redutos de macumba, festas e carnaval. Já naquela época se denominava pagode a reunião de boêmios, músicos e cantores, que puxavam pontos de orixás, marchas-de-rancho, maxixes e chulas. Rodas se formavam nos quintais e ali mesmo era renovado o clima dos lundus, com umbigadas e ritmo marcado nos pés e nas mãos" (Costa, 2002, p. 25).

          Estas manifestações culturais de tradição baiana consistem principalmente em uma festa religiosa-pagã de origens rurais, onde também havia ritos de candomblé, rodas de capoeira e danças. É interessante notar, desde já, a importância das mulheres para a música popular, uma vez que são elas as grandes festeiras e que se responsabilizavam pela organização das festas, e cuidavam dos desfiles carnavalescos da comunidade.
          Chamadas de "tias'', estas baianas vão propiciar o ambiente necessário para a formação de fatores que irão desencadear o nascimento do samba, novo gênero da música popular brasileira. É na casa de uma destas "tias", Dadá, que o compositor carioca Caninha escuta falar pela primeira vez em "samba raiado", que passaria logo a ser chamado de samba de partido-alto, este conhecido pela prática do improviso cantado em forma de desafio por dois ou mais solistas (Lopes, 2003, p. 20).
          Alguns outros nomes destas mulheres que ficaram conhecidas por suas festas regadas àquilo que viria a ser samba: Tia Teresa, Tia Gracinha, Tia Bibiana, a importante Tia Amélia, mãe de Donga, entre tantas outras.
          É também na Cidade Nova que surgiu aquela que seria a mais famosa das ''Tias'': Tia Ciata - Hilária Batista de Almeida - nascida em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, ficou conhecida por suas festas onde vários sambas foram criados.

"A casa de tia Ciata parece ter sido uma verdadeira escola, onde os batuqueiros cariocas puderam entrar ter contato com o 'samba à baiana', mais corrido e chulado. A partir disso, foram-se criando os partidos e consolidando-se o 'samba de partido-alto' (ainda com força do batuque primitivo, chamado também 'pagode'), ao qual aliou-se o samba baiano misturado às modinhas e lundus que circulavam no Rio de Janeiro" (Tramonte, 2001, p. 31).

          Nestas festas da comunidade baiana, uma das características é a divisão dos espaços musicais. Uma delas, ao que consta, é o grupo de choro se instalar na sala e o samba se ser tocado no quintal. Pixinguinha, em um de seus depoimentos ao Museu de Imagem e Som diz:

"O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba era mais cantado nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas, e o samba, só no quintal, para os empregados" (Lopes, 2003, p 35).

          Esta disposição arquitetônica, por exemplo, da casa de tia Ciata, está ligada ao que Carlos Sandroni chama de "polarização entre o espaço público e a intimidade'' (Sandroni, 2001, p, 109). A sala de visitas seria o espaço reservado para receber as pessoas que não haviam de chegar à sala de jantar, isto porque na sala de jantar as pessoas mantinham normalmente seus hábitos e costumes, muitas vezes não tolerados pelo pessoal da sala de visitas. O que não significa de forma alguma, que tal "geografia'' fosse impenetrável.
          Ali, na rua Visconde de Inhaúma, era ponto de reunião de todo tipo de gente, pessoas de terreiro, boêmios e profissionais da música. Ao que se sabe, passaram por ali os maiores nomes da música popular da época: Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô, Donga etc.

"Não houve no Rio de Janeiro do início do século um único boêmio que não conhecesse, ao menos de fama, as festas regularmente promovidas na casa da doceira Ciata. Nestas festas a cachaça rolava a ponto de o abacateiro do quintal viver pelado - tantas eram as folhas que lhe eram arrancadas para fazer chá de curar bebedeira [...]" (História da MPB, 1982, p. 4).

