A Cidade do Samba – Na Paisagem da Gamboa, as Novas Fábricas de Sonhos para o Carnaval Carioca.

 

Entroito: A ocupação da Cidade do Samba

          Setembro de 2005 – as Escolas passam a ocupar a Cidade do Samba, destinada a ser distrito industrial e centro de atração turística.
          A mudança pretende por um ponto final no sistema improvisado que caracterizou tanto o Pavilhão de São Cristóvão quanto os galpões da Companhia de Docas.
          Devem ser chamadas de Fabricas de carnaval - 14 fábricas de 7.200 metros quadrados  cada uma, o dobro do espaço dos barracões.
          1º pavimento – garagem – onde são construídos os carros – 12 m altura, 11 metros de espaço disponível, dotado de monovias para transporte das esculturas.
          A altura é superior a torre de TV do Sambódromo, o carro poderá ser montado no tamanho final e não em 3 partes como é ate agora, e ir desmontado para a avenida.A garagem pode abrigar 12 alegorias, mesmo que o regulamento exige até 8.
          Não temos mais alegorias espremidas, pouca segurança. Os pilares são de estrutura metálica, possibilitando uma altura bem maior.
          No segundo piso ficarão os ateliers, salas de administração, refeitórios etc.
          O mais importante, a circulação do ar, programou-se o espaço para que o ar circule, gerando um microclima agradável de ate 30 graus mesmo no verão.
          Cada fábrica tem cinco portões de 10 m de largura.
          Haverá uma passarela externa para turistas observarem como é feito o carnaval.
          Museu do carnaval, livrarias, bares e shows de samba no pátio interno.

Rio de Janeiro – O cenário de vários carnavais.

          O carnaval brasileiro é sinônimo de identidade nacional, em conjunto com o futebol, esporte das multidões, e sobre ambos recai a complexa tarefa de construir a imagem sedutora da maestria de fazer espetáculos que marca principalmente o Rio de Janeiro como centro cultural e turístico. Nesta cidade uma variedade de manifestações carnavalescas teve origem no período colonial, diferente dos dias atuais, em que o carnaval se restringe a apresentações locais de Bandas, Blocos de empolgação, Grupos de Clóvis e Concursos de Coretos nos subúrbios, Bailes em Clubes e sobretudo, o desfile das Escolas de Samba . Estes festejos carnavalescos localizam-se nos subúrbios, em locais do centro da cidade, na Avenida Marquês de Sapucaí e nos últimos anos, em bairros da Zona Sul com  a retomada das grandes Bandas e Blocos, retrato da revitalização de uma folia que se julgava extinta e que ressurge vigorosa em sua liberdade de confraternização, opondo-se ao evidente profissionalismo  das grandes Escolas.
          A mistura de etnias, religiões e camadas sociais impulsionadas pelas migrações e fixações no cenário urbano desde a época colonial, determinou que o carnaval carioca engendrasse disputas por espaços para a festa, desde as primeiras batalhas do Entrudo[1] nas ruas do Centro, até que a modernização da cidade viesse predispor à brincadeiras mais civilizadas. O Entrudo constituiu a primeira forma de anulação temporária de distinções sociais, sua repressão espelha a necessidade premente de ordenação dos folguedos que foi ditada pelo redirecionamento de bairros e ruas do Rio de Janeiro e a redistribuição de sua população. A burguesia desfrutava seu carnaval nos salões e teatros, organizando as primeiras festas em ambientes fechados, e em desfiles de Corsos, com animadas batalhas de confete. Nas ruas, cucumbis, cordões e jongos se misturavam ao Zé Pereira, em manifestações simultâneas  que estimularam a luta da imprensa e do poder público pela ordenação de um novo carnaval de rua mais condizente com a modernização da capital. Essa ordenação também se refletiria no aprimoramento teatral dos desfiles das Grandes Sociedades e os Ranchos Carnavalescos que passavam então a dominar o cenário urbano.
          A cidade do Rio de Janeiro serviu de berço e cenário para as vertentes geradoras do desfile de Escolas de Samba  – os batuques africanos, os Ranchos de Reis da Bahia,  a dança dramática dos cucumbis, feitas por grupos de negros, o modelo processional das Grandes Sociedades e o movimento dos sambistas da Praça Onze. O fenômeno das Escolas de Samba, amplamente debatido na literatura acadêmica e na crônica carnavalesca[2], demonstra como correntes culturais[3] podem estabelecer fronteiras entre diferentes graus de concentração de modelos de convivência e conhecimento e manipulá-los, configurando uma grande rede de trocas e afirmação de identidades. Os grupos negros da Bahia, os imigrantes nordestinos e de outras regiões, as comunidades pobres cariocas, os artesãos, artistas e músicos, bem como o povo que participava da festa carnavalesca, se reuniriam em torno das Escolas de Samba, tornando-as um evento urbano que amadureceu dos anos 30 aos anos 50 e iniciou sua trajetória rumo ao desfile/espetáculo nos anos 60.
          A própria geografia urbana do Rio de Janeiro, tão peculiar, serve de metáfora para estas correntes culturais, onde verdadeiras “correntezas” intermitentes de conhecimentos locais, heranças étnicas e religiosas e expectativas de ascensão culminam numa festa mestiça de raízes espalhadas pela malha urbana.
          Este artigo pretende apresentar uma síntese da trajetória das oficinas e galpões, que servem de bastidores do espetáculo que também peregrinou pelas ruas da cidade, fixando-se na Marques de Sapucaí, enquanto que, vinte anos após a criação do Sambódromo, encontram os Barracões seu local definitivo na Zona Portuária da Gamboa.

