Um carnavalesco já ganhou o desfile de 2005

 
          Comecei a acompanhar o desfile de escolas de samba quando Joãozinho Trinta estava revolucionando o carnaval. Foliões de gerações anteriores torciam pela Mangueira, pela Portela, pelo Salgueiro... Não conseguia entender por quê. A passagem da Beija-Flor era tão mais bonita do que a das chamadas quatro grandes, será que eles não viam? “O luxo vai acabar com o carnaval”, vaticinavam. Não acabou. O luxo tomou conta de todas as escolas, o desfile ficou, definitivamente, verticalizado, e quem acompanha o carnaval carioca a partir do fim dos anos 70 não pode imaginar o que era o concurso com a avenida ocupada por passistas, componentes fantasiados de nobres e carros alegóricos sem ocupar um lugar de destaque — marcas dos desfiles de antigamente. Joãozinho Trinta aproximou o desfile das escolas de samba do das Grandes Sociedades. E o carnaval mudou para sempre.
          De Joãozinho Trinta para cá não houve carnavalesco que mexesse na estrutura do desfile. Falou-se muito de Fernando Pinto. Ele era mesmo sensacional. Mas sua contribuição foi apenas tornar o desfile mais pop. Hoje, quando uma ala inteira usa óculos escuros, ou um skate desliza por uma alegoria, há um pouco da herança de Fernando Pinto, o mais tropicalista de todos os carnavalescos. Fernando Pinto sempre organizou desfiles divertidos. Mas era só isso: desfiles divertidos. Ele influenciou toda as outras agremiações, mas não mexeu na estrutura. Não fez nada tão radical quanto Joãozinho Trinta.
          De uns tempos para cá, carnavalescos têm lançado mão de diretores de teatro para “teatralizar” o desfile. A tal teatralização provoca impacto como o da entrada do Salgueiro este ano na Marquês de Sapucaí. Hoje, a gente vê na avenida Ulysses Cruz à frente da Viradouro numa função aparentemente tão importante quanto a de um diretor de harmonia. A onda, talvez, tenha começado em 1989 com Joãozinho Trinta, ainda na Beija-Flor, convocando Amir Haddad para dirigir os mendigos do enredo “Ratos e urubus — Larguem minha fantasia”. A Beija-Flor trazia para a avenida uma cena de “Les miserables”, o musical da Broadway. A partir daí, principalmente na comissão de frente, a teatralização significou caras e bocas e braços estendidos para a as arquibancadas. No carnaval de 2005, a teatralização foi um clichê.
          A maior mudança dos últimos anos no desfile não tem pai nem mãe: é a tendência de a escola passar coreografada. Não são mais duas ou três alas com passo marcado. É toda a escola. Até as baterias já fazem a concessão, abrindo-se, dividindo-se ao meio, deixando uma ala passar por ela, dando as tradicionais paradinhas, ajoelhando-se diante de sua rainha. É tudo muito diferente da época em que a primeira escola desfilou com uma ala coreografada: o Salgueiro, nos anos 60, que fez seus integrantes dançarem o minueto.
          Já faz tempo que o julgamento do desfile tem dois quesitos que são mais importantes que os demais: evolução e alegorias. A evolução, no carnaval de agora, depende da coreografia. A alegoria... bem, até dois anos Atrás, as alegorias pareciam igualar todas as escolas. Todas vinham no estilo imposto por Joãozinho Trinta. Mas no ano passado apareceu Paulo Barros na Unidos da Tijuca. O carro do DNA entrou para a História inventando a alegoria humana. Poderia ser só uma boa idéia. Mas o carnavalesco provou neste 2005 que é um estilo. O abre-alas da Tijuca com 300 componentes formando a cauda de um pavão era absolutamente genial. A alegoria em que um grupo de Dráculas saía de seus caixões também. O carro do purgatório era sensacional. Hoje, para uma alegoria “aparecer” na avenida, tem que seguir o estilo de Paulo Barros. Todas as outras escolas fizeram mais ou menos isso, mas tomando cuidado para não parecer que estavam imitando a Tijuca. No entanto, quem fez melhor foi a Porto da Pedra que imitou descaradamente Paulo Barros.
          Depois das alegorias da Tijuca, o melhor carro era o do trigal da Porto da Pedra, que, assumidamente, copiou o carnavalesco. Depois de 2005, as alegorias das escolas de samba nunca mais serão as mesmas. No ano passado, Paulo Barros era só uma promessa. Hoje, na Quarta-feira de Cinzas, já se pode afirmar que ele é o melhor carnavalesco em atividade.
          Pobre Mangueira! Como exigir animação de um integrante de uma ala fantasiada de “fossas e esgotos”? Ou ser feliz ao lado de um destaque vestido de Física Quântica? Ou, enfim, entusiasmar-se com uma bateria fantasiada de fio-terra?
          Não havia ala das crianças mais bonita este ano do que a da Império Serrano. No “Jornal nacional”, Edney Silvestre a identificou como a fantasiada de abelhinhas. As crianças, na verdade, estava fantasiadas de esperanças.
          “Está maravilhoso no sentido de conteúdo simbólico” — Maria Augusta comentando uma comissão de frente na transmissão da Globo. Maria Augusta, por sinal, merece o Estandarte de Lata de foliã do ano. Seus comentários são de um entusiasmo contagiante. Pena que o espectador dorme antes de ela completar qualquer frase.

Artur Xexéo
(Publicado originalmente no Segundo Caderno do Jornal O Globo em 09 de fevereiro de 2005)

 

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