          Donga ficou conhecido como autor do primeiro samba brasileiro, "Pelo Telefone'', em 1916. Entretanto, vários sambistas que também freqüentavam a casa de tia Ciata, contrariam esta versão, porque afirmam que as criações ali realizadas eram coletivas. Na época em questão, o direito autoral era foco permanente de conflitos, ainda mais se tratando do samba que, enquanto gênero, não estava "institucionalizado''. A prática de criações coletivas bem como a compra de sambas por parte de cantores consagrados, geralmente brancos, visando uma parceria com sambistas negros e anônimos eram, ao mesmo tempo, bastante comuns.
          Há ainda uma discussão sobre como seria a letra da música de ''Pelo Telefone'', gravado em 1917. A letra gravada em disco, pela Casa Edison - ("O chefe da folia/ Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que com alegria/ Não se questione/ Para se brincar") -, ao que consta, não foi a única.
          Outra também emergiu na época, e esta, considerada não oficial, era usada como uma espécie de "prova'' por parte daqueles que se sentiram lesados por Donga e que afirmavam que a letra da música era uma criação coletiva. Como se pode ver: "O chefe da polícia/ Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar".
          Até Donga, em diversas entrevistas, se atrapalhava usando cada hora uma versão. A versão "não oficial", ou seja, aquela não gravada em disco à época é a mais aceita até hoje. Ocorre que tal versão relata de forma real um contexto da época, aqui nesta estrofe representado pela roleta no Largo da Carioca:

"Em maio de 1913, repórteres do jornal A Noite, para desmascarar a inépcia da policia do Rio, instalaram em frente à sede do jornal (Largo da Carioca, número 14) uma roleta, convidando os passantes a apostar; e no dia seguinte publicaram uma reportagem com o título O jogo é livre" (Sandroni, 200, p. 122).

          Além deste exemplo, há vários outros contextos retratados na música. É necessário levarmos em conta que a iniciativa de Donga, no registro da música, já visava alçar sucesso no carnaval carioca de 1917.
          Os anos 10 então, terminam com um embate. Havia ainda discussões acerca da autoria da música "Pelo Telefone''. Sinhô (1888-1930), em crítica a seus colegas, escreve "Quem são eles?''(1918). Exclusivamente para Sinhô são compostas: "Fica Calmo que Aparece'', de Donga, "Não és Tão Falado Assim'' de Hilário Jovino Ferreira e "Já te Digo'' de Pixinguinha e seu irmão China, acabando com a imagem de Sinhô. Este por sua vez compõe, em 1920, para Lalau de Ouro (Hilário Jovino) a música ''Fala, meu Louro'' (Costa, 2000, p. 20):

"A Bahia não dá mais coco
para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
para embrulhar o carioca.

Papagaio louro do bico dourado
Tu falavas tanto
qual a razão que vives calado

Não tenhas medo
coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito.
"