O Desfile atravessa a cidade buscando seu palco

          Clifford Geertz[4] tem influenciado muitos historiadores e antropólogos quando afirma que o estudo de uma cultura é sobretudo a sua interpretação, tendo em vista que esta se constituiu em um emaranhado de significados que a própria sociedade humana constrói, cabendo ao pesquisador desvendar quais os meios com que sociedades complexas podem ser compreendidas e portanto, explicar nosso passado e nosso presente. A historia das Escolas de Samba está intimamente entrelaçada com os roteiros que seu desfile seguiu na malha urbana carioca, e também os locais que foram utilizados – e não construídos para este fim – para abrigar os Barracões e ateliers onde eram elaborados e ate hoje ainda são confeccionados os elementos visuais de seus desfiles. Tanto o “palco”, chamado de “avenida”,  como os “bastidores” ou “barracões”[5], são portadores de informações não só sobre seus aspectos materiais, como elementos arquitetônicos criados ou simplesmente sub-utilizados, mas também demonstram a complexidade de compreendê-los como uma arquitetura construída em sub-locações que acompanharam as transformações do desfile em espetáculo.
          Neste sentido, a construção do Sambódromo e a utilização do Pavilhão de São Cristóvão, dos Galpões e Armazéns da Zona Portuária e a Cidade do Samba representam uma realidade cultural de concessões e conquistas que espelham o quanto ainda se pode, através da história da cidade, compreender sua maior festa urbana popular, o carnaval. Se a arquitetura e a cultura estão intimamente relacionadas, cito Argan para explicar um dos pontos fundamentais para se compreender o carnaval através de edificações:

“Por definição, arquitetura é tudo que concerne à construção, e é com as técnicas da construção que se institui e se organiza o ser, e em seu devir, essa entidade social e política que é a cidade. A arquitetura não só lhe dá corpo e estrutura, mas também a torna significante com o simbolismo implícito em suas formas. Assim como a pintura é figurativa, a arquitetura é representativa por excelência.”[6]

          Assim como as Grandes Sociedades, cujos primeiros barracões estavam localizados em galpões próximos a Praça Mauá, pela facilidade de acesso ao centro da cidade pela Avenida Central, as Escolas de Samba buscaram instalar suas oficinas de criação em espaços condizente com o tamanho de seus desfiles e de fácil acesso aos locais de apresentação. Quando inicialmente apresentavam-se na Praça Onze, e eram mais encontros de competição sem qualquer participação do poder público ou organização como a de outros préstitos carnavalescos, estes espaços não requeriam grandes proporções, tendo em vista que as primeiras alegorias só surgiriam no final dos anos 40 e seu tamanho não exigia espaços extensos[7].
          Em sua origem, o objetivo dos primeiros grupos de sambistas era mostrar a maestria em elaborar suas composições, mas o Bloco “Deixa Falar”, nascido na Praça Onze, já reunia esta e outras características embrionárias das Escolas de Samba que  durante a década de 30, com a maior complexidade de sua apresentação, iniciavam sua busca por espaços que melhor servissem aos componentes e ao crescente público que as assistia. Acompanhando a diversificação de classe na sociedade carioca, o carnaval também muda, conforme surgem as primeiras indústrias e a  multiplicação de serviços públicos como bondes, luz e gás. Em 1932 dois pólos concentram as principais manifestações do carnaval: o dos “pobres” na Praça Onze, e os da classe média, na Avenida Rio Branco, que ao ser aberta, desloca estas comunidades para a Praça Onze, onde se concentravam as comunidades de negros, mestiços, brancos mais humildes e indivíduos residentes no Centro, Saúde, Gamboa e Santo Cristo, bem como  os moradores do morro da Favela, do Telégrafo (hoje Mangueira) e da Cidade Nova na região da Central.
          Desde 1935, com a oficialização do desfile as apresentações aconteceram na Praça Onze até o ano de 1942, quando as escolas desfilariam em meio às obras de abertura da Avenida Presidente Vargas.[8] Até que no período de 1973 até 1983 se fixa o evento na Avenida Marquês de Sapucaí, quando então seria construída a Passarela do Samba, chamada de “Sambódromo”, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, que determinou  o local definitivo para o espetáculo. O Sambódromo terminou com os altos custos de montagem e desmontagem das arquibancadas, inicialmente feita em madeira e depois combinando madeira e tubulação de ferro, processo que além de dispendioso causava transtornos no trânsito urbano. Embora beneficiando o carnaval neste sentido, o Sambódromo demonstrou deficiências que até hoje não foram sanadas, tais como o transporte de grandes carros alegóricos até a pista do desfile, concentração dos componentes nas ruas adjacentes ao local, e a armação e dispersão das Escolas, etapas que envolvem tensão e rápida solução de problemas.

