...E êxito

 

          Uma única nuvem entre o sol e eu provoca um calafrio na minha espinha dorsal. Ele me lembra a missão que me trouxe, mais uma vez, ao meu posto de observação vivencial, a Ponta do Leme, Copacabana, Rio de Janeiro.Estou devendo o outro lado da história, a outra face da moeda, o oposto da frustração que relatei no artigo que traz este nome...
          Vim falar do êxito. Inesperado, registrado, temido e, agora, comemorado.

Calendário Valeriano

          Ainda estou na Sapucaí. Peço desculpas pelo atraso cronológico, mas alguns fatos e sensações demoram um tempo para serem digeridos e, então, expostos. A ficha custa a cair... É como se, por alguma razão secreta, preferisse, primeiro compartilhá-los com meus vários eus e, assim, amadurecer suas conclusões. Se eu fosse jornalista (!) esta história perderia seu valor factual na segunda feira, após o desfile do sábado das campeãs. Como observadora da Ponta do Leme sou dona não apenas do meu espaço praiano, mas também, do meu próprio texto.
          Voltemos, pois à Sapucaí no sábado das campeãs. A próxima escola a desfilar é a Mangueira. Os portões da concentração ainda não foram abertos. Estava concentrada em de registrar os mestres das baterias, já sabendo que havia perdido as fotos do desfile da Portela, na segunda anterior, mas ainda fiel ao tema.

Na contramão

          Depois de fazer a série de fotos dos instrumentos da Mangueira, “armados” na concentração, voltei para a avenida com uma tremenda dor nos pés. Queria dar uma respirada antes da escola armar e do esquenta em frente ao Setor 1 (como se sabe, a arquibancada do povão), bem na entrada da pista.
          Passei pelos portões, que permaneciam fechados, pois ainda não havia terminado a apresentação da Beija Flor. Vários fotógrafos cruzavam comigo, indo na direção oposta. Como um cardume, eles corriam para fotografar a celebridade de plantão que se preparava para o desfile. Não dei a mínima atenção e, na contra-mão da correria, caminhei em direção ao primeiro recuo da bateria a metros e metros de distância.

O Som é o tom

          De repente, comecei a ouvir aplausos, gritos e assobios vindos do princípio da arquibancada. Virei para ver o que provocava o tumulto, que parecia me acompanhar pela pista. Eu andava, e o barulho ia junto. Certamente não era comigo.
          Pelo mesmo caminho que eu percorria, alguns metros atrás, ele vinha vagarosamente apoiado em sua bengala de madeira, disfarçado sob seu chapéu, trajado de verde e rosa. Como se nada estivesse acontecendo. Tranqüilamente, aparentando o mau humor lendário que já virou marca registrada. A arquibancada grita, agora, seu nome. Como se fosse torcida de futebol: JA-ME-LÃO, JA-ME-LÃO.

Hora da decisão

          Ele fazia de conta que não era com ele. A primeira coisa que pensei, ainda traumatizada com meu fracasso anterior, foi: “Não vou conseguir”. Mil empecilhos passaram chispando pela minha cabeça. “Os fotógrafos vão cercá-lo e tirar meu ângulo” Ninguém parecia ter notado o que estava acontecendo. “Ele vai parar para falar com alguém”. E Jamelão ali na minha frente. Impoluto e solitário. A arquibancada em peso ovacionava um dos personagens mais queridos e reverenciados do carnaval carioca. “O que faço?” pensei ainda medrosa. “Gravo este áudio, fotografo, faço tudo ou não faço nada?”.

O pedido

          “Moça!”, gritaram pela grade, “tira uma foto para mim”, pedia um, com a camisa da Vila. “É o Jamelão”, ele informou, dispensando maiores explicações para o pedido.“Fotografo”, decidi me enchendo de coragem.
          Peguei sua caminhada, ainda ignorando o tsunami que sua passagem provocava. O clamor – esta é a palavra – não mudou o ritmo dos passos de Jamelão até quase a metade da passarela em frente ao setor mais popular da Sapucaí.

A reverência

          Consegui registrar o momento em que ele resolveu se dar conta de que aquela gritaria toda era com ele. Jamelão parou, trocou algumas palavras com um conhecido que o cumprimentava, se virou e olhou para a multidão. Deu uns passos em direção a arquibancada e, de frente para ela, levantou sua bengala, colocou a mão no peito e, respeitosamente, baixou a cabeça saudando o povo que, agora, delirava diante da lenda mangueirense.

Lambe-lambe

          Eu, meio que não acreditando que estava no lugar certo, na hora exata, disparava a câmera. Concentradíssima. Foi quando ouvi as minhas costas, o homem pedindo de novo: “ Tira uma foto para mim...” e dei de cara com sua mão estendida entre as barras da grade agitando uma câmera descartável. Pensei comigo: “Se ganhei o presente, por que não compartilhá-lo?” Peguei a câmera do cara, corri para chegar mais perto, em busca de um ângulo bacana, de um Jamelão um tanto intrigado com minha movimentação e clic! Mais uma foto.
          Quando fui devolver o equipamento, outra mão, outro pedido, mais uma foto e muitos agradecimentos. Foram várias as fotos que tirei para muitas pessoas. Elas passavam suas câmera digitais, analógicas ou pré-históricas pelas grades. Eu, quando ia devolver uma, ouvia o pedido de outra pessoa e, quando via, estava me jurando “esta será a última” enquanto corria novamente em direção a Jamelão tentando achar a melhor foto por um novo visor.

A lenda

          Como já disse, foram várias fotos, até que ouvi de um Jamelão muito mal humorado: “Minha filha, não vai parar não?” Respeitei o pedido dele, pensando com meus botões “Senhor Jamelão, enquanto o senhor estiver parado aí eles vão continuar me pedindo para tirar fotos e, por uma questão de princípios, não vou recusar a gentileza”. Mas, da minha boca, não saíram estas palavras. O máximo que consegui dizer foi: “Só posso parar, quando o senhor andar...” Aí, acredite, ele riu e se foi em direção ao recuo da bateria.

O intérprete

          Na seqüência, ainda tive a chance de gravar o áudio do esquenta da Mangueira e ouvir a voz de Jamelão ecoando na Avenida “mangueira teu cenário é uma beleza...” Beleza mesmo foram os momentos em que parte deste cenário esteve ali, bem pertinho, só para mim e todo o povo do Setor 1.
          Já sei. Você quer saber se o êxito foi completo, ou se, como na Portela, nadei, nadei e morri na praia. Foi tudo, meu caro leitor. É o todo. E pode ser apreciado no delcueto de sempre, onde deságuam a frustração e também o êxito, na medida em que a vida vai se apresentando aqui na Ponta. Do Leme...

Valéria Del Cueto
Valeria del Cueto é jornalista e cineasta
(Publicado originalmente no site da autora [http://delcueto.multiply.com] em 21 de abril de 2006)

 

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