          Estes sambas se tornaram grandes sucessos carnavalescos, devido principalmente, ao fato de estarem envolvidos em uma briga. O próprio Donga mais tarde, reconheceu que não era verdadeiramente o autor da música assim como Mário de Almeida o autor da letra. Este diz: "os versos do samba carnavalesco 'Pelo Telefone' não são meus. Tirei-os de trovas populares e fiz como vários teatrólogos que por aí proliferam: arreglei-os, ajeitando-os à música, nada mais.'' (Sandroni, 2001, p.119).
          Durante as primeiras décadas do século XX a cidade do Rio de Janeiro tinha uma vida cultural rica, com circulação de novidades culturais nas mais diferentes classes sociais. Os cinemas eram uma boa forma de lazer, alguns destes chegavam a contratar músicos para tocarem nas salas de espera. Isaac Frankel, gerente do Cine Palais, na necessidade de contratar uma orquestra nova para animar suas salas convida Pixinguinha, que então tocava no Grupo Caxangá. Por problemas de espaço, o gerente do Cine Palais pede uma orquestra menor, fazendo com que Donga e Pixinguinha escolham apenas oito integrantes do Grupo Caxangá. O novo grupo é batizado por Isaac Frankel de Oito Batutas.
          O repertório do grupo era de maxixes, lundus, batuques, canções sertanejas etc, ou seja, nada muito específico. Contudo nesta época, todos esses estilos podem fazer parte da ampla expressão "música sertaneja''. Quando o grupo foi convidado a tocar para os reis da Bélgica, este tipo de denominação causou insatisfação em Catulo da Paixão Cearense, que não considerava os Oito Batutas representativo de tal gênero musical. Vianna cita uma fala de Catulo sobre este fato: "Se desejavam que o rei conhecesse os nossos sertanejos e as canções da nossa gente, por que não me convidaram? [...]" (Vianna, 2002, p.116).
          O que se pode notar é que existia de fato um interesse pela cultura popular brasileira, que por vezes se confundia com o sertanejo "que por sua vez era identificado como folclore nacional'' (Viana, 2002, p. 116). Os Oitos Batutas estavam sendo requisitados. Várias pessoas do alto escalão político e da elite carioca passaram a freqüentar as salas do Cine Palais. Arnaldo Guinle logo financia uma excursão brasileira do grupo, que mais tarde iria tocar até na Europa.
          O samba evolui e é com ele que foi se dando a inserção da cultura negra na sociedade brasileira, sendo até certo ponto, uma tática de resistência. Muito embora o samba não deva ser entendido como um movimento, era uma forma de inserção da cultura negra nas camadas mais importantes da sociedade carioca. Este processo não se dá por uma via única, ou seja, negros na luta por aceitação, exemplo disto estava no "público" que freqüentava estes locais com sambas.
          Os freqüentadores das casas das tias provinham dos mais diversos espaços sociais e, mesmo atuando como espectadores, contribuíram para a disseminação da cultura popular em outras camadas sociais. Membros da elite como Irineu Machado e o futuro presidente da República Hermes da Fonseca são alguns exemplos de freqüentadores.
Assim como o papel que desempenharam os freqüentadores de salas de cinema, que apreciavam publicamente a música feita pelos negros do grupo Oito Batutas como Rui Barbosa, Ernesto Nazareth e Arnaldo Guinle. O que não quer dizer que a repressão à cultura popular e, principalmente, à cultura negra fosse inexistente.
          A cultura brasileira trata, desde já, de ser bastante heterogênea onde grupos e indivíduos de diferentes raças e interesses acabam por buscar uma convivência harmoniosa, por parte de alguns, diante desta diversidade cultural.

"Nenhum outro lugar do país apresentava no início do século XX um mundo popular tão buliçoso e com tanta presença no espaço urbano, do que são evidências as numerosas festas de largo, as procissões, as bandas de música, os terreiros de batuque, os cordões carnavalescos, as rixas de capoeiras, os espetáculos circenses, os teatros de revista, os encontros de chorões, as rodas musicais nas principais lojas do ramo..." (Carvalho, M.A.R., 2004, p. 41).

          O encontro que Hermano Vianna vai descrever em seu livro O Mistério do Samba, é um bom exemplo desta circulação cultural entre diferentes classes sociais. Os protagonistas Sérgio Buarque de Hollanda, Prudente de Moraes, neto, Villa-Lobos, Luciano Gallet e Gilberto Freyre, conhecidos por sua importância intelectual, encontram-se com Pixinguinha, Patrício Teixeira e Donga para uma ''noitada de violão''.

"O encontro juntava, portanto, dois grupos bastante distintos da sociedade brasileira da época. De um lado, representantes da intelectualidade e da arte erudita, todos provenientes de 'boas famílias brancas' (incluindo, para Prudentede Moraes, neto, um avô presidente da República). Do outro lado, músicos negros ou mestiços, saídos das camadas mais pobres do Rio de Janeiro" (Vianna, 2002, p. 20).