A ocupação do Pavilhão de São Cristóvão

          Historicamente todos os grupos que se associaram para produzir eventos carnavalescos sempre dispuseram de espaços improvisados para execução de seus elementos visuais. Este caráter de improviso só mudaria de maneira sistemática a partir da década de 50, com a aplicação de uma visão teatral para a concepção de figurinos que dessem maior unidade visual ao desfile, o que exigiria centralização de sua produção ou uma melhor ordenação desta. A confecção de carros alegóricos também era feita em galpões e armazéns, e sua proximidade aos locais do desfile dependia muito das condições econômicas de cada agremiação, tendo em  vista que o poder público destinava verbas para a elaboração do carnaval sem considerar os locais onde seria produzido.
          Se o local das apresentações obedecia a normatização dos organizadores oficiais do carnaval, os Barracões respeitavam a uma regra mais simples: a proximidade e a facilidade de transportar pela via urbana os carros alegóricos. Construído em 1960, o Pavilhão de São Cristóvão inicialmente foi destinado a ser Centro de Exposições, e passou a abrigar os barracões das Escolas de Samba no final dos anos 70,constituindo assim o único espaço a administrar a convivência de várias equipes trabalhando simultaneamente. Pela sua localização no bairro de São Cristóvão, tornou-se um local privilegiado para os trabalhos ali executados devido a  proximidade e as vias de acesso ao local do desfile.
          Em 1991, realizando pesquisa de campo em Barracões QUE dividiam o espaço do Pavilhão, observamos durante dois anos o trabalho das equipes das Escolas de Samba Portela, Imperatriz Leopoldinense entre outras[9] que ocupavam o Pavilhão, administrado por um grupo de funcionários da Prefeitura. As divisões do espaço eram coerentes com o poder econômico de cada Escola, e estas eram separadas por tapumes de madeira e portões. Geralmente havia uma pequena sala que acumulava as funções de secretaria, atelier do Carnavalesco e sala do Presidente.  Os tapumes de madeira, que demarcavam cada barracão, formavam um intrincado labirinto provido de placas para orientação dos visitantes. O Pavilhão se apresentava como um microcosmo que refletia os vários rituais relacionados à produção do desfile e alguns acontecimentos tornavam-se “tradicionais” e esperados com ansiedade pela sua comunidade;  o mais notório deles era o teste feito com o Abre-alas da Portela: A Águia. Cercada de mistérios quanto a sua elaboração, deveria passar pelo teste de som semanas antes do carnaval, e o momento era aguardado com grande expectativa,  por si só constituindo um espetáculo a parte, pelos movimentos executados pela alegoria em direção ao teto parabólico do Pavilhão e sobretudo pelos gritos por ela emitidos e que podiam ser ouvidos nas cercanias do bairro de S. Cristóvão.
          Embora a localização da produção do desfile fosse feita numa estrutura com muitas deficiências, desde as físicas, como o intenso calor e a fragilidade da cobertura em períodos de chuvas intensas, até as de saneamento básico e segurança de trabalho, o Pavilhão durante um longo período centralizou, como um parque de produção, a maioria das Escolas de pequeno, médio e grande porte. Ainda nos anos 90 a Prefeitura e a Companhia Docas estabeleceu contratos de aluguel para as Escolas do Grupo Especial nos Armazéns do Cais do Porto, de dimensões bem superiores ao Pavilhão e com a vantagem de um espaço de trabalho que poderia ser melhor setorizado conforme as necessidades particulares de cada atividade. Enquanto a quadra de uma Escola de Samba é a guardiã da vida social da Escola, e está sujeita a programações fora do ciclo carnavalesco, no Barracão todas as atividades estão submetidas a este ciclo, que vai do lançamento do enredo à produção final das alegorias, ou seja, todos os passos necessariamente levarão ao espetáculo.
          Nos desfiles atuais, em que os carros alegóricos chegam a ter a extensão de 70 metros, é fundamental que este transporte seja planejado minuciosamente desde a saída do barracão, feita com antecedência que é estabelecida em função do horário da apresentação. Ter uma estrutura organizacional competente é um principio básico para que estas etapas, conjugadas à outras, sejam cumpridas a contento. O Barracão não produzirá apenas algumas alas, adereços e alegorias, pois o seu produto maior é a própria Escola em desfile. Nos Armazéns do Cais do Porto algumas Agremiações não se limitaram à ocupação pura e simples, mas investiram também na preservação e melhorias físicas, como a GRES Imperatriz Leopoldinense, cujo armazém que ocupa se diferencia radicalmente de suas vizinhas, a Unidos do Viradouro e a Beija-Flor de Nilópolis. O cais do porto é, portanto, o último estágio de sublocações onde os Barracões ocupam uma arquitetura já existente, tão adequada as suas necessidades que servirá de modelo, conforme previsão dos arquitetos autores do projeto, João Uchoa e Victor Wanderley[10], para as “Fábricas de Sonho” do complexo chamado Cidade do Samba.

