Querem "lipoaspirar" o samba

 

          "Lipoaspirar" o samba. Este parece ser o plano da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) para os próximos três anos. A diretoria da entidade deve levar adiante a proposta de reduzir de 14 para 12 o número de escolas no Grupo Especial. Se fosse adotada neste ano, Portela e Império Serrano passariam a integrar o Grupo de Acesso A, ao lado de Tradição, União da Ilha, Estácio de Sá, São Clemente, Santa Cruz, entre outras.
          Com o poder econômico ditando as regras, o samba propriamente dito - o chão da escola - parece que vai sendo relegado mais um pouco a segundo plano. O que importa, por essa lógica, é o "espetáculo". O samba - esse é gordura.
          Pelo menos dois argumentos têm sido apresentados em defesa da redução do número de agremiações no Especial: a "acomodação" de algumas escolas que nos últimos anos têm ficado nas últimas classificações e o cansaço do público. O primeiro item não poderia ou não deveria ser resumido assim tão facilmente na palavra "acomodação". É como se a gente pudesse acreditar que conscientemente uma escola de samba - dirigentes, comunidade, torcedores - optasse ano após ano por fazer um carnaval suficiente apenas para o décimo lugar. É como se a gente esquecesse o tanto de suor, de sofrimento, de trabalho e de esperança de vitória que os sambistas põem em cada composição, ensaio, fantasia.
          É difícil acreditar que escolas como a Portela ou o Império Serrano, ainda que possam ter cometido erros em algumas escolhas ou que tenham perdido força ao se dividir em lutas internas ou ainda que tenham se enredado na rotina de correr atrás do pagamento de dívidas em cima de dívidas, é difícil acreditar que tenham escolhido ficar em 10º ou 11º lugar como o mundo de seus sonhos. Como se isso fosse razoável, como se isso fosse o que move um sambista a vestir a fantasia e desfilar. Não é. Elas podem não ter se adaptado aos tempos do samba lipoaspirado, do samba siliconado, do samba com botox. Mas, acomodadas?!
          Vamos olhar por outro lado.
          O modelo adotado nos últimos anos (o do grande "espetáculo") fortaleceu ao extremo as superescolas de samba S.A contra as escolas de samba. Para muita gente, a equação que governa o carnaval hoje não é a da alegria, mas a do dinheiro: $$$$$ = bons resultados (as exceções, como a Unidos da Tijuca, estão aí para confirmar a regra). Será que não foi esse modelo que impediu o desenvolvimento dessas escolas ditas "acomodadas"? Quanto $$$$ há em jogo para quantas e quais escolas? Se for esse o caso, o problema não está no número de escolas mas na lógica do "espetáculo". E, portanto, não é o samba que deve ser lipoaspirado, mas a Liga ou quem comanda o "espetáculo", certo?
          O segundo argumento, o cansaço do público, também pode ser visto por outro ângulo. Carnaval é ou era abundância, excesso, energia. Abundância, excesso e energia que víamos nas arquibancadas que suportavam o sol de meio-dia para ver uma escola passar - e isso não faz tanto tempo atrás. Lembro o Império do Bumbum Paticumbum Prugurundum, aquele que cantava "Superescolas de samba S.A / Superalegorias /...". Ninguém defende a falta total de controle de horários, a confusão, a desorganização. Mas, sejamos sinceros, quando se fala no cansaço do público ao assistir a sete escolas estamos falando do cansaço dos turistas - muitos dos quais não assistem a sete, mas a três ou a quatro e vão embora. Portanto, essa preocupação não é com o carioca em geral (primeiro público potencial dos desfiles) ou o amante do samba em particular (idem). É ou deve ser com o turista, com as agências de turismo, com os hotéis. Quem gosta de escola de samba, fica. Quem gosta de samba, vira a noite. Quem gosta de carnaval, e tem dinheiro para pagar os ingressos da Sapucaí, samba debaixo de chuva ou de sol.
          De novo, o problema não parece ser o número de escolas ou as próprias escolas, mas o conceito de "espetáculo" (e o público de "espetáculo").
          Esqueceram de perguntam ao povo que faz (ou fazia), no chão e na arquibancada, a sua festa. Foi isso que aconteceu. Ou é o que está acontecendo. Transformam a festa em espetáculo. O torcedor vira turista.
          A proposta não esboça, à primeira vista, qualquer medida na direção do apoio efetivo ao conjunto das escolas de samba. Ela está dirigida às 12 que reinarão no Grupo Especial. E não sabemos se quem a defende analisou o risco embutido: se criar um mecanismo ainda mais restritivo - de circulação de recursos e de tomada de decisões - que, em vez de estimular o desenvolvimento, promova o sufocamento.
          Como a subvenção da Prefeitura e a receita da Liga serão divididas entre 12 e não 14 escolas, assistiremos ao "espetáculo" da concentração. Aplicaremos a lógica da concentração de renda ao samba, quando o país debate ou devia debater como repartir melhor entre todos (todas as agremiações), garantindo a diversidade (dos ritmos e requebros que essa cidade produz).
          Este é o maior risco da proposta: asfixiar a diversidade. Sufocar a diferença. Fixar um modelo único de escola, a superescola, preocupada antes de tudo com o dinheiro, não com os sambistas.
          A Prefeitura do Rio, que entregou a administração do Grupo Especial à Liga, não o fez apenas na parte financeira. Fez também no aspecto cultural. Parece não discutir o que o samba carioca quer, mas ouvir apenas o que a Liga planeja. Existe alguma política cultural pública para as escolas do Rio? (A pergunta é séria: pode até existir uma política, e eu posso desconhecê-la).
          Por que a discussão e a decisão devem ficar restritas aos dirigentes?
          P.S. Se a redução de 14 para 12 escolas for aprovada, o preço dos ingressos da Sapucaí vai ser reduzido? Hoje o público paga X para assistir a 14 escolas. Com duas a menos, em tese pelo menos, o valor devia ser reduzido, não?

Aloy Jupiara
Aloy é jornalista e presidente do júri do Estandarte de Ouro
(Publicado originalmente no O Globo Online em 22/05/2005)

 

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