          Em razão da chegada de Freyre ao Rio de Janeiro, então com 26 anos e recém chegado dos Estados Unidos onde havia efetivado seus estudos, Prudente de Moraes encontra Donga e o convida para um encontro a fim de receber seu amigo. A importância do encontro - além claro, do fato de afirmar mais uma vez que embora houvesse um preconceito com tudo que lembrasse o popular havia também um movimento contrário de integração com estas culturas - reside na disseminação da valorização do negro e da cultura popular. O acesso a veículos de informação, que tanto Freyre - no seu jornal em Pernambuco e posteriormente com suas obras - quanto Sérgio Buarque e Prudente de Moraes - com sua revista Estética- usaram até certo ponto, serviu para "advogar idéias''. (Vianna, 2002, p. 27)
          Melhor exemplo disto está em Gilberto Freyre que ao chegar do Rio escreve o artigo Acerca da valorização do preto, de 1926. O artigo fala sobre este encontro musical com sambistas negros reaproveitando:

"A teoria dos dois Brasis antagônicos, popularizada principalmente por Euclides da Cunha. Existiria então para Gilberto Freyre, um Brasil 'oficial e postiço e ridículo' que 'tapa' o outro Brasil, este real, a ser 'valorizado' junto com o preto" (Vianna, 2002, p.27).

          Para Hermano Vianna estas posturas acerca da cultura popular por parte destes intelectuais irão ser de extrema importância no entendimento do samba enquanto gênero musical representante máximo de nossa cultura.

"Nunca existiu um samba pronto, 'autêntico', depois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização" (Vianna, 2002, p. 151)

          Assim se torna mais importante o entendimento da transformação do samba tanto musicalmente como em símbolo de brasilidade, do que debates referentes à verdadeira autoria de "Pelo Telefone'' e da origem do samba.

1.3. O samba atinge a maioridade

          Quando o Rio de Janeiro começou a "civilizar-se" e a população pobre foi jogada para os bairros mais afastados como o Estácio, e nas nascentes favelas cariocas, é que o samba rural baiano em contato com outras formas musicais vai se misturando e dando vida ao que chamam de "samba urbano". Aliás, o surgimento do samba urbano é um ponto de discussão, como logo veremos.
          No século XIX, várias transformações sociais tomam conta também das planícies da Tijuca, conhecida como Andaraí Pequeno, tornado um grande centro de atração de massas trabalhadoras provindas de outros estados. Já no ano de 1820 foi aberta uma fábrica onde se estampavam tecidos provindos da Índia; em 1854 estabelecia-se no bairro uma fabrica de rapé e tabaco, cujo nome era Borel. Na mesma época, por volta de 1870 começaram, por parte dos proprietários, os loteamentos de suas terras já visando os grandes fluxos populacionais do momento, que exigiam uma ampliação de habitações no bairro. É desta forma que surge o bairro de Vila Isabel que no início do século XX tem como pólo de atração a fábrica de tecido Confiança assim como seu vizinho, o Andaraí, a América Fabril. (Sevcenko, 1999, p. 61).
          A região compreendida entre o mangue São Diogo e os morros de Santos Rodrigues, São Carlos e Catumbi levava o nome de Estácio de Sá, por volta de 1865. A partir da década de 10 do século XX esta região começa a se desenvolver economicamente e nos anos 30 o Estácio já possuía um intenso movimento comercial e cultural (Lopes, 2003, p.41). Por volta de 1925 os morros próximos ao Estácio eram um forte reduto de cultura negra e de samba, devido também ao fato do forte relacionamento com as comunidades vizinhas.
          Há uma discussão acerca de como o samba deixa de ser aquele samba no estilo "rural'' ainda descendente direto da umbigada, para ser samba urbano. A "separação'', ao que se sabe, ocorre no fim dos anos 20, quando aquele samba feito na casa das "tias" por compositores como Donga, João da Baiana, Caninha e Pixinguinha ganha novos moldes e se difunde como sinônimo de samba moderno, conhecido também como samba urbano.
          Este tipo de samba fica conhecido em uma região bastante delimitada, o bairro do Estácio, onde figuras como Ismael Silva, Bide e Nilton Bastos circulavam facilmente.