A Zona Portuária da Saúde/Gamboa – Memória do trabalho e reduto do samba

          Historicamente a zona portuária do Rio de Janeiro é uma das áreas onde se observam intensas mudanças no espaço urbano. Região consagrada como memória viva da cidade por sua ambientação e preservação do passado, ao mesmo tempo apresenta a modernização do porto, resultado de um amplo aterro que alterou sua fisionomia e redefiniu geográfica e economicamente os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Hoje a Zona Portuária congrega o passado distante, visível nos casarios e ladeiras de calçamento em pé-de-moleque de seus morros com a modernidade de indústrias e vias urbanas que ligam o centro aos bairros da zona norte e também ao outro extremo da Baia de Guanabara, pela Ponte Rio-Niterói.
          A cidade colonial, modernizada e higienizada, foi se adequando às necessidades de uma grande metrópole que com o porto, se inseriu no circuito internacional de produção econômica. Mesmo com a  remodelação urbana, os labirintos topográficos dos morros guardam muito da memória colonial, nas ladeiras e escadarias, pequenas praças, largos, travessas e becos encontrados em redutos estritamente residenciais. Na nova orla concentraram-se moradia e trabalho, tradições que se perpetuaram nos casarios, batuques, blocos, ranchos e clubes de futebol que conviviam com a centralização de atividades econômicas típicas do porto. Esta relação entre trabalho e expressão popular confere à região a dimensão de pólo cultural que vem sendo resgatado e revitalizado já com a utilização dos Armazéns como Barracões de Escolas de Samba. Originalmente destinados à estocagem de mercadorias, bens e cargas, foram substituídos por contâiners e outros meios para viabilizar as operações portuárias. Em função de seu esvaziamento, e estando disponíveis para novos ocupantes, não só as Escolas de Samba sublocaram os armazéns, mas outras instituições culturais também se voltaram para a zona portuária, num esforço de criar ali um pólo cultural que convivesse com o centro industrial que não foi totalmente desativado.[11]
          Os Armazéns, conjunto de grandes galpões que margeia a Avenida Rodrigues Alves, muitos em estado de total abandono, representam o passado industrial e o presente de uma região com potencial de transformação.  Utilizá-los como barracões não os transformou necessariamente em edificações para esta finalidade, mas aproveitaram-se as condições físicas adequadas às proporções cada vez maiores das alegorias e elementos escultóricos, bem como a necessidade de se agrupar num mesmo espaço atividades simultâneas. Divididos em dois andares, com pé direito de grandes dimensões e a possibilidade do uso de guindastes que movem  para á área externa gigantescos cavalos, demônios ou arcanjos, os armazéns fervilham durante o ano inteiro de atividades que chegam ao clímax nos meses que antecedem o carnaval. As proporções das esculturas muitas vezes exigem um espaço de grandes dimensões para conter cada uma de suas partes, que será montada sobre o carro alegórico. Nesse sentido os mezaninos dos armazéns atendem a esta necessidade por serem espaçosos, e ainda comportarem os setores vitais como moldagem de acetato, modelagem de fibra de vidro e empastelamento das peças escultóricas. Por sua adaptação aos modos e meios de produção dos elementos visuais do desfile, estes grandes edifícios serviram de modelo para os 14 galpões que formam o conjunto arquitetônico chamado Cidade do Samba, cuja construção se iniciou em 2003 com prazo de término previsto para setembro de 2004.

