Duas ou três coisas sobre Dom Obá II, O príncipe do povo

 

          Foi muito mal contada essa tal de Guerra do Paraguai. Dela só sabemos o nome das batalhas (Riachuelo, Tuiuti etc.) e o nome dado a algumas ruas (Voluntários da Pátria, Almirante Barroso, General Osório). Mas ninguém sabe direito porque o Brasil, a Argentina e o Uruguai se uniram para massacrar o país mais autônomo, mais organizado da América do Sul. Setenta e cinco por cento da população morreu; só cinco por cento dos homens paraguaios sobreviveram.
          Para ir para a guerra o Imperador D.Pedro II criou os batalhões de Voluntários da Pátria. A guerra significou para os negros escravos a oportunidade da liberdade; para os negros libertos, a chance de ascensão e reconhecimento social, mesmo que para tanto tivessem que arriscar suas vidas.  A lei previa que escravos fossem à guerra em lugar dos seus senhores, em troca de liberdade. Para cada soldado branco iam quarenta e cinco soldados negros, muitos mestres de Capoeira da Bahia e de Pernada Carioca.
          Em Lençóis, no sertão da Bahia, também foi formado um batalhão de voluntários. E lá estava, à frente, o negro Cândido da Fonseca Galvão, que se auto titulava Dom Obá II (rei, em iorubá). Liderando o batalhão dos “Zuavos”, se destacou antes e durante a guerra, se tornando sargento e logo depois alferes. Ao voltar da guerra – vitorioso e ferido em combate passou pela Bahia e voltou para o Rio, onde passou a viver depois de conquistar todas as honrarias de herói de guerra junto ao Imperador  D.Pedro II, tendo que mantê-las muitas vezes no grito, na Quinta da Boa Vista
          Nesta época já estavam aqui os negros baianos que migraram da Bahia em razão da decadência da lavoura de cana, em conseqüência da queda dos preços internacionais do açúcar. Agora, era o tempo do café, e café era no Vale do Paraíba. Muitos ficaram aqui pelo Rio. Os baianos (Tia Ciata, Tia Bebiana , Hilário Jovino e milhares de outros) se instalaram nos bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa, em torno do porto e da Cidade Nova, que eram a parte mais pobre da cidade, chamada de África Pequena do Rio de Janeiro, em razão da maioria negra de seus moradores – ali onde nasceram Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Donga e tantos outros heróicos criadores e fixadores do samba carioca .

“O Rio de lá, luxo e riqueza,
O Rio de cá, só lixo e pobreza”.

          O Obá II era filho de africano escravo liberto e neto de um rei iorubá. Alto, forte, eloqüente e ousado, escrevia e se comunicava com desenvoltura. Era voz ativa na imprensa da então capital. Nas audiências públicas do Imperador na Quinta da Boa Vista, usava seu traje impecável de gala do exército brasileiro, com espada e tudo, inclusive nos dias santos e em dias de festa para a família imperial. Todo sábado estava com o imperador e ao entrar pela portão da Quinta, exigia no grito a “continência” dos sentinelas. Durante a semana desfilava pela África Pequena e pela cidade, de fraque, cartola, luvas brancas e “Pince-nez” de ouro. Conseguia espaço nos jornais, impressionava sua corte que nele via um príncipe; o reverenciava como a um rei, beijando-lhe as mãos em razão de seu “sangue azul africano”, seus feitos de guerra, sua altivez, suas relações com o Imperador e, sobretudo, sua liderança.
          Este era o nosso príncipe, uma figuraça! Príncipe que imperava absoluto sobre sua África Pequena no fim do século passado, antes da abolição. Subverteu seu destino. Se fez altivo, defensor de negros e pardos, criticando a barreira social e o estreitamento do mercado de trabalho para seus súditos negros. Sempre em defesa de seu povo, das populações negras oprimidas, jogadas às ruas sem qualquer qualificação profissional, descalças, sem proteção, sem trabalho digno, sem saúde e sem auto-estima.
          A elite local dizia que ele era apenas mais um louco a vagar pelas ruas da cidade. Mas isto não importa, não importa nada... O que importa é o que Dom Obá II representou para sua gente. Eles e eram tantos – o viam como sua referência, seu guia, sua esperança. Nutriam-se de sua irreverência, sua ousadia, sua coragem, sua altivez e de sua determinação. Um verdadeiro rei! Mas isto foi há muito tempo.
          Agora no carnaval, o morro da Mangueira vai descer soberano como o seu príncipe. E lá na Avenida, cada um de nós vai ser um OBÁ. E vamos dedicar nossa vitória ao príncipe dos esfarrapados, por sua luta, por sua vida... por sua memória.

Luís Carlos Magalhães Ribeiro
(Publicado originalmente na revista da Mangueira de 2000)

 

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