"Berço do novo samba urbano, o Estácio não terá, todavia, exclusividade no seu desenvolvimento. Quase simultaneamente, o "samba carioca", nascido na 'cidade', irá galgar as encostas dos morros e se alastrar pela periferia afora, a ponto de, com o tempo, ser identificado como 'samba de morro'" (Paranhos, 2003, p. 3).

          Há pontos de vista conflitantes quando se trata de saber "desde quando o samba é samba", expressão utilizada por Carlos Sandroni em seu livro Feitiço Decente.
          É um processo de transformação bastante complexo e praticamente subjetivo, mas que se pode compreender através do entendimento dos lugares onde estes sambas eram praticados, quais seus personagens e objetivos, porque inevitável é perceber que o samba, com os passar dos anos, sofreu mudanças importantes em seu aspecto rítmico. Desta forma, antes de qualquer coisa, é importante entendermos que se trata de duas épocas diferentes e cujos contextos, até certo ponto, também são diferentes.

"O jovem Ismael e sua roda de camaradas do largo do Estácio (Bide, Baiaco, Brancura, Nilton Bastos, Francelino, Tibério etc.) freqüentavam morros vizinhos e até mesmo redutos negros mais distantes, como Irajá e Osvaldo Cruz. Certamente motivados pelo que viam nessas visitas, num sadio propósito de emulação, resolveram fazer um samba para sair às ruas e descer à cidade" (Lopes, 2003, p.46).

          É quase consenso hoje, entre os estudiosos de música popular, afirmar que o tipo de música feito na casa das tias não poderia ser considerado samba por estar próximo demais do maxixe, e que a confusão teria se armado quando acontece o registro de "Pelo Telefone'' já em 1917. O próprio Donga afirma que o "samba'' em questão era mais próximo do maxixe, "fiz o samba, não procurando me afastar muito do maxixe, música que estava bastante em voga'' (Sandroni, 2001, p. 133).

"O samba amaxixado ao estilo de Sinhô, por sua divisão rítmica, não se prestava para ser cantado com o grupo em marcha, em cortejo. E foi aí que as recém-nascidas embaixadas do samba - das quais a Deixa Falar, de Ismael e sua turma teria sido o primeiro exemplar organizado, apesar de autodenominado rancho carnavalesco - moldaram as novas criações musicais dentro desse espírito, com menos células rítmicas e linhas melódicas de maior extensão" (Lopes, 2003, p. 46).

          Enquanto é quase consenso o fato de não se tratar ainda de samba o que era feito na época de Donga, a briga persiste quando se discute então: quando ele se tornou samba? Para muitos, o samba se torna samba de verdade quando chega ao Estácio e assim ganha o grande público. É a velha discussão da transformação do samba em música popular que, para aqueles defensores dos sambas da casa das tias, não passará da transformação do samba em mercadoria.

"Mas esse samba do Estácio, que possibilitou a definitiva separação entre maxixe e samba, e que tanto sucesso fez no rádio nas vozes dos nossos melhores cantores e cantoras da época, foi um samba criado primordialmente para o carnaval, para acompanhar o cortejo de carnaval" (Fenerick, 2002, p. 112).

          Ocorre que, uma vez afirmando que o estilo musical praticado na casa da tia Ciata é de fato samba, acredita-se estar afirmando que a origem dele está vinculada à Bahia, tirando do Rio de Janeiro a paternidade do novo ritmo. Este seria na verdade o ponto, bastante subjetivo, de discórdia entre os grupos que ora defendem o samba verdadeiro como aquele praticado no Estácio, ora defendem como verdadeiro aquele que já era praticado na casa das famosas tias. Sandroni coloca que o jornalista Vagalume, nascido por volta de 1870, e, portanto bastante conhecedor de um estilo musical que viu nascer no Rio de Janeiro juntamente com seus amigos Donga e Sinhô, era um crítico ferrenho do novo estilo nascido no Estácio. "Para Vagalume, um representava a 'tradição', outro [feito no Estácio] a 'comercialização'. No momento em que escreve, o samba estaria sendo 'desvirtuado' pela ganância dos que viram nele uma fonte de renda." É o que Vagalume chamou de a "indústria do samba" (Sandroni, 2001, p. 135).
          O samba, aos moldes da casa da Tia Ciata, era feito em roda no melhor estilo samba umbigada, o que impossibilitava os desfiles carnavalescos, onde todos dançam simultaneamente, não mais em rodas e sim em blocos. Tal explicação é dada por Ismael Silva para justificar as mudanças ocorridas no samba e a necessidade do abandono do samba amaxixado:

"Quando comecei, o samba não dava para os agrupamentos carnavalescos andarem nas ruas, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava para andar. Comecei a notar que havia essa coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que o bloco vai andar na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: Bum bum paticumbumprugurundum..." (in: Fenerick, 2002, p.113).

          Claro que esta não é a única explicação para transformação rítmica do samba, apenas é a mais usada para tal. Sem aprofundar muito em tais questões, porque elas se fazem sem fim, é necessário a abertura deste parêntese, para entendimento posterior do Capitulo 3, onde se discutirá o nascimento da indústria cultural no Brasil.

"Em tempos de expansão da indústria fonográfica e da mercadoria disco, outras mudanças se processavam, contribuindo para maior adequação da música gravada às novas realidades" (Paranhos, 2003, p. 4) .

          O que temos enfim é uma nova modalidade de samba criado pelos cariocas, sobre aquele samba introduzido pelos baianos residentes no Rio, com várias influências:

"O samba encontraria sua forma mais autenticamente popular e carioca no estilo dos compositores do Estácio - estilo que passaria a ser, desde a década de 30, o dos 'sambas de morro', até hoje cultivado nos redutos das escolas de samba sob a denominação de 'sambas de terreiro'' - mas não deixa de ser curioso que o samba tenha seguido, de forma geral, um continuo processo de refinamento formal[...]. Este samba desceu o morro com Ismael" (História da MPB, 1982, p.7).

          É comum acordo entre vários autores, retratar que o samba urbano, enquanto um gênero musical, se referenciou nos núcleos negros responsáveis pela formação das "embaixadas", descendentes diretas de um rancho carnavalesco chamado Ameno Resedá que tinha como principal característica representar peças ambulantes. Estas “embaixadas”, que levavam este nome devido ao costume que esses grupos tinham de saírem visitando os outros grupos para fazerem acordos e estratégias, foi a forma encontrada, 35 anos após a abolição da escravidão, pelos negros que haviam migrado para a cidade do Rio de Janeiro de manter sua tradição artística sem sofrerem represálias e perseguição.
          Este novo estilo de samba logo despertou o interesse da indústria musical e chegou aos ouvidos de jovens brancos de classe média. Noel Rosa é o maior exemplo deste novo estilo de samba que passa a ser criado. Branco, universitário e de classe média, ele passa a compor suas músicas influenciado pelos sambas batucados no melhor estilo do bairro do Estácio. É quando surge o primeiro samba-canção, com melodia romântica e mais lento em sua composição, conhecidos como "canções de meio de ano". Estes sambas não fazem parte das produções do morro e a priori teriam como seus principais representantes compositores que sabiam "ler músicas'', uns até de formação erudita, como Ary Barroso.

"Isso se prenderia ao progressivo interesse demonstrado pelas novas camadas da classe média por tal gênero de origem popular, como seria desde logo demonstrado, em 1928, com a criação do samba-canção, imediatamente elevado à condição de forma musical revestida de alguma sofisticação pelo talento de compositores profissionais do disco e do rádio como Ary Barroso e Noel Rosa, a partir da década de 30" (História da MPB, 1982, p. 7).