A Cidade do Samba: Fábricas e Parque Temático para o carnaval carioca.[12]

“A Cidade do Samba é perfeita, melhor seria impossível. Por mais de um ano os arquitetos visitaram barracões colhendo detalhes sobre a linha produção de alegorias. O resultado aí esta: um trabalho de altíssimo nível, que proporcionará às Escolas fazerem um Carnaval mais bonito e, provavelmente mais barato.”

Heitor de Oliveira, presidente da GRES Grande Rio[13]

          O projeto da Cidade do Samba reúne dois conceitos que não são excludentes no carnaval: o “trabalho”, que ocupará os novos galpões e a “cultura popular”, com a qual artistas, sambistas, empresários e investidores reinventam anualmente o desfile transformando-o no espetáculo de massas que domina o período carnavalesco. Construída numa área de 78 mil metros quadrados, entre o morro do Pinto e a Avenida Rodrigues Alves, próximo aos Armazéns 10 e 11, num terreno[14] adquirido da rede Ferroviária Federal, ela ocupa um espaço considerado estratégico e privilegiado por várias razões. Estratégico no que se refere às vias de acesso ao Sambódromo, respeitando roteiros já consagrados para o deslocamento dos carros alegóricos e sua proximidade com o centro comercial onde mantém o entrosamento com fornecedores de materiais e equipamentos. Privilegiado pela localização próxima ao Porto e Rodoviária, o que consolidará o local como centro cultural e turístico de fácil acesso. Os Barracões já demonstram esta vocação, sendo atualmente visitados por grupos de turistas e  constituindo numa atração que poderá ser “programada” no contexto de um Parque Temático, um dos objetivos a serem alcançados pelo novo complexo.
          Acompanhar montagem e testes dos carros alegóricos, assim como já ocorre com os  ensaios técnicos que  acontecem no Sambódromo, pode vir a se tornar um evento oficialmente inserido na programação carnavalesca. A Cidade do samba, além de ser uma reivindicação antiga de todos os que trabalham nas Escolas de Samba, é uma necessidade que aumentou na medida em que o espetáculo por elas produzido se tornou mais complexo não só em suas dimensões físicas, mas pela tecnologia empregada em sua elaboração e execução. Somam-se assim dois objetivos: a construção de espaços adequados a um modelo de produção industrial, com segurança, conforto e reengenharia de sua organização, e também o desenvolvimento de um centro de entretenimento que poderá manter a continuidade do calendário carnavalesco da cidade além do estabelecido.
          A revitalização da zona portuária firma com a Cidade do Samba a idéia de que a continuidade de eventos beneficia os bairros da região e também as Escolas de Samba, que aproveitam a vocação de seus barracões como atração turística enquanto ampliam a capacidade de geração de empregos, fixação de mão de obra e redução dos custos do empreendimento. Transformar um espaço de trabalho em espaço de turismo ainda mais quando se trata de atividades que envolvem segredos sobre a originalidade de cada desfile, que deve superar a apresentação anterior, demanda algumas questões a serem analisadas. Se as condições de trabalho implicaram historicamente na superação de obstáculos como o esgotamento dos atuais espaços que não mais comportam o número e tamanho de alegorias, a pouca segurança e instalações desconfortáveis pelas altas temperaturas dos barracões, um novo espaço pretende suprir estas deficiências e ao mesmo tempo transformar a própria produção num evento público, o que certamente levanta o problema de se manter o sigilo sobre surpresas e efeitos especiais que demandam as exigências de originalidade e criatividade exigidas pelo regulamento do desfile.
          Ao explicar estes objetivos, César Maia, atual prefeito do Rio de Janeiro, afirma que:

 “A Cidade do Samba e o Sambódromo são dois equipamentos que se complementam. O samba passa a ter o seu parque temático, que será uma fábrica de criação de cultura popular, (...) construído em solo sagrado, no bairro onde nasceu o samba carioca, situado na Zona Portuária do Rio, aonde chegam cerca de 120 mil turistas por ano em navios e que certamente irão conhecer o nosso Parque Temático[15]

          Caracterizados pela diferenciação física de suas atrações, os Parques Temáticos[16] tem como objetivo mercadológico o estímulo da atividade turística, e os centros urbanos tendem a concentrar boa parte da indústria do entretenimento no Brasil, fato explicado pela proximidade dos consumidores a que se destinam. O sucesso deste empreendimento se dá pela criação do hábito do consumo dos eventos, o que há alguns anos vem sendo também aplicado ao carnaval carioca na medida em que todas as etapas de sua produção estimulam o comparecimento e participação do público. As Escolas de Samba tradicionalmente transformam estas etapas em fontes de renda, desde a apresentação de enredos nas quadras, desfiles de protótipos, escolha do samba-enredo, festas de alas da comunidade até os  ensaios técnicos feitos nos bairros de suas sedes. Todo o processo apresenta uma sistemática de apresentações e clímax que mantém alta a visibilidade de cada Escola e do carnaval como um todo.[17]
          Os últimos estágios deste processo são os ensaios técnicos organizados pela RIOTUR e pela Liga Independente das Escolas de Samba no Rio de Janeiro, na Marquês de Sapucaí nos meses que antecedem o carnaval e que se tornaram parte do calendário, com arquibancadas abertas ao público e, em um futuro próximo a transformação da  a Cidade do Samba em pólo turístico. Se na realidade há uma resistência natural quanto à circulação de público visitante nos barracões, por questões de segurança e organização dos trabalhos das equipes, deve-se considerar o impressionante poder de adaptação das Escolas de Samba quando se trata de absorver inovações em seus mecanismos de sistematização de atividades. O esquema do projeto da Cidade do Samba prevê além dos galpões, áreas para shows, instalação do Museu do Carnaval, praça de alimentação e lojas para vendas de produtos das Agremiações, o que pretende adequar o complexo aos objetivos a que se destina.
          Segundo Bayard Boiteux[18], o carnaval carioca demonstra ser o evento com maior possibilidade de crescimento como entretenimento turístico, que caminha velozmente para se tornar um “evento sistematizado, bem administrado e com resgate popular”. Se por um lado, o profissionalismo dos barracões se reflete em outros segmentos da festa, certamente o Rio de Janeiro vem resgatando o carnaval de rua através de bailes populares, blocos, coretos, o Terreirão na Praça Onze e os ensaios técnicos do Sambódromo. O enriquecimento dos carnavais de rua depende da participação comunitária tanto local quanto aquela que é atraída pela consagrada congregação popular carnavalesca. É quando a festa urbana e seus atores sociais se apropriam de mais tradição a ser reinventada[19] num processo de produção de tradições que se naturalizam e são formalmente institucionalizadas. Este procedimento das Agremiações e de seus organizadores compõe um quadro de manipulação de valores, normas e modelos que por sua repetição estabelecem apropriadamente uma continuidade com o passado.
          A Cidade do Samba implicará em novos processos de adequação – de espaço, local geográfico, forma de ocupação e convivência. A ocupação já é um problema a ser pensado, tendo em vista que a cada ano a Escola que sai do Grupo Especial como última colocada deve desocupar a sua fábrica e dar lugar a outra. Será interessante observar o desenvolvimento deste projeto cuja idéia é antiga e coroa as estratégias de uma cultura organizacional criadas pelos dirigentes da LIESA[20]. Temos assim a oportunidade de investigar o nascimento de novas tradições e também um exemplar modelo de reordenação que desta vez atinge o espaço vital de criação e elaboração dos elementos visuais do desfile, cujo sigilo poderá ou não desaparecer, substituído por vitrines destinadas aos turistas e curiosos em ver como se “faz um carnaval”. Em troca de maior conforto, segurança, espaços próprios para mini-desfiles, museu e ensaios, e principalmente uma tecnologia que dá condições à construção de alegorias em tamanho real dentro das instalações, as Agremiações deverão conviver com novos códigos de conduta que mais uma vez mudam os padrões de sua autonomia e iniciam mais uma etapa na revolução contínua da produção do maior espetáculo da terra.[21]

Referências Bibliográficas

  1. ARAUJO. Hiran, - Carnaval: Seis Milênios de História. Rio de Janeiro:Griphus,2000.
  2. ARGAN. Giulio C. – História da Arte como história da Cidade. São Paulo:Martins Fontes, 1995.
  3. AUGRAS. Monique, -  O Brasil do Samba Enredo. Rio de Janeiro:Editora Fundação Getúlio Vargas,1998.
  4. BARTH. Fredrik, - O Guru, o Iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:Contracapa,2000.
  5. BOITEUX. Bayard, WERNER.M., Promoção, entretenimento e planejamento turístico. S.Paulo:Aleph, 2002.
  6. CABRAL. Sergio, As Escolas de Samba  do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro:Lumiar, 1996.
  7. Cavalcanti. Maria Laura V. de Castro, - Carnaval Carioca: Dos Bastidores ao desfile. Rio de Janeiro:Funarte, 1994.
  8. GEERTZ. Clifford, - A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan, 1989.
  9. HOBBSBAWN.E., & RANGER. T. “Introdução: A Invenção das Tradições” in A Invenção das Tradições. S.Paulo:Paz e Terra,1997.
  10. LIESA NEWS, in http://liesa.globo.com/ Noticias – LIESA.NET, “Escolas devem ocupar Cidade do Samba em Setembro”, Rio de Janeiro – 06/06/2004.
  11. MAIA. César, - “César Maia lança a pedra fundamental da Cidade do Samba” in Noticias/2003 – http/:www.cesarmaia.com.br.
  12. MORAES. Eneida, - História do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro: Record,1987.
  13. NETTO. A.P., TRIGO. L.G.Godoi, - Reflexões sobre um novo turismo: Política, ciência e sociedade. S.Paulo:Aleph,2003.
  14. VERGARA. C, MELO MORAES.C.,PALMEIRA. P.L. A Cultura Brasileira revelada no barracão de uma Escola de Samba :o caso da Família imperatriz, in Cultura Organizacional e Cultura Brasileira.S.Paulo:Atlas,1997.
  15. PAIVA.Maria das Graças. – Sociologia do Turismo. Campinas, S.P.:Papirus.1998.
  16. Revista Ensaio Geral – Informativo da LIESA, Ano VIII, no 12, dezembro de 2003, Rio de Janeiro:Iriseditora.

[1] O Entrudo,  herança ibérica, foi  trazido pelos colonizadores sob a forma de brincadeiras nas ruas e dentro dos sobrados, onde se travavam batalhas de farinha e outros materiais. Não era organizado ou possuía qualquer tipo de ritmo musical, e caracterizava-se pelo desregramento e violência nos três dias que antecediam o início da Quaresma.

[2] V. a prop., Queiroz, M.I.P., Carnaval Brasileiro, Araújo, Hiran. Carnaval: Seis Mil Anos de História.,Augras. M. O Brasil do Samba-enredo, Cabral, Sergio. As Escolas de Samba  do Rio de Janeiro.,Costa, H. 100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro, Moraes.Eneida, - Historia do Carnaval Carioca.

[3] Barth. Fredrik. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.

[4] GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989, p.15.

[5] Os barracões  tem sido  objeto de alguns trabalhos acadêmicos que analisam a sua organização social e administração, ver a propósito: Cavalcanti. M.L.C. – Carnaval Carioca:dos Bastidores ao desfile.Souza.H.., Engrenagens da Fantasia:Engenharia,Arte e Convivência. VergaraS.C,;Melo Moraes,C. Palmeira P.L. A Cultura Brasileira revelada no barracão de uma escola de samba: o caso da Família Imperatriz, in Cultura Organizacional e Cultura Brasileira.

[6] Argan, G. C. História da Arte como história da cidade. São Paulo:Martins Fontes, 1995. p. 244.

[7] As primeiras alegorias das Agremiações seriam montadas em simples garagem ou quintais nos terreiros dos morros, e muitas vezes em terrenos baldios próximos à Praça Onze, com a devida segurança feita pelos próprios integrantes de suas comunidades, que se encarregava não só de criar, executar e decorar,mas também prover o material e as técnicas para acabamento dos elementos visuais.

[8] De 1943 ate 1945, período chamado de “carnavais de guerra”, o desfile é realizado na Avenida Rio Branco próximo ao Obelisco, e de lá se mudaria para a Avenida Presidente Vargas, quando, em 1952 o Poder Público constrói o  “Tablado”, entre a Rua Uruguaiana e a Avenida Rio Branco [8].  Somente em 1957 é que as Escolas de Samba do Grupo I se apresentam no espaço nobre do carnaval carioca: a Avenida Rio Branco. Em 1963, novo deslocamento levará o desfile para a Avenida Presidente Vargas, no trecho entre a Avenida Rio Branco e a Rua regente Feijó;em 1974 e 1975, com a construção do metrô e interdição da Presidente Vargas, o desfile é levado para a Avenida Presidente Antonio Carlos, retornando a Presidente Vargas nos anos de 1976 e 77,

[9]Outras escolas:Leão de Iguaçu, Estácio de Sá, Unidos do Jacarezinho, Santa Cruz, Lins Imperial, Arranco do Engenho de Dentro, União da Ilha do Governador citando apenas parte das que ocupavam o local. Anteriormente, em 1989, já conhecia profundamente as instalações devido ao desenvolvimento do carnaval da GRES Unidos de Santa Tereza, onde trabalhei como Carnavalesca. O barracão desta escola estava localizado na quadra de uma escola do município, no bairro do Engenho de Dentro, e minhas visitas ao Pavilhão se destinavam a coletar doações das Agremiações para confecção do carnaval realizado para o desfile do Grupo B, de 1990. Apesar de terem suas fronteiras delimitadas por tabiques e algunas salas construídas em madeira, o termo “barracão” continuava a ser o usual.

[10] Uchoa.J. e Wanderley.V. – Cidade do Samba in Revista Ensaio geral – Informativo LIESA, Ano VIII, no 12, dezembro de 2003. Rio de Janeiro:Iriseditora. P.43.

[11] O Moinho Fluminense, situado entre os Armazéns 6 e 7, o prédio da Xerox do Brasil , garagens de ônibus e pequenas gráficas perpetuam as atividades econômicas e industriais da região., tendo numa de suas extremidades a Rodoviária como via de entrada da cidade e na outra a Praça Mauá, com o Porto do Rio de Janeiro, que nas ultimas décadas se tornou parada obrigatória de grandes transatlânticos e teve aumentado substancialmente o seu fluxo turístico.

[12] O projeto da Cidade do Samba é dos arquitetos João Uchoa e Vitor Wanderley.

[13] LIESA NEWS in http://liesa.globo.com,Noticias – LIESA.Net, “ESCOLAS DEVEM OCUPAR CIDADE DO SAMBA EM SETEMBRO, Rio de Janeiro - 06/06/2004

[14] O terreno está dividido em três partes, a central para a Cidade do Samba, a área sul próxima ao Cais para um núcleo residencial e a área norte, junto à comunidade da Gamboa, a Vila Olímpica.

[15] Depoimento de César Maia – “César Maia lança pedra fundamental da Cidade do Samba” Noticias/2003 – http:www.cesarmaia.com.br-pág. 1 de 3.

[16] ver a propósito: Netto. A.P. e Trigo. L.G.Godoi, - Reflexões sobre um novo Turismo: política, ciência e sociedade. S.Paulo:Aleph,2003.

[17] A Liga Independente das Escola de Samba  do Rio de Janeiro LIESA, entidade que organiza o desfile do Grupo Especial, também participa deste processo, realizando eventos  em que os convites são distribuídos entre as Escolas para o sorteio da ordem dos desfiles,o lançamento oficial dos enredos, lançamento do Cd-ron dos sambas-enredo e apresentação do corpo de Jurados,onde a confraternização da comunidade do samba e os shows apresentados tem grande  repercussão nos meios de comunicação.

[18] Boiteux, Bayard. Werner, M. Promoção, entretenimento e planejamento Turístico. S.Paulo:Aleph,2002.

[19] Hobbsbawn, E. & Ranger, T. “Introdução: A Invenção das Tradições” in A Invenção das Tradições. S.paulo:Paz e Terra, 1997.

[20] Liga Independente das Escolas de Samba , órgão representativo das Escolas de Samba do Grupo Especial, fundado em 1985.

[21] Quando este artigo foi escrito, as obras da Cidade do Samba estavam previstas para serem terminadas em setembro de 2004. Porém devido a vários fatores, a inauguração só ocorreu em setembro de 2005. A ocupação das “fábricas de sonhos” promoveu um animado cortejo de carrocerias de carros alegóricos, incluindo queima de fogos no local e, é claro, muito samba. A mudança não foi total, sendo que algumas agremiações mantiveram ateliers nos antigos galpões, tendo em vista o cronograma estabelecido para a produção do carnaval de 2006. As instalações foram saudadas como uma grande melhoria para as escolas e principalmente para o resultado final de sua produção., representando mais uma nova etapa na construção do maior espetáculo da terra.

Professora Helenise Monteiro Guimarães

 

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