          Na passagem das décadas de 20 e 30 o bairro de Vila Isabel também já era um reduto de músicos, lugar de encontro cultural do Rio de Janeiro, e são de lá músicos como Almirante, João de Barro, Francisco Alves etc. Não se buscava aqui a hegemonia com relação à apropriação de "bairro do samba'' como quiseram questionar alguns. O próprio Noel Rosa, pondo fim a este tipo de discussão, escreve "Palpite Infeliz":

"Quem é você que não sabe o que diz
Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém
Só quer mostrar que faz samba também (...)

A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?
"

          Importante dizer que a figura de Noel Rosa também serve como exemplo para aquilo que Vianna, em seu livro O Mistério do Samba', coloca acerca da circulação cultural:

"A vida e a obra de Noel Rosa fornecem um testemunho eloqüente do movimento de 'transregionalização' do 'samba carioca'. Nascido numa determinada região do Rio de Janeiro, o samba migra, num processo dinâmico de permanente recriação, para outras áreas da cidade" (Paranhos, 2003, p. 12).

          Outra forma de circulação cultural se dá pela constatação do movimento inverso que acontece com o samba-canção. A princípio, o samba-canção é dominado principalmente por alguns indivíduos de formação erudita ou que sabiam ler partituras, e mais tarde tal forma de samba se expande para as camadas mais populares, arrematando adeptos como Nelson Cavaquinho e Cartola. Além destes, outros importantes exemplos de intercâmbio cultural podem ser vistos nas parcerias de composições dos sambas.
          Nota-se que quando o dito samba moderno, ou samba urbano nasce também surgem com ele novos "redutos'', ou "lugares de adoração". Aparece agora o espaço social do "botequim" como local de sociabilidade e lugar privilegiado de se fazer samba. Como a música "Conversa de Botequim" de Noel Rosa e Vadico deixa bem claro:

"Telefone ao menos uma vez
Para 34-4333
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empreste algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali na frente
"

          O botequim aqui é retratado como "escritório", ambiente de diversão que também se transforma em ambiente de trabalho já que é lá, no próprio botequim, que os músicos são encontrados por seus possíveis empregadores. A música retrata um fato cotidiano na vida destes novos sambistas, onde a capacidade de circulação de pessoas das mais diversas classes sociais se dá de forma muito mais intensa e democrática que nas casas das "tias'' de outrora. É neste momento que também vai se dar a grande problemática acerca das autorias dos sambas. Era comum escutar que um samba fora roubado, já que em um ambiente de circulação tão generalizada, evitar estes "furtos'' era uma prática impossível.
          Outro aspecto importante, provindo do advento do samba urbano, é a figura do malandro. Este, apesar de sempre ter voz cativa na cultura popular, ganha vozes com o novo estilo. Antes, era comum escutar falar em sambas na figura dos "bambas", qualificação de sambista eficaz e destemido, agora o malandro é a expressão viva do sujeito carioca.
          Sua principal característica é a relação quase nula com o trabalho. Também não se pode deixar de falar da prática de golpes em uns "pobres coitados'' para "ganhar um troco'' e do fato de normalmente serem sustentados pelas mulheres. Boa descrição dos boêmios, freqüentadores de botequins que, se não viviam de samba, muito conviviam com ele.
          Já nos fins dos anos 20 esta figura começava a fazer parte do imaginário popular, embora as características definidoras de sua personalidade não fossem totalmente novas:

"A mais antiga alusão impressa que conheço à malandragem já tem relação com a música popular: trata-se da coletânea de modinhas e lundus de Eduardo das Neves, publicada em 1904, que se intitulava O trovador da malandragem" (Sandroni, 2001, p. 159)

          Mas é somente nesta época, fim dos anos 20, que o malandro se populariza e aparece como tema de samba, se tornando aos poucos sinônimo de sambista.
          Mais tarde, com a chegada do Estado Novo, a figura do malandro é perseguida e por conseqüência o samba passa a ser censurado em um movimento contraditório de firmação e negação.

Giovana Papini
(Publicado Originalmente no site Brasileirinho